Da solidão à sobrecarga: as dificuldades de lidar com o Alzheimer na pandemia

Pesquisa da USP revela que isolamento social tem impacto direto na vida de quem sofre da doença e também de seus cuidadores

Por Júlia Amin | ODS 3 • Publicada em 19 de maio de 2021 - 08:26 • Atualizada em 21 de novembro de 2022 - 15:31

Ilustração: Claudio Duarte

Ilustração: Claudio Duarte

Pesquisa da USP revela que isolamento social tem impacto direto na vida de quem sofre da doença e também de seus cuidadores

Por Júlia Amin | ODS 3 • Publicada em 19 de maio de 2021 - 08:26 • Atualizada em 21 de novembro de 2022 - 15:31

Há um ano, Luciana Silva e Horta escreveu um texto-desabafo no bloco de notas de seu celular sobre como o isolamento social decorrente da pandemia de covid-19 deixou ainda mais latente a dificuldade de cuidar da mãe com Alzheimer e o seu sentimento de solidão. Filha de dona Ivete, de 90 anos, Luciana era executiva de uma fábrica de carros, mas decidiu abandonar a carreira há seis anos para se dedicar aos cuidados da mãe, diagnosticada com Alzheimer em 2010. As duas vivem juntas em Belo Horizonte e tinham uma rotina de passeios diários até a pracinha, onde dona Ivete costumava andar descalça na grama e participava das conversas com as amigas de Luciana. Com a chegada do novo coronavírus e a necessidade do isolamento social, dona Ivete ficou restrita à vida no apartamento e às rápidas descidas ao térreo do prédio. As visitas de familiares, que já eram raras, acabaram de vez. Luciana passou a ser a única referência para a mãe. E vice-versa. 

Alzheimer na pandemia: Luciana Silva e Horta com a mãe, dona Ivete
Luciana Silva e Horta com a mãe, dona Ivete, de 90 anos (Foto: arquivo pessoal)

“Hoje, sou eu e ela, ela e eu. Minha mãe perdeu o contato com o mundo e com a própria família. Todos desapareceram do mapa, ninguém vem mais nos visitar. Percebi que ela teve um declínio muito grande, com a pandemia o Alzheimer avançou. Foi exatamente neste período que ela perdeu totalmente a comunicação”, relata Luciana.

Hoje, dona Ivete não consegue mais pronunciar o próprio nome, está mais abatida, apática e 100% dependente da filha, segundo relata Luciana, que, por sua vez, se sente exausta. Quando não está cuidando da mãe, geralmente durante a noite, período em que Ivete dorme, ela aproveita para fazer docinhos para vender. No pouco tempo que sobra, não sente vontade de fazer nada.  

O relato de Luciana não é um caso isolado, como mostra esta série de reportagens “Na pandemia, com Alzheimer”. Pesquisa realizada por médicos do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) revela que a pandemia teve impacto direto tanto para os pacientes com Doença de Alzheimer (DA) e outras demências quanto para os cuidadores. Foram entrevistados 100 pacientes, sendo 71 idosos com transtornos neurocognitivos/psicogeriátricos e 29 adultos com Síndrome de Down. No grupo dos idosos, 65% relataram que houve aumento de ansiedade; 44% tiveram sensação de insegurança, 38% sentiram aumento de desânimo e 35%, de irritabilidade. As entrevistas foram feitas por telefone e por meio de questionários online entre os meses de abril e junho de 2020.

A impossibilidade de sair de casa foi apontada pelos idosos como o aspecto principal que contribuiu para o agravamento dos distúrbios de saúde mental (56%), seguida pelo próprio isolamento social (43%). A pesquisa também mostrou que cuidadores notaram piora do estado cognitivo em 34 idosos. Entre os sintomas novos ou mais prevalentes estão: agravamento da desorientação e confusão, percebido em 59% dos pacientes, interrompimento de realizar tarefas habituais (50%), maior dependência (47%) e piora da desorganização (44%). 

Psiquiatra, pesquisador do Laboratório de Neurociências (LIM-27) do HCFMUSP e um dos autores do estudo, Marcos Vasconcelos Pais explica que foi possível notar uma alta correlação entre a piora dos sintomas neuropsiquiátricos presentes nos idosos com demência (como apatia, irritabilidade, prejuízo do sono, distúrbios do movimento e psicose) e o aumento do sentimento de sobrecarga dos cuidadores. Assim como relatou Luciana, a apatia foi o sintoma apontado como mais difícil de cuidar e que teve uma maior relação com a percepção de aumento de sobrecarga. “O paciente de Alzheimer apático é aquele pouco responsivo, pouco interessado no ambiente. E diante da apatia não há muitas medidas individuais que possam ser adotadas e possam ter impactos positivos. O cuidador fica de mãos atadas, sem saber o que fazer”, ressalta Pais, complementando que apenas 30% dos pacientes com Alzheimer fizeram uso de novos medicamentos na pandemia diante dessa alteração dos sintomas. 

Embora não tenha sido objeto de sua pesquisa, ele explica que intervenções comportamentais costumam ter maior impacto positivo em relação ao uso de remédios. Um outro artigo sobre a doença de Alzheimer publicado em abril deste ano por pesquisadores da USP e da Universidade Federal de Juiz de Fora com membros da Escola de Medicina de Harvard e do Massachusetts General Hospital, ambos em Boston, nos Estados Unidos, faz uma revisão histórica de intervenções capazes de aliviar e prevenir os sintomas de saúde mental durante períodos de pandemia e de crise. Na lista de medidas adotadas estão: mediação psicológica e psiquiátrica, incluindo o teleatendimento, prática de exercícios físicos, terapias com música, técnicas de respiração, sociabilização, a importância de estabelecer uma rotina, entre outras. 

Alzheimer na pandemia
Foi observando o comportamento de sua mãe, dona Francisquinha, que a carioca Claudia Alves desenvolveu um método de cuidado próprio (Foto: arquivo pessoal)

Foi observando o comportamento de sua mãe e os estágios da doença que a carioca Claudia Alves desenvolveu um método de cuidado próprio. Quando dona Francisquinha, de 86 anos, foi diagnosticada com Alzheimer em 2010, Claudia abandonou o trabalho como corretora de imóveis. Ela conta que começou a pesquisar sobre a doença, mas ficou decepcionada com a quantidade de relatos negativos. Decidiu, em 2016, criar um canal no YouTube para mostrar a rotina de Francisquinha, falar suas impressões e dicas, mas sempre de forma leve.

“Sozinha fui observando os momentos de agressividade da minha mãe e fui criando uma forma de falar e um jeito para lidar. A coisa foi começando a fluir. Não basta só conhecer a doença, tem que saber o que vai acontecer em cada fase. Saber que vai chegar um dia e ela vai fazer xixi no meio da sala, e esse momento deve ser tratado com afeto. Não adianta se estressar e brigar”, explica ela, que passou a promover lives e cursos sobre o método que desenvolveu.

Claudia conta que, mesmo com toda dedicação, viu progredir durante a pandemia o Alzheimer da mãe. O confinamento, a falta dos exercícios físicos e a alteração da rotina deixaram a idosa mais nervosa, agitada, com distúrbios de sono e esteticamente mais curvada. 

Professora de educação física e especialista em saúde de idosos, Marina Boechat ressalta a importância da prática regular de exercícios físicos mesmo durante a pandemia. Em 2019, foi comprovado por cientistas da UFRJ que o hormônio chamado Irisina, produzido e liberado pelos músculos durante a prática de atividades físicas, tem papel importante na prevenção do Alzheimer. Além disso, os exercícios são fundamentais para a manutenção da capacidade funcional, da autonomia e da independência dos idosos. “Notei uma piora física e cognitiva dos meus alunos neste último ano. O isolamento e a inatividade física, a falta de contato com os familiares contribuíram para esse declínio. Gosto de frisar que os idosos devem ser tão ativos quanto sua capacidade funcional permitir. Nesse sentido, todo tipo de movimento conta: caminhar pela casa, subir escadas, levantar e sentar da cadeira, carregar sacolas”, aconselha ela. 

Sentindo-se sobrecarregada, Claudia decidiu, em setembro, contratar uma cuidadora e retornar com as caminhadas diárias de dona Francisquinha, que faz uso de canabidiol e também teve sua dosagem ajustada pelo médico. Desde então, Claudia afirma que a mãe ficou mais calma, o que gera consequências diretas na sua própria qualidade de vida. “Muitas vezes, nós que somos cuidadores, já temos uma vida isolada socialmente. Eu sempre tive uma rede de apoio, mas a maioria dos cuidadores vive em isolamento há muitos anos. Conhecer o funcionamento da doença é essencial para recuperarmos nossa qualidade de vida”, conta. 

Alzheimer na pandemia: quem cuida do cuidador?

Lançado no início deste mês pela Editora Manoele, Práticas para a saúde mental do cuidador é um manual de bolso com mandamentos para cuidadores, sejam eles familiares ou profissionais. O livro surgiu da observação de casos clínicos feita por Marcos Vasconcelos Pais junto com os psiquiatras Julia Cunha Loureiro e Orestes Vicente Forlenza. O mandamento número 1 do livro é que todo cuidador precisa cuidar de si.

Os autores recomendam a criação de uma escala de horários de trabalho. Afirmam também que é essencial ter momentos para praticar atividades físicas, fazer cursos, se alimentar de forma adequada e ter uma vida cultural. “O cuidador na maioria das vezes acaba sendo cuidador 24 horas por dia. Ele se anula e fica completamente desgastado, o que gera impacto na rotina de cuidado, aumenta o índice de negligência e de tratamentos inadequados, justamente porque essas pessoas estão exaustas”, resume Pais. O livro poderá ser comprado pelo site da editora. 

“Muitos cuidadores pensam o próprio trabalho como uma missão pessoal, uma missão de vida, e isso tem um peso muito grande, causa uma angústia. O livro sai desse lado romântico e traz uma dimensão mais prática do trabalho”, finaliza Pais.  

Júlia Amin

Júlia Amin é mestranda em Comunicação e Cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde se formou em Jornalismo. Por mais de cinco anos, atuou como repórter no jornal "O Globo" na cobertura de temas diversos, como Cidade, Cultura e Comportamento. Também passou pelas redações dos jornais "Extra" e "O Dia".

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Um comentário em “Da solidão à sobrecarga: as dificuldades de lidar com o Alzheimer na pandemia

  1. Cleanshirley disse:

    Eu, cuidei da minha mãe durante dez anos e foi uma luta. Fasem três anos que ela se foi e eu sinda não encontrei sentido de viver. E muito duro ! pois quem cuida no final fica sozinho sem companhia e sem amigos. Sinto saudades dela e de todas as suas manias eu tinha sentido pra viver e me sentia útil. continuo levando a vida sozinha sem ela…. Mas tô bem e aconselho a todos que vivem essa experiência para nunca se lamentar pelas dificuldades que encontram pois é o momento mais feliz das suas vidas.

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