ODS 1
Endometriose: sentir dores intensas na menstruação não é normal
Doença vem recebendo mais atenção na última década, mas por causa da banalização da dor da mulher, ainda se sabe muito pouco sobre ela
(Joana Suarez*) – Sabe a cólica menstrual, que as mulheres tanto naturalizam como algo que faz parte da vida? Pois é, ela não deveria ser vista assim, sobretudo se forem intensas e frequentes. A menstruação é uma função fisiológica da mulher, assim como fazer xixi, cocô, respirar. Quando qualquer uma dessas últimas situações geram algum incômodo sério, logo se desconfia de algo e um tratamento é buscado. O mesmo comportamento teria que ocorrer ao menstruar e sentir muita dor.
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Mas a normalização da dor da mulher fez com que doenças como a endometriose fossem negligenciadas pela ciência, pela medicina e por várias pacientes por muitos anos. Ter algum tipo de cólica é comum: durante a menstruação há uma diminuição de sangue na parede do útero, e isso em geral causa alguma dor que tende a melhorar com medidas de conforto ou analgésicos. Mas aquelas dores que pioram progressivamente a cada ciclo e às vezes chegam a ser incapacitantes não podem ser naturalizadas.
É justamente essa banalização que faz com que muitas mulheres e pessoas com útero levem até dez anos, conforme estudos científicos internacionais, para diagnosticar a endometriose e iniciar um tratamento adequado.
Aliás, você já ouviu falar em endométrio? É o nome que damos ao tecido que cobre a parede interna do útero. Ele é expelido na menstruação em forma de sangramento, mas se parte desse tecido cai nos ovários ou no abdômen causa uma inflamação, a tal da endometriose.
Exames começaram ‘outro dia’
A endometriose é uma doença complexa sobre a qual a gente começa a entender um pouco melhor só agora, com mais pesquisas sendo desenvolvidas. Mas é difícil de acreditar como uma doença que afasta as mulheres do trabalho, e as meninas da escola não foi uma questão de saúde pública importante antes, não é?
Além das pesquisas, somente na última década também os exames de imagem começaram a ser capazes de detectar os focos da endometriose. Antes, era preciso fazer uma biópsia, através de videolaparoscopia, que é uma cirurgia menos invasiva, mas ainda assim uma cirurgia.
Com a maior visibilidade da doença e mais disponibilidade de exames, o número de diagnósticos naturalmente cresceu. A doença afeta cerca de 10% da população feminina brasileira, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e é mais frequente entre pessoas de 25 a 35 anos de idade.
Mas também não é assim tão mais fácil hoje. Mesmo os exames específicos de ultrassom e ressonância estando disponíveis, eles precisam ser realizados por profissionais treinados, porque a maioria das lesões de endometriose se apresenta de forma sutil, de difícil visualização. Além de haver poucos radiologistas especializados, nem sempre os exames estão disponíveis na rede pública de saúde, o SUS.
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Veja o que já enviamosO profissional precisa de uma boa experiência, ser obsessivo e meticuloso na busca de lesões, explica o médico Marcelo Pedrassani, especialista em gineco-obstetrícia e diagnóstico por imagem. E é fundamental ter um equipamento mais avançado que forneça uma excelente resolução de imagem. “Muitas vezes as pacientes apresentam somente lesões entre 0,5 e 1 cm”, destacou. Mas esse tamanho não tem relação direta com a gravidade dos sintomas, viu?
Saga de cirurgias
A empresária Flávia Tonani, 43, descobriu que tinha endometriose em 2000, pouco antes de completar 21 anos. Ela já menstruava há 10 anos, com muito sangue, cólicas intensas, muita fraqueza. “Algumas vezes precisava até ir ao hospital para ser medicada”. O diagnóstico final se deu com a videolaparoscopia. O cisto que ela tinha no ovário esquerdo estava grande (do tamanho de uma laranja), comprimindo o intestino e causando fortes dores.
O “tratamento” recomendado no caso dela foi tomar anticoncepcional direto, sem intervalo, para não menstruar e reduzir as dores. E assim Flávia fez por muitos anos. Depois dos 30 anos de idade, já casada, procurou uma ginecologista pois queria engravidar. Retomou o ciclo menstrual sem hormônios e com isso voltou o sofrimento. “Não saía da cama de tanta dor”. Em 2020, fez a segunda videolaparoscopia e o cisto agora era no ovário esquerdo. Interromper a menstruação não estacionou a doença dela, apenas mascarou um avanço comprometedor.
Dessa vez, Flávia precisou retirar o ovário esquerdo. “Ele estava todo comprometido e se eu não tivesse descoberto esse cisto, ele podia se romper e a cirurgia seria mais complicada.” Flávia ficou grata pela descoberta, mas também triste e frustrada por não conseguir “realizar o sonho de gerar uma vida”, disse à reportagem da Revista AZMina.
No ano passado, os exames de acompanhamento indicaram que a endometriose tinha atingido o intestino. Foi então que ela começou um tratamento diferente com uma nutróloga. “Eu vi a doença por um ângulo nunca visto antes: a alimentação saudável, a atividade física, o autoconhecimento, cuidar de mim e fazer algo que me desse prazer, tudo isso faz parte do tratamento”.
Entender o que tinha e o que se passava no próprio corpo foi uma virada de chave na vida de Flávia, que hoje não tem mais a maternidade nos planos. “É uma dor superada”, nas palavras dela.
Não há consenso sobre os tratamentos
Hoje já se sabe que o tratamento deve ser individualizado, pois cada mulher é uma, e isso traz questionamentos à máxima que se vendeu por décadas: de que “viver sem menstruar” é o melhor dos mundos, ou de que o sangramento mensal é algo inútil. Afinal, para isso, a pessoa precisa usar hormônios artificiais a vida inteira.
“Se existissem mais mulheres cientistas pesquisando ou até se a gente estivesse ouvindo mais o que as pessoas com útero têm a dizer sobre essa situação, não estávamos utilizando a pílula anticoncepcional como uma panaceia”, destacou a ginecologista Halana Faria, do perfil Ginecologia Feminista. Hoje, estudos já apontam que cortar o ciclo menstrual pode gerar outros problemas e doenças, além de não resolver a endometriose, no caso.
Ainda nos dias atuais, quando uma mulher fala que está tendo muita acne, sentindo dores no período menstrual e até quando recebe o diagnóstico de endometriose, é provável que ela escute da maioria dos ginecologistas que o anticoncepcional ou o bloqueio do ciclo resolverá a situação.
“Essa afirmação sequer tem o respaldo científico e parte de uma ideia de que a menstruação é um problema e que um grande favor que você faz é ajudar a mulher a se livrar daquilo”, afirmou a ginecologista Bel Saide, do perfil Ginecologia Natural, reforçando que os remédios hormonais não tratam a doença em si. Outro mito que a médica combate é de que a menstruação alimenta a endometriose e por isso teria que ser suprimida.
De fato, não existe um consenso na literatura médica com relação ao benefício de parar de menstruar. Para a ginecologista Halana, isso pode ser algo justificável se a pessoa sente tanta cólica a ponto de prejudicar sua qualidade de vida, mas nem sempre esse vai ser o tratamento proposto. “O que as pacientes me dizem é que se sentem bem quando menstruam, pois parece natural, fisiológico, por mais que tenham alguns efeitos”, acrescentou.
Sem milagres
“Todos os dias mulheres me procuram porque não desejam fazer uso de hormônios ou já fizeram e perceberam que não resolveram o problema”, afirma a ginecologista Bel Saide.
Por ser uma doença que envolve muitos fatores, além de estilo de vida, uma visão integral da mulher e multidisciplinar é importante. Alguns especialistas defendem, por exemplo, um olhar especial para a alimentação, restringindo alimentos que geram inflamação.
Há pacientes muito sintomáticas que fazem os exames e quase não têm foco de endometriose. Outras têm cavidades abdominais tomadas de focos de endometriose, sem apresentar nenhum sintoma.
Algumas mulheres podem ter o diagnóstico e ficarem sem medicação, acompanhando a endometriose com terapias complementares possíveis, porque só um terço delas, segundo a médica Halana Faria, vai ter uma exacerbação dos sintomas. A preocupação ocorre se a doença progredir e atingir outros órgãos adjacentes ao útero: trompas, ovários, bexiga, ureter e intestino. “Mas em 70% dos casos ela vai estacionar ou regredir espontaneamente”, ressalta a ginecologista.
O mais urgente é ter bons profissionais da saúde, médicos da família, clínicos gerais, que investiguem e entendam a doença. Que ginecologistas em geral façam a escuta verdadeira e adequada das mulheres e pessoas com útero, das queixas de pacientes.
Halana alerta que a identificação das dores menstruais podem ter dois extremos ruins: nunca investigar o que há por trás das dores ou chegar a um diagnóstico tardio; ou começar a fazer muitos exames, suspeitar demais, e descobrir focos que na verdade vão regredir ou estacionar e não se tornarão problemas.
Também é preciso estar atenta à medicalização fantasiada de “naturopatia”, pondera Halana, com cursos e receitas milagrosas para questões complexas. Mas, é claro, devemos questionar e criticar a forma como se oferece saúde hoje – baseada em padrões heteronormativos, que exclui a existência de mulheres trans e de relações homossexuais, e segue vendo as mulheres como meras reprodutoras – e pautada por interesses comerciais.
*Gerente de Jornalismo de AzMina, Joana Suarez é repórter investigativa há 10 anos, focada em direitos humanos e questões de gênero e saúde. Também lidera atualmente projetos jornalísticos independentes como a Redação Virtual, o podcast Cirandeiras e a Cajueira Newsletter.
Revista AzMina: Tecnologia e informação contra o machismo e pela igualdade de gênero, com recortes de raça e classe. Jornalismo independente para combater os diversos tipos de violência que atingem mulheres cis e trans, homens trans e pessoas não-binárias