Diário da Covid-19: No epicentro da pandemia e no centro do escândalo da Covaxin

Enterro de vítimas de covid-19 no cemitério de Inhaúma, no Rio de Janeiro: Brasil chega a 512 mil vidas perdidas. Foto Fábio Teixeira/NurPhoto/AFP

Brasil caminha para superar os EUA e se tornar o país com maior número acumulado de mortes pelo coronavírus

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 27 de junho de 2021 - 10:54 • Atualizada em 1 de julho de 2021 - 13:05

Enterro de vítimas de covid-19 no cemitério de Inhaúma, no Rio de Janeiro: Brasil chega a 512 mil vidas perdidas. Foto Fábio Teixeira/NurPhoto/AFP

Na semana em que o Brasil superou 512 mil mortes, apresentou a maior média de pessoas infectadas, ultrapassou a Índia na média diária de casos e óbitos e se tornou novamente o epicentro da pandemia global, o povo brasileiro assistiu bestificado ao maior escândalo pandêmico de corrupção, envolvendo principalmente o líder do governo da Câmara Federal e o próprio Presidente da República.

O negacionismo, a incompetência e a corrupção são pragas que têm acompanhado a pandemia da covid-19 no Brasil. Até aqui, o maior exemplo de inadequação entre o dever da pessoa pública e os imperativos constitucionais das boas práticas republicanas ocorreu no Rio de Janeiro – exemplo de descaso e mal uso dos recursos públicos – onde Wilson Witzel tornou-se o primeiro governador cassado em um processo de impeachment na história da República. Mas a falta de ética não se restringe ao território fluminense, pois tem sido ampla geral e irrestrita. Por exemplo, no Amazonas foram gastos R$ 2,9 milhões na compra de 28 respiradores, valor que ultrapassou o preço médio dos equipamentos em 316%. Em Santa Catarina houve denúncia de superfaturamento na compra de 200 respiradores pelo governo do estado, com dispensa de licitação por R$ 33 milhões. Há amplas suspeitas de corrupção na produção, distribuição e propaganda ostensiva da cloroquina.

Mas nada disto se compara ao alvoroço do escândalo da Covaxin, pois o mesmo governo que menosprezou as medias preventivas para conter o vírus da covid-19, divulgou tratamentos precoces ineficazes, colocou em dúvida a eficácia das vacinas e desprezou diversas ofertas da farmacêutica Pfizer se envolveu em uma negociata milionária para comprar uma vacina não aprovada pela Anvisa e com entrega incerta das doses. Inegavelmente, doença, morte e corrupção formam uma mistura explosiva. Como disse sábado Ascânio Selene, no jornal O Globo (26/06/2021): “Se ainda havia alguma dúvida, ela desapareceu ontem. O autoritário, intolerante, reacionário, equivocado e hipócrita governo Bolsonaro terá de explicar agora o cheiro de podridão que exala do Palácio do Planalto”.

Mais: Covaxin, vacina indiana cercada de suspeitas até na Índia

O panorama nacional e internacional da pandemia

O Brasil ultrapassou a Índia e voltou a assumir o epicentro da pandemia global, apresentando a maior média diária de pessoas infectadas e a maior média de vidas perdidas a cada 24 horas, segundo dados da Universidade Johns Hopkins. O Brasil tem 2,7% da população mundial, mas, no dia 25 de junho, registrou 18,3 milhões de casos da covid-19, representando pouco mais de 10% dos 180,4 milhões de pessoas infectadas do mundo. Registrou também 511,1 mil vidas perdidas, representando 13,1% das 3,9 milhões de mortes da pandemia global. Na semana de 19 a 25 de junho, o Brasil apresentou média móvel de 74,5 mil casos (18% da média mundial) e média de 1.806 óbitos (representando 20% da média global).

O gráfico abaixo, do site Our World in Data, mostra como o Brasil e a América do Sul se destacam dos demais continentes. A média diária de vítimas fatais na América do Sul e no Brasil está em torno de 8,4 óbitos por milhão de habitantes, enquanto na Europa é de 1,2 óbitos por milhão, na América do Norte é de 1,1 óbito por milhão, no mundo é de 1 óbito por milhão, na Ásia de 0,6 óbito por milhão e na África e na Oceania abaixo de 0,5 óbito por milhão de habitantes.

O gráfico abaixo mostra que o Brasil se destaca entre os 8 países do topo do ranking dos mais atingidos pela pandemia. A média móvel de 7 dias do Brasil ficou em 74,5 mil casos no dia 25/06, de 51,4 mil casos na Índia, de 29,2 mil casos na Colômbia, de 18,8 mil casos na Argentina, de 18 mil casos Rússia, de 15,7 mil casos na Indonésia, de 10,5 mil casos nos EUA e de 3,8 mil casos no México.

O gráfico abaixo mostra que o Brasil também se destaca entre os 8 países do topo do ranking das vidas perdidas para a covid-19. A média móvel de 7 dias do Brasil ficou em 1,8 mil óbitos no dia 25/06, de 1,4 mil óbitos na Índia, de 654 casos na Colômbia, de 533 na Argentina, de 510 óbitos na Rússia, de 333 óbitos na Indonésia, de 279 óbitos nos EUA e de 198 óbitos no México.

Os gráficos abaixo, da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que a pandemia está em retração no mundo, tanto em temos de casos como de óbitos da covid-19. A tendência é que o ritmo da pandemia continue diminuindo na medida em que as medidas de prevenção e o processo de imunização avancem no cenário internacional.

Infelizmente, o Brasil está na contramão global e já vive o começo de uma terceira onda que deve manter alto platô de casos e de óbitos nos meses de junho e julho. De fato, o povo brasileiro está pagando um alto preço em decorrência das ações de líderes políticos negacionistas que nada fizeram para impedir a propagação do SARS-CoV-2 por todo o território nacional. O Brasil precisa mudar para poder interromper a tragédia que se abate sobre o país.

Mais: Diário da Covid-19: Aumento do número de casos pode ser o início da 3ª onda no Brasil

 O escândalo da compra da vacina indiana Covaxin

O presidente Jair Bolsonaro desdenhou da pandemia, não implementou uma barreira sanitária para proteger o país, não rastreou e monitorou os doentes, não tomou as medidas preventivas para evitar a propagação comunitária do vírus e não adquiriu as vacinas no tempo certo e na quantidade adequada para evitar ou minimizar os efeitos da 2ª e da 3ª onda da covid-19. Como resultado o Brasil tem um coeficiente de mortalidade de 2.430 óbitos por milhão, enquanto, por exemplo, a Nova Zelândia tem um coeficiente de somente 6 óbitos por milhão de habitantes. Se o presidente brasileiro tivesse tomado medidas semelhantes às adotadas pela primeira-ministra Jacinda Ardern, o país teria salvo mais de 500 mil vidas. Ao contrário, o Brasil caminha para superar os EUA até o final de agosto, para se tornar o país com maior número acumulado de mortes da pandemia.

Mais: Diário da Covid-19: Brasil chega a meio milhão de mortes

Os partidários do governo, em geral, argumentam que o Brasil está entre os 7 países com maiores coeficientes de mortalidade, mas não é o pior do mundo. Dizem que o governo é bem intencionado, mas a oposição de esquerda, os governadores com ambições políticas e, principalmente, o Supremo Tribunal Federal (STF), não deixam o presidente trabalhar. Falam que o governo pode ter cometido erros, mas é honesto. Contudo, essa narrativa, que nunca teve muita base na realidade, acaba de ser desmontada.

As denúncias referentes à compra da vacina indiana Covaxin pelo governo Bolsonaro provocaram espanto e revolta. A Covaxin foi a vacina mais cara comprada pelo governo, com preço unitário de R$ 80,70. As tenebrosas negociações ocorridas apresentaram diversas transações atípicas em relação ao que ocorreu com outras farmacêuticas. A compra da vacina Covaxin foi a única a contar com uma empresa intermediadora, a Precisa Medicamentos, que participou de diversas comitivas à Índia para tratar da importação do imunizante junto da embaixada brasileira em Nova Déli.

Manifestantes protestam em São Paulo contra o descaso do governo Bolsonaro no combate à pandemia. Foto Cris Faga/NurPhoto/AFP

A cronologia dos fatos começa com a primeira reunião entre o Ministério da Saúde e a Bharat Biotech ocorrida ainda em 20/11/2020. No dia 06/01/2021 uma comitiva da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas foi recebida pelo embaixador brasileiro na capital indiana, para conversas iniciais sobre a Covaxin, estando presente, Francisco Maximiano, representando a Precisa Medicamentos. Os interessados elogiaram a competência tecnológica e sanitária da Bharat Biotech. No dia 08/01/2021, o presidente Jair Bolsonaro informou por carta ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, que a Covaxin havia sido uma das vacinas “escolhidas” pelo Brasil. No dia 12/01, a farmacêutica indiana anunciou um acordo de fornecimento da Covaxin para a Precisa. No dia 18/01, o Ministério da Saúde enviou ofício ao presidente da Precisa se dispondo a iniciar as negociações para a compra da Covaxin. No dia 20/01, representantes da Precisa se reúnem com técnicos da Anvisa.

No dia 03/02, Ricardo Barros, líder do governo Bolsonaro na Câmara, apresenta emenda para flexibilizar medida provisória sobre a compra de vacinas, agilizando as negociações para aquisição da Covaxin. Em 19/02, o Ministério da Saúde confirmou a dispensa de licitação para a compra das vacinas Covaxin e Sputnik V. No dia 23/02, a Câmara dos Deputados aprova a Medida Provisória autorizando a importação e distribuição de quaisquer vacinas, insumos ou medicamentos sem registro na Anvisa, desde que aprovadas pela autoridade sanitária em outros países. No dia 25/02, o Ministério da Saúde assina contrato para compra de 20 milhões de doses da Covaxin, no valor de R$ 1,614 bilhão.

Em seguida começaram a surgir as contestações. No dia 26/02, Adriana Ventura e Tiago Mitraud, deputados do Novo, enviam requerimento ao Ministério da Saúde pedindo informações sobre o contrato para a compra da Covaxin. No dia 02/03, o Senado aprova a medida provisória sobre a compra de vacinas, com a emenda apresentada por Ricardo Barros. No dia 05/03, o empresário Maximiano faz nova viagem à Índia e é recebido na Embaixada do Brasil em Nova Déli.

No dia 20/03, o funcionário federal Luis Ricardo Miranda, e o irmão, o deputado Luis Miranda, afirmam ter participado de reunião com o presidente Bolsonaro, no Alvorada, para relatar suspeitas no contrato de compra da Covaxin. Logo em seguida o deputado Luis Miranda envia mensagens a um assessor presidencial cobrando explicações. No dia 31/03, a diretoria da Anvisa rejeita por unanimidade a autorização excepcional e temporária de importação da vacina Covaxin feita pelo Ministério da Saúde.

Contudo, no dia 04/06, a Anvisa aprova, com várias condicionantes, a importação excepcional e temporária de doses da vacina indiana Covaxin, feita pelo Ministério da Saúde. No dia 16/06, o Ministério Público Federal identifica indícios de crime na compra feita pelo Ministério da Saúde de 20 milhões de doses da vacina indiana Covaxin e pede que o caso seja investigado na esfera criminal.

No dia 22/06, a CPI da Covid incluiu o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, entre os investigados pela compra da Covaxin após documentos mostrarem que o governo federal pagou um preço 1.000% maior do que seis meses antes era anunciado pela própria fabricante. No dia 24/06, foi anunciado que o depoimento de irmãos Miranda na CPI prometia “derrubar a República”. No dia 25/06, em depoimento à CPI da Covid, o deputado Luis Miranda disse que Bolsonaro citou o nome do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, como o culpado pelo contrato suspeito da compra da Covaxin.

Evidentemente, trata-se de um grande escândalo de corrupção. O valor de mais de R$ 1,6 bilhão quase daria para a realização do Censo Demográfico, do IBGE, levantamento tão necessário para conhecimento da realidade brasileira e que foi adiado para 2022 por falta de recursos. A população brasileira que sofre com a morbimortalidade provocada pelo novo coronavírus e o aumento do desemprego, da pobreza e da fome começa a perceber que o Presidente da República tem responsabilidade em todo este imbróglio e está diretamente envolvido no escândalo da Covaxin, no mínimo por crime de prevaricação.

O jornalista Josias de Souza observou que ao empurrar a CPI para dentro do gabinete de Bolsonaro, o deputado bolsonarista Luis Miranda (DEM-DF) alargou os horizontes da investigação legislativa e encurtou a margem de manobra do capitão. A Comissão Parlamentar de Inquérito adicionou à sua pauta um tema radioativo: corrupção. Josias diz: “A CPI transforma a aliança Bolsonaro-centrão numa espécie de abraço de afogados”.

Falta muito a ser apurado e mais uma vez a gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde está em questão. Também serão questionados o ministro Onyx Lorenzoni e o ex-número 2 da Saúde, Elcio Franco, que acusaram fraude em um documento e ameaçaram os irmãos Miranda, ao invés de investigar as denúncias. Tudo isto acontecendo na semana em que o ministro Ricardo Salles pediu demissão para não ser preso, dentre outras acusações de ecocídio, por contrabando de madeira da Amazônia. Além de tudo, o presidente viu sua rejeição bater novos recordes na mais recente pesquisa de opinião do IPEC e terá que enfrentar uma nova rodada de protestos marcada para o dia 03 de julho de 2021.

Mais: Dez razões para comemorar a queda do pior ministro do Meio Ambiente da história do Brasil

Cresce a percepção de que Jair Bolsonaro não tem propostas para resolver os problemas sociais e que não está preocupado em salvar vidas. Porém, cabe ao Presidente da República proteger a população e o território nacional. Sem ações efetivas, o Brasil vive o drama de famílias despedaçadas, são muitos pais que perderam os filhos, filhos que perderam os pais, cônjuges que perderam cônjuges, irmãos que perderam irmãos, parentes que perderam parentes, amigos que perderam amigos, trabalhadores que perderam colegas de trabalho e brasileiros que perderam mais de 500 mil conterrâneos. A história julgará se ocorreu crime de genocídio, mas cresce a percepção de que o impeachment é a vacina sim mais eficaz na atual conjuntura.

 Frase do dia 27 de junho de 2021

 “A nossa pátria mãe tão distraída

Sem perceber que era subtraída

Em tenebrosas transações”

Vai passar, Chico Buarque

Referências

ALVES, JED. Diário da Covid-19: Brasil chega a meio milhão de mortes, #Colabora, 20/06/21

Ascânio Seleme. Não dá mais para disfarçar o cheiro de podre, O Globo, 26/06/2021

Josias de Souza. CPI transforma a aliança Bolsonaro-centrão numa espécie de abraço de afogados”, UOL, 26/06/2021

 

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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