Diário da Covid-19: o que acontece depois do pico?

Uma apoiadora do presidente Jair Bolsonaro discute com um soldado, em Brasília, durante uma manifestação contra o governador Ibaneis Rocha. Foto Sérgio Lima/AFP

Mesmo que tenha alcançado o ponto mais alto da pandemia, Brasil ainda pode ter mais 100 mil mortos

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 16 de junho de 2020 - 08:26 • Atualizada em 18 de junho de 2020 - 10:32

Uma apoiadora do presidente Jair Bolsonaro discute com um soldado, em Brasília, durante uma manifestação contra o governador Ibaneis Rocha. Foto Sérgio Lima/AFP

A pandemia do novo coronavírus teve início, no Brasil, no dia 26 de fevereiro de 2020, quando um homem de 61 anos, da cidade de São Paulo, que havia retornado de viagem à Itália, testou positivo para a covid-19. A primeira morte, de um homem de 62 anos, ocorreu no dia 17 de março, também na cidade de São Paulo. Portanto, o país já convive com o vírus há mais de 3 meses e hoje (16/06) já completamos 90 dias desde a primeira vida perdida para o SARS-CoV-2.

O gráfico abaixo mostra que o número de mortes no Brasil manteve uma tendência de alta até o dia 04 de junho, quando foram registradas 1.473 mortes, recorde em 24 horas. Na média da 23ª Semana Epidemiológica (SE) – de 31/05 a 06/06 – ocorreram 1.014 mortes diárias, recorde para a série histórica semanal. Mas como mostramos no artigo “Já dá para ver alguma luz no fim do túnel” (#Colabora, 14/06/2020), a média diária de vidas perdidas para a covid-19 caiu para 970 óbitos na 24ª SE (de 07 a 13/06). Foi a primeira vez que ocorreu uma redução do número médio diário de mortes de uma semana para outra. Não é certo ainda, mas isto pode significar que o pico do número de mortes no Brasil aconteceu no dia 04/06 e na 23ª SE.

Evidentemente, ainda é cedo para afirmar, peremptoriamente, que o Brasil já atingiu o pico da pandemia. Existem alguns sinais de que o pior já passou, como mostramos em duas outras oportunidades: “Pandemia reduz o ritmo nas capitais brasileiras” (#Colabora, 12/06/2020) e “Cai o número de casos e de mortes na região Norte” (#Colabora, 15/06/2020). Mas há exemplos de países que se mantiveram em um elevado platô por duas ou três semanas (como no caso do Irã e dos EUA), antes de iniciar o declínio sustentado do número de mortes.

Supondo que o Brasil atingiu o pico de perdas no dia 04/06, cabem as seguintes perguntas: o que vai acontecer daqui para a frente? Em que ritmo acontecerá a queda? Quando o país vai zerar o número de vítimas fatais para o novo coronavírus?

A melhor forma de responder a estas questões é comparar com os países que já ultrapassaram o pico da pandemia e que já conseguiram uma redução substancial do número de mortes. Os gráficos abaixo mostram a experiência de 8 países de 3 diferentes continentes. Vamos avaliar quantas mortes ocorreram depois da data do pico até o dia 14/06/2020.

Na Coreia do Sul o pico foi atingido no dia 24/03 (quando havia 120 mortes) e de lá até o dia 14/06 foram 2,3 vezes mais mortes. No Irã o pico ocorreu em 04/04 e de lá para cá foram 2,6 vezes mais mortes. Na Bélgica, pico em 10/04 com 3,2 vezes mais. Itália, pico em 27/03 e 3,8 vezes mais. Portugal, pico 03/04 e 6,2 vezes mais. Alemanha, pico 08/04 e 3,8 vezes mais. Reino Unido, 21/04 e 2,1 vezes mais. Nos Estados Unidos (EUA) o pico ocorreu em 21/04 (quando havia 45.651 óbitos) e de lá para cá foram 2,6 vezes mais mortes até o número de 117.858 vítimas fatais em 14/06.

De fato, o surto pandêmico da covid-19 tem um padrão geral que segue, aproximadamente, o formato de uma curva normal (distribuição de Laplace–Gauss). Ou seja, a partir do zero tem uma fase de aceleração e subida da curva, depois tem um pico no alto da distribuição e depois há uma fase de desaceleração da curva até chegar a zero ou próximo de zero no fim da pandemia.

Contudo, o que se nota pelos exemplos acima é que a curva “quase normal” possui uma assimetria à direita, ou seja, o número de mortes antes do pico é menor do que o número de mortes depois do pico. Dos países mostrados acima, a Coreia do Sul praticamente zerou o número de mortes 3 meses depois do pico, mas com um número de mortes 2,3 vezes maior na parte direita da curva. No caso de Portugal, o número de mortes na parte direita da curva foi 6,2 vezes maior do que na fase esquerda da curva. No caso da Alemanha e da Itália foram 3,8 vezes e no caso dos EUA o número de mortes do lado direito, até 14/06, foi 2,6 vezes maior do que do lado esquerdo.

Na média dos 8 países o pico do número de mortes ocorreu de 30 a 40 dias depois do registro da primeira vítima e o volume de mortes foi, em média, 2,5 vezes maior depois do pico do que antes do pico. Se bem que é necessário dizer que em vários países o número de vidas perdidas ainda não foi interrompido.

Assim, depois de analisada a experiência destes oito países podemos responder as perguntas sobre o Brasil. Em primeiro lugar, cabe destacar que o tempo entre a primeira morte e o pico da mortalidade no Brasil demorou pelo menos 2,5 meses, espaço temporal muito maior do que nos outros países (isto significa que o lado direito da curva no Brasil foi mais extenso que o habitual). Em segundo lugar, cabe ressaltar que se o Brasil teve 34 mil mortes do lado direito da curva, deve ter entre 68 mil (2 vezes) e 102 mil (3 vezes) no lado esquerdo da curva. Isto significa que o Brasil poderá ter, no total, algo em torno de 100 a 140 mil vidas perdidas para a covid-19. Vale dizer também que nos próximos 3 ou 4 meses, embora caminhando para o fim da pandemia o Brasil pode alcançar o dobro das 44 mil mortes que foram registradas até o dia 15/06.

Estes números servem de alerta, pois o Brasil cometeu muitos erros no enfrentamento da pandemia. Não conseguir fazer uma boa barreira sanitária para evitar a propagação do vírus. Não testou o suficiente para acompanhar a transmissão comunitária do coronavírus. Não rastreou, monitorou e fez o isolamento social dos doentes e ainda realizou uma quarentena “meia-boca”. Tudo isto explica o fato de o país estar no segundo lugar do número acumulado de mortes e no primeiro lugar no número diário do ranking de vítimas fatais da covid-19.

Neste momento, em que parece que o pior já passou, e tudo indica que chegamos no pico da curva, não se pode relaxar pois a “descida da ladeira” geralmente traz mais fatalidades do que a fase da subida. Mas, para minimizar o número de perdas nesta fase é preciso planejar bem a flexibilização da quarentena e garantir uma retomada das atividades de maneira prudente e controlada. Além do mais, há o perigo de uma segunda onda. Enfim, todo cuidado é pouco!

Frase do dia 16 de junho de 2020

“Sei que a vida vale a pena.

Mesmo que o pão seja caro.

E a liberdade pequena”

Ferreira Gullar (1930-2016)

Poeta maranhense

Referências:

ALVES, JED. Diário da Covid-19: Já dá para ver alguma luz no fim do túnel, #Colabora, 14/06/2020

https://projetocolabora.com.br/ods3/ja-da-para-ver-alguma-luz-no-fim-do-tunel/

ALVES, JED. Diário da Covid-19: Pandemia reduz o ritmo nas capitais brasileiras, #Colabora, 12/06/2020

https://projetocolabora.com.br/ods3/pandemia-reduz-o-ritmo-nas-capitais-brasileiras/

ALVES, JED. Diário da Covid-19: Cai o número de casos e de mortes na região Norte, #Colabora, 15/06/2020 https://projetocolabora.com.br/ods3/cai-o-numero-de-casos-e-de-mortes-na-regiao-norte/

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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