Epidemia de pseudociência turbina tragédia da covid-19 na Índia

Políticos da extrema direita, gurus e atores de Bollywood promovem curandeirismo enquanto país vai batendo recordes de casos e mortes

Por Florência Costa | ODS 3 • Publicada em 7 de maio de 2021 - 10:04 • Atualizada em 24 de junho de 2021 - 11:59

Área de cremação coletiva de vítimas da covid-19 em Nova Delhi, Índia: elixires de urina de vaca e produtos à base de ervas divulgados como remédios contra o coronavírus (Foto: Mayank Makhija / NurPhoto / AFP – 01/05/2021)

A Índia está afogada em uma catastrófica segunda onda da covid-19 – com 400 mil casos e 4 mil mortes por dia – e já foi avisada pelo principal assessor científico do governo que uma terceira onda está a caminho. O país, no entanto, não enfrenta apenas o vírus, mas uma gigantesca máquina de propaganda da pseudociência, que se propaga há vários anos na Índia. Desde o início da pandemia, receitas pseudocientíficas são endossadas por políticos da extrema-direita, gurus e até atores de Bollywood.

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Segundo país mais populoso do mundo, com 1.3 bilhão de habitantes, a Índia tem o maior número de usuários de WhatsApp (750 milhões de pessoas) e essa rede social foi um dos principais túneis de disseminação de tratamentos para a covid-19 que não contam com a chancela científica. Alguns deles são elixires à base de urina de vaca (animal sagrado no hinduísmo), a ingestão de leite com cúrcuma e a aspiração de ar quente, seja de uma sauna, seja do secador de cabelos.

Nas últimas semanas, circularam no mundo imagens de multidões de sadhus (homens santos do hinduísmo) e fiéis banhando-se nas águas do Rio Ganges, considerado sagrado, durante o famoso festival Kumbh Mela, na cidade de Haridwar, em abril. A água, foi descrita, então, como “uma benção que flui”. Muitos voltaram infectados de lá, quando a Índia já se afogava na segunda onda da pandemia. Políticos chegaram a pedir a médicos e cientistas que descobrissem propriedades curadoras da Gangajal (como é chamada a água do Ganges) contra a doença.

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[g1_quote author_name=”Ayesha Ray” author_image=”Professora, nascida na Índia, de Ciências Políticas do King’s College Pennsylvania (EUA” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

As pessoas pobres, que vivem nas áreas rurais, com pouco acesso à educação, são os mais vulneráveis a esse tipo de curanderismo perigoso e enganoso. Parte do problema vem de uma cultura que procura soluções na religião, mais do que na ciência

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A Índia, como o Brasil de Jair Bolsonaro, é governada pela extrema-direita representada pelo BJP (Bharatyia Janata Party, ou Partido do Povo Indiano), do primeiro-ministro Narendra Modi. E os governantes indianos não impediram a realização do Kumbh Mela. Além disso, Modi chegou até mesmo a participar de um comício, já que o país passava, de fevereiro a abril, por uma campanha eleitoral em cinco estados.

Um evento que simboliza o problema da pseudociência na Índia ocorreu em março de 2020, quando se iniciava a pandemia: foi a festa da Gaumutra (urina de vaca), realizada em Kolkota (a antiga Calcutá) e organizada por um grupo de hindus fundamentalistas. Seus participantes, cerca de 200 pessoas, se enfileiravam para beber um preparado à base de urina de vaca que “os protegeriam contra o vírus”.

Cartaz da Festa da Urina da Vaca, divulgando sua capacidade de neutralizar os efeitos do coronavírus: epidemia de pseudociência na Índia (Foto: Reprodução)
Cartaz da Festa da Urina da Vaca, divulgando sua capacidade de neutralizar os efeitos do coronavírus: epidemia de pseudociência na Índia (Foto: Reprodução)

A urina de vaca e outros elementos relacionados a esse animal sagrado (como esterco e o ghee, a manteiga clarificada) são, há alguns anos, vendidos como produtos com propriedades curativas por esses grupos fundamentalistas hindus e empresas ligadas a eles. Essas bebidas à base de urina de vaca, indicadas para doenças das mais diversas, como diabetes e até câncer, foram apelidadas pela mídia indiana de “cow ka cola”.

Na pandemia, as bebidas de gaumutra apareceram em cena. Um líder político do estado de Assam (Nordeste da Índia), do partido governista, chegou a afirmar em uma sessão da Assembleia Legislativa que urina e esterco de vaca poderiam ser usados no tratamento contra o coronavírus.

Em junho do ano passado, quando o país vivia a primeira onda, um dos gurus de Ioga mais populares da Índia, Baba Ramdev, lançou o Corona kit, com três produtos: Coronil, Swasari e Anu Tel. Ele dizia que os “remédios” eram capazes de curar o doente em sete dias. As afirmações do guru – um grande aliado do BJP de Modi – causaram polêmica. As autoridades de saúde do estado de Uttarakhand, onde estão a sede da Patanjali e o principal ashram (retiro espiritual) de Ramdev, autorizaram a propaganda do produto como suplemento para ajudar no gerenciamento da covid-19.

Em fevereiro deste ano, em evento diante do ministro da Saúde da Índia, Harsh Vardham, Ramdev afirmou que seu remédio – condenado pela Associação Médica Indiana – havia sido certificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mas a entidade desmentiu a informação, esclarecendo que não certificou a efetividade de nenhum produto da chamada medicina alternativa para o tratamento da covid-19.

Ator Akshay Kumar, estrela de Bollywood, a poderosa indústria cinematográfica indiana, na propaganda de produto à base de ervas contra o coronavírus: curandeirismo impulsiona tragédia sanitária (Foto: Reprodução)

Atores da indústria cinematográfica de Bollywood também envolveram-se em polêmicas durante a pandemia por promover produtos naturais contra o vírus, sem o aval da ciência. O galã Akshay Kumar, por exemplo, virou garoto-propaganda de um tradicional produto da medicina aiurvédica chamado Chyawanprash: uma mistura de ingredientes naturais como mel, geleia de frutas, ghee, ervas e especiarias. Ironicamente, Kumar acabou infectado pelo coronavírus e tratou-se com médicos que seguem as orientações da ciência.

Nascida na Índia, a professora Ayesha Ray, do Departamento de Ciências Política do King’s College Pennsylvania (Estados Unidos), critica os tratamentos falsos que tem sido pregados por sadhus e gurus, afirmando que isso leva à desinformação sobre a covid-19. “As pessoas pobres, que vivem nas áreas rurais, com pouco acesso à educação, são as mais vulneráveis a esse tipo de curandeirismo perigoso e enganoso. Parte do problema vem de uma cultura que procura soluções na religião, mais do que na ciência”, afirmou Ray ao #Colabora.

A cientista política ressalta que o próprio ministro da Saúde da Índia endossou repetidamente tratamentos aiurvédicos contra a covid-19: “O governo indiano é completamente responsável pela promoção desses tratamentos e pelos eventos terríveis que ocorrem agora. O ministro da Saúde tem feito uma série de comentários não científicos. É chocante”.

Multidão durante mergulho sagrado no Rio Ganges: críticas à falta de cuidado durante a segunda onda da pandemia (Foto: Sukanta Mukherjee / The Times of India / AFP -21/04/2021)

Em artigo intitulado “Segunda Onda: pseudociência está por trás da crise de covid-19 na Índia”, o indiano Ashok Swain, professor de Relações Internacionais na Uppsala University (Suécia), lembra que três países do mundo responderam muito mal à crise do coronavírus: EUA, Brasil e Índia

No caso dos EUA, o então presidente Donald Trump chegou a sugerir desinfetante para o tratamento contra o vírus e Jair Bolsonaro não se cansa de defender uso da hidroxicloroquina, mesmo após os cientistas alertarem que não é eficaz. “Além de serem todos governos de extrema-direita populista, o outro aspecto em comum entre esses três países é ignorar a ciência e os dados para glorificar as crenças populares”, ressaltou.

No caso específico da Índia, Ashok Swain explicou que o governo de extrema-direita que assumiu o poder a partir de 2014 passou a fazer “reivindicações sensacionais, como as de que cirurgias cosméticas e a ciência genética existiam na Índia há milhares de anos”. De acordo com o professor, a pseudociência tem causado prejuízo à habilidade e preparo da Índia em lutar contra o coronavírus.

O escritor indiano best-seller Chetan Bhagat fez um apelo em prol da Ciência na coluna que assina no The Times of India, principal jornal em língua inglesa do país. “Milhões de pessoas foram se banhar no rio durante o Kumbh Mela, mesmo diante do fato estabelecido da segunda onda [da pandemia]”, afirmou. “Ame a sua religião, siga e respeita as tradições. Mas seja científico. Apenas isso vai nos fazer criar uma era de ouro para a Índia novamente”, concluiu.

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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