Diário da Covid-19: Brasil bate todos os recordes semanais da pandemia

Casal de idosos caminha em Ipanema, no Rio, vestido de astronauta, na semana em que o Brasil bateu o recorde de mortes e casos (Foto: Fabio Teixeira/Andalou/AFP)

Levado pelo descaso e desinformação do governo federal, o país está na deplorável situação de ter a economia enfraquecida e a doença em expansão

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 26 de julho de 2020 - 11:23 • Atualizada em 8 de agosto de 2020 - 12:29

Casal de idosos caminha em Ipanema, no Rio, vestido de astronauta, na semana em que o Brasil bateu o recorde de mortes e casos (Foto: Fabio Teixeira/Andalou/AFP)

A situação está extenuante. O Brasil bateu novos e ignominiosos recordes da quantidade de pessoas infectadas e do montante de vidas perdidas, na trigésima semana epidemiológica (30ª SE de 19 a 25 de julho). O país superou todas as cifras anteriores, ao longo de cinco meses, desde que houve o primeiro caso confirmado de um homem de 61 anos que testou positivo para o Sars-CoV-2, em São Paulo, em  26 de fevereiro de 2020. Na 30ª SE, o país contabilizou 319,6 mil casos e 7,7 mil óbitos, com uma média de 45,7 mil pessoas infectadas e de 1.097 vítimas fatais a cada 24 horas.

O Brasil está colhendo a safra de uma má plantação. Não defendeu o terreno, não fez a prevenção adequada e não realizou um isolamento social efetivo para barrar a propagação do novo coronavírus. Desta forma, as curvas de casos e de mortes subiram até atingir um platô elevado nos últimos meses. Mas ao invés de corrigir o malfeito, o governo resolveu fingir que nada acontecia e apoiou as iniciativas para a liberação e a flexibilização da economia e das atividades sociais num momento em que havia um crescimento exponencial do surto pandêmico. Assim, o país foi derrotado pelo vírus e a epidemia se alastrou pelas capitais e pelo interior dos estados. Com o crescimento da doença, a curva de mortalidade, que estava estabilizada, retomou a tendência de alta. 

O ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello (que não tem formação nas ciências médicas), foi alertado por um comitê técnico da pasta sobre a necessidade de monitoramento e sobre os benefícios do isolamento social para reduzir o impacto da pandemia na saúde e na economia, segundo revelou o jornal “O Estado de São Paulo”. O documento (de 25 de maio) também dizia que, sem isolamento, o país poderia levar até dois anos para controlar a emergência sanitária. Mas, contrariando o alerta dos técnicos e conselheiros do Ministério da Saúde, Pazuello optou por seguir as diretrizes leigas do Presidente da República e orientou a abertura das atividades – sem os devidos cuidados – quando o país apresentava uma curva ascendente de casos e de óbitos da covid-19.

Portanto, as autoridades do Poder Executivo Federal estão colhendo os frutos do descaso e da desinformação. O Presidente da República sempre menosprezou os alertas da ciência, não reconheceu os perigos da pandemia e ainda zombou do sofrimento dos doentes e das vítimas fatais. Bolsonaro apostou num falso dilema entre a covid-19 e as atividades econômicas e, depois de 5 meses de agonia e incertezas, o país está na deplorável situação de uma economia enfraquecida e uma pandemia em expansão. Países como Vietnã, Nova Zelândia, Paraguai e Coreia do Sul apostaram no controle do coronavírus e agora possuem uma pandemia em retração e uma economia em expansão, ao contrário da abominável realidade do maior país da América do Sul.

O panorama nacional

Segundo dados do Ministério da Saúde, o Brasil chegou, na noite de 25/07, a 2.394.513 pessoas infectadas e a 86.449 vidas perdidas, com uma taxa de letalidade de 3,6%. Foram 51.147 novos casos e 1,211 mortes em 24 horas, um recorde para os sábados. O país tem mantido uma média superior a 1.000 mortes desde o final de maio. No início de junho, o Brasil passou a ocupar o primeiro lugar global no número de vítimas fatais do Sars-CoV-2 (à frente dos EUA em números diários), sendo que a semana passada (30ª SE) foi ainda mais mortífera do que a semana anterior (12 a 18 de julho). 

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Somente nos 7 dias da 30ª SE (19 a 25 de julho) houve o registro de 319.653 pessoas infectadas, número maior do que todos os casos dos primeiros 86 dias da pandemia no território nacional, desde 26/02 (primeiro caso) até 21 de maio. Na comparação internacional, o Brasil teve mais pessoas com testes positivos em 7 dias do que o Reino Unido em toda a pandemia (298 mil casos até 25/07).

Houve também o registro de 7.677 óbitos, número maior do que todas as mortes nos 48 dias do início da pandemia, desde 17/03 (primeira vida perdida para a covid-19) até 04 de maio. Na comparação internacional, o Brasil teve mais vítimas fatais em 7 dias do que a Indonésia (274 milhões de habitantes) em toda a pandemia (4,7 mil mortes até 25/07). Os números são persuasivos e a tendência é de alta. O Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde (IHME) da Universidade de Washington, nos EUA, prevê que o pico da mortalidade no Brasil deve ocorrer apenas em setembro de 2020.

O gráfico abaixo mostra os valores diários das variações dos casos e das mortes no Brasil da 17ª semana epidemiológica (SE) a 30ª SE (de 18 de abril a 25 de julho de 2020). Nota-se que todas as baixas acontecem nos fins de semana e as elevações nos dias úteis. Mas as linhas (pontilhadas) da tendência polinomial de terceiro grau, apresentam uma suavização das oscilações sazonais e indicam uma extrapolação para os próximos 7 dias. Observa-se que a tendência de queda do número diário dos casos ocorrida na 29ª SE foi totalmente revertida na 30ª SE. No caso das mortes, a linha pontilhada vermelha mostra que a curva que estava estacionada em alto platô, acima de 1 mil mortes diárias por quase 2 meses, voltou a subir.  

O gráfico abaixo mostra a variação média diária do número de casos no Brasil, nas diversas semanas epidemiológicas (SE). Nota-se que o número de pessoas infectadas passou da média de 397 casos na 13ª SE (variação relativa de 19,4% ao dia), para 37.620 pessoas na 27ª SE (2,6% ao dia), um aumento de quase 100 vezes. Houve uma queda nas duas semanas seguintes e um grande salto para 45.665 casos na média diária da 30ª SE. Como sempre fazemos todos os domingos e para contribuir  com as avaliações das tendências epidemiológicas, apresentamos uma projeção para a 31ª SE (26 a 01/08), que estima 47.102 casos diários no Brasil, com aumento relativo de 1,86% ao dia.

O gráfico abaixo mostra que o número de vítimas fatais foi de 13 óbitos ao dia na 13ª SE (29,7% ao dia) e passou para 976 óbitos diários na 22ª SE (4% ao dia). Nas semanas seguintes o número diário oscilou em torno de 1.000 óbitos e bateu o recorde de 1.097 óbitos na 30ª SE (com 1,34% ao dia). Devido ao processo de flexibilização da quarentena que contribuiu para aumentar o número de casos e em decorrência do aumento da taxa de ocupação hospitalar, nossa projeção indica que deve haver um aumento para 1.113 mortes diárias na 31ª SE (26 a 01/08), com variação relativa de 1,24% ao dia.

O panorama global

O dia 25 de julho registrou a marca mundial de 16,2 milhões de casos e de 648 mil mortes, com uma taxa de letalidade de 4,0% . Foram 258 mil casos e 5,7 mil óbitos em 24 horas. 

No gráfico abaixo, a curva do número de casos parecia indicar uma reversão em meados de abril, começando a esboçar um declínio. Porém, manteve a tendência de alta e acelerou a subida, com um recorde de quase 300 mil casos no dia 24 de julho. A liderança absoluta dos novos casos coube aos EUA, seguido de Brasil e Índia. 

A curva de mortalidade apresentou uma variação máxima diária em 16 de abril com cerca de 10 mil óbitos. A partir deste dia houve queda até o valor de cerca de 4 mil óbitos no dia 25 de maio. Porém, a variação diária voltou a subir e manteve uma média de quase 6 mil mortes diárias na 30ª SE. O Brasil sozinho respondeu por 1.097 mortes, representando 19% da mortes globais. 

Ou seja, a pandemia que parecia estar diminuindo o ritmo com a redução dos casos e das mortes, principalmente com o controle conseguido na Europa, voltou a apresentar alto número absoluto de casos e de mortes (mesmo com queda dos números relativos). O ajuste polinomial indica a continuidade do aumento da morbimortalidade na próxima semana. 

O gráfico abaixo mostra o número médio diário de casos nas diversas semanas epidemiológicas (SE). Na 10ª SE (de 01 a 07 de março) houve 3 mil pessoas contaminadas por dia. Os números foram crescendo até 83 mil casos diários na 15ª SE, mas apresentaram uma queda até a 18ª SE. Porém, os casos diários voltaram a crescer até chegar a 254 mil pessoas infectadas por dia na  30ª SE (19 a 25 de julho). Enquanto o mês de março registrou 714 mil casos (23 mil pessoas infectadas por dia), o mês de julho deve acumular cerca de 7 milhões de casos (237 mil pessoas infectadas por dia). O mês de julho deve apresentar 10 vezes mais casos globais do que o mês de março, mostrando que a pandemia continua se expandindo pelo mundo.

 

 

O gráfico abaixo mostra que na 10ª SE (de 01 a 07 de março) houve cerca de 100 mortes por dia, mas este número subiu rapidamente até o pico de 7,4 mil mortes diárias na 16ª SE (12 a 18 de abril). A partir daí os números caíram até 3,9 mil óbitos diários na 22ª SE (24 a 30 de maio) e voltaram a crescer chegando a 5,7 mil óbitos diários na 30ª SE. No mês de março houve 1,27 mil mortes diárias e nos primeiros 25 dias de julho foram 5,23 mil mortes diárias. Se o ritmo continuar subindo o mundo pode ter um novo pico em agosto ou setembro.

 

Os dados globais mostram que a pandemia continua avançando globalmente, com destaque para as Américas, o Sul da Ásia, o Oriente Médio e a África do Sul. O Brasil bateu o recorde do número absolutos de casos e de mortes na 30ª SE e tem mantido cerca de 20% dos números globais, embora tenha apenas 2,7% da população mundial. O Brasil tem sido um caso excepcional no mundo, pois a grande maioria dos países atravessaram o pico da curva de mortalidade cerca de 40 a 50 dias depois do início do surto. O Brasil já está há 130 dias depois da primeira morte e ainda não apresenta sinais claros de declínio consistente do número de óbitos. 

O Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde (IHME), da Universidade de Washington, considera que o Brasil ainda não atingiu o pico das mortes. O gráfico abaixo apresenta 3 cenários para os próximos meses até o dia 01 de novembro. Na hipótese de maior abertura da economia e das atividades sociais o número diário de vidas perdidas chegaria a 1.341 óbitos no dia 20 de setembro e cairia para 818 óbitos diários em 01 de novembro. Na hipótese intermediária, o pico aconteceria no dia 04 de setembro com 1.220 óbitos em 24 horas. E na hipótese de maior isolamento e de uso generalizado de máscaras e outras medidas preventivas o número de óbitos já estaria baixando e chegaria a 282 óbitos diários em 01 de novembro. 

Em termos de números acumulados de mortes, os três cenários do IHME para o dia 01 de novembro indicam 198.744 óbitos na hipótese alta, 176.791 óbitos na hipótese intermediária e 151.033 óbitos na hipótese baixa. Ou seja, o Brasil deve chegar ao dia de finados (02/11) com um mínimo de 150 mil mortes pela covid-19.

Os dados acima estão mostrando que tanto no mundo, mas principalmente no Brasil, o número de pessoas infectadas pelo Sars-CoV-2 e o número de vítimas fatais não tem cedido. Todavia, a despeito do crescimento acelerado do impacto da Covid-19,  em todas as Unidades da Federação houve aumento na circulação de pessoas no mês de julho. Mas como o número efetivo de reprodução (R) está acima de 1, em média, cada paciente transmite a doença a pelo menos mais uma pessoa, e o vírus vai se disseminando pelo território nacional. O número de casos cresce e, em consequência, aumentam as mortes. 

A pandemia não dá trégua, mas o ministro Pazuello descumpriu as promessas de entregar testes de diagnóstico, leitos de UTI, respiradores e equipamentos para proteção individual para os Estados e municípios. Ao mesmo tempo, o presidente Bolsonaro não perde oportunidade de fazer propaganda da hidroxicloroquina e o Ministério da Saúde acumulou, inutilmente, estoques do remédio que não serve para evitar o falecimento dos pacientes. O artigo “Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate Covid-19” (Cavalcanti et. al., 23/07/2020), publicado na prestigiosa revista acadêmica New England Journal of Medicine, contestou a eficácia da cloroquina no tratamento da Covid-19, reforçando o consenso médico sobre o diversionismo dos defensores desta panaceia.

Como o Brasil não controlou a pandemia vai ter que pagar uma alto preço na economia. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) publicou um novo relatório no dia 15 de julho, onde atualiza suas projeções e mostra que a situação da recessão econômica se agravou na América Latina. A forte contração em 2020 se traduzirá em uma queda de cerca de 10% no PIB per capita da América Latina e do Brasil. 

A Cepal diz que depois de praticamente haver uma estagnação entre 2014 e 2019 (quando o crescimento médio anual foi de apenas 0,1%), a queda no PIB per capita implica um declínio de dez anos, pois o nível em 2020 será semelhante ao registrado em 2010. A população latino-americana não só está mais pobre, como voltou ao nível de renda per capita prevalecente no ano de 2010. Os problemas do continente e do Brasil são cada vez mais desafiadores.

Os 100 anos do nascimento de Celso Furtado 

No dia 26 de julho de 2020, Celso Furtado (1920-2004) completaria 100 anos. Ele nasceu em Pombal, na Paraíba, formou-se em Direito no Rio de Janeiro, serviu na Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), doutorou-se em Economia na França no pós-guerra e, em 1949, mudou-se para Santiago, no Chile, para integrar os quadros da recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL).

A mídia brasileira tem prestado homenagem ao pesquisador e escritor que é considerado o maior economista da história do Brasil. Porém, quase todas as reportagens destacam apenas o lado desenvolvimentista do autor e não dão os devidos créditos ao livro “O mito do desenvolvimento econômico”, de 1974, quanto ele discorre sobre o principal problema global da atualidade que a relação entre o desenvolvimento econômico e a degradação ambiental. 

Furtado, de forma inovadora para o pensamento brasileiro, mostrou que o padrão de produção e consumo hegemônico seria impossível de se generalizar, pois o crescimento ilimitado da economia seria irrealizável em decorrência dos limites da exploração dos recursos naturais e da resiliência ecológica. Ele pergunta e dá a resposta:

(…) que acontecerá se o desenvolvimento econômico, para o qual estão sendo mobilizados todos os povos da terra, chegar efetivamente a concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos ricos chegam efetivamente a universalizar-se? A resposta a essa pergunta é clara, sem ambiguidades: se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso (Furtado, 1974, p. 19). 

Influenciado pelos fundadores da Economia Ecológica, o economista paraibano que, em 1997, virou imortal da Academia Brasileira de Letras, foi muito corajoso de tocar em assuntos tão desafiadores naquele momento histórico brasileiro. Quase 50 anos depois, o mundo vive uma emergência sanitária e uma emergência econômica e social e o pensamento de Celso Furtado permanece útil para se pensar o modelo de desenvolvimento hegemônico global, os fundamentos do nosso subdesenvolvimento e a relação entre o ser humano e a natureza. 

Frase do dia 26 de julho de 2020

“A evidência à qual não podemos escapar é que em nossa civilização, a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico” 

Celso Furtado (26/07/1920 – 20/11/2004)

 

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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