Diário da Covid-19: coronavírus avança como um tsunami sobre o Brasil

País caminha célere para ter 4 milhões de infectados e 200 mil mortos até o final de setembro

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 20 de junho de 2020 - 10:25 • Atualizada em 22 de junho de 2020 - 09:18

Uma menina indígena da tribo Ticuna recebe assistência médica em um posto de saúde na vila de Umariacu, em Tabatinga, no Amazonas. Foto Evaristo Sá/AFP

O Brasil ultrapassou a marca de 1 milhão de casos reconhecidos e registrados da covid-19 no dia de ontem (19/06). Se levarmos em conta as subnotificações, os números reais são ainda maiores. Entre todas as nações da comunidade internacional, nosso país se manteve na liderança diária dos números globais de casos e de mortes. O coronavírus avança sobre o país como um tsunami implacável. Eu, que sou constantemente acusado de pessimista, confesso que não imaginava este cenário há três meses. O primeiro artigo que escrevi para o #Colabora sobre o novo coronavírus, elaborado no final de março e publicado no dia 03/04, dizia que até o dia  30 de junho: “Número de infectados no Brasil pode chegar a 380 mil”. Meu erro foi enorme, pois, provavelmente, teremos algo perto de 1,380 milhão de infectados no dia 30 de junho. Um erro de 1 milhão. Reconheço que fui esperançoso em excesso.

Sem embargo, o erro ocorrido em função do meu otimismo naquele momento não estava localizado nas contas ou no modelo matemático. A diferença entre os números projetados e os números observados aconteceu em decorrência dos pressupostos adotados.

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O otimista é um pessimista mal informado

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No final de março, imaginei que o Brasil conseguiria criar uma barreira sanitária razoável para impedir a propagação do coronavírus, se não para as grandes capitais, pelo menos para as cidades do interior. Imaginei que o isolamento social evitaria a propagação comunitária do vírus dentro das grandes cidades e que alguns bairros seriam protegidos. Imaginei que haveria rastreamento e monitoramento dos doentes. Imaginei que o dinheiro da saúde seria direcionado para salvar vidas e não para a compra de respiradores e equipamentos superfaturados. Imaginei que o Ministério da Saúde iria agir segundo a ciência e os protocolos universalmente aceitos da epidemiologia e que ficaria sob comando de um médico competente e não de militares sem experiência nas ciências médicas. Imaginei que haveria uma sinergia entre o Poder Público e a sociedade civil. Imaginei que o presidente da República promoveria a harmonia entre os três Poderes e mobilizaria seu governo para evitar um grande número de vítimas fatais, deixando de lado o negacionismo, a guerra ideológica e os interesses particulares dos clãs que ocupam o Palácio do Planalto.

Sem dúvida, eu estava errado e meu efêmero otimismo se esvaiu. Porém, meus críticos não podem negar que eu tentei apresentar um pensamento positivo. Pensei que o Brasil iria evitar a primeira onda. Quando a onda se mostrou imparável, imaginei que iríamos achatar a curva e minimizar os danos. Quando o Brasil alcançou o segundo lugar global no número de casos e de mortes, não obstante ter perdido as ilusões, ainda assim imaginei que iriámos evitar uma segunda onda e iniciar o processo de redução do número de doentes e de mortes.

Por dever profissional, sigo os preceitos da demografia que nos ensina a fazer projeções e, normalmente, recomenda adotar três cenários, um pessimista, um médio e um cenário otimista. Além disto, recomenda-se rever os pressupostos à medida em que os dados vão se acumulando e novas informações vão surgindo. Pois bem, neste momento, três meses depois da primeira morte (em 17/03) pela covid-19, não resta mais dúvidas de que o país vive, não simplesmente ondas sucessivas, mas um tsunami do Sars-CoV-2. De fato, está difícil ser otimista com a conjuntura nacional.

Mas cabe esclarecer que o descontrole da pandemia que ocorre no Brasil não era uma fatalidade que estava “escrita nas estrelas”. O novo coronavírus é uma ameaça séria, mas não uma sina inscrita no destino nacional. Vários países conseguiram evitar os estragos dramáticos da covid-19. Países como o Vietnã (97,3 milhões de habitantes), Camboja (16,6 milhões) e Butão (771 mil habitantes) tiveram zero mortes. Taiwan (23,8 milhões de habitantes) teve 7 mortes e Nova Zelândia (5 milhões de habitantes) teve 22 mortes. Na América Latina, o Paraguai (7,1 milhões de habitantes) teve 1.336 casos e 13 mortes e a Costa Rica (5 milhões de habitantes) teve 2.058 casos e somente 12 mortes. A própria China (1,44 bilhão de habitantes) possui números de casos e de mortes cerca de 12 vezes menores do que os do Brasil.

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Não é mais questão de ser otimista ou pessimista. Não há como negar que o despreparo e a irresponsabilidade transformaram as ondas de coronavírus em algo maior. Só a comparação com um grande tsunami explica o fato de estarmos há 3 meses neste sofrimento e, tudo indica, vamos continuar sofrendo ainda mais durante os próximos 3 meses e além.

Fotógrafo usa máscara especial de proteção na cobertura do jogo entre Flamengo e Bangu no Maracanã. Foto Thiago Ribeiro/AGIF
Fotógrafo usa máscara especial de proteção na cobertura do jogo entre Flamengo e Bangu no Maracanã. Foto Thiago Ribeiro/AGIF

O panorama nacional

O Ministério da Saúde informou, no início da noite de sexta-feira (19/06), que o país atingiu 1.032.913 casos e 48.954 óbitos pela covid-19, com uma taxa de letalidade de 4,7%. O número diário de pessoas infectadas foi de impressionantes 54.771 casos.

Somente no estado de São Paulo foram 19.030 novos registros da Covid-19 em um dia. Contudo, isto reflete a subnotificação ocorrida nos dias em que o estado teve problemas com o sistema e-SUS, plataforma do Ministério da Saúde que é usado para notificação de casos leves de Covid-19. De qualquer forma, os 54,7 mil casos é recorde mundial, pois o máximo anterior foi registrado nos EUA com pouco menos de 40 mil casos em um dia.

Para efeito de comparação, a Indonésia, com população de 273 milhões de habitantes, teve o primeiro caso do novo coronavírus no dia 02 de março e 3,5 meses depois tem no acumulado 44 mil casos, cifra muito menor do que os 54,7 mil registros do Brasil apenas no dia 19/06. Provavelmente, os números de ontem devem representar o pico das variações diárias. Mas a análise estatística mostra que depois do pico o número de casos continua avançando no mínimo 3 ou 4 vezes o valor antes do pico. Ou seja, se o lado esquerdo da curva antes do pico teve 1 milhão de casos confirmados, então o lado direito deverá ter 3 ou 4 milhões de novos casos.

Portanto, se no início de abril escrevi um artigo estimando (erradamente por falta) o valor de 380 mil casos no dia 30 de junho, agora a previsão é que o Brasil atinja no mínimo 4 milhões de casos até 30 de setembro de 2030. Tomara que desta vez meu erro seja por excesso e que a realidade nos surpreenda positivamente. Veremos!

O número diário de mortes registradas no dia 19/06 foi de 1.206. É um valor menor do que o pico de 1.473 óbitos registrados no dia 04 de junho. Porém, tudo indica que o número médio de mortes na atual semana epidemiológica (25ª SE) ficará em um platô elevado, equivalente ao ocorrido nas últimas 3 semanas, em torno de 1 mil mortes diárias. Assim, as estatísticas também indicam que o lado direito da curva de mortes é no mínimo 3 vezes maior do que o lado esquerdo da curva. Teremos, então, algo em torno de 150 mil mortes nos próximos 3 ou 4 meses. Somando os dois lados da curva o Brasil pode acumular cerca de 200 mil mortes até o dia 30 de setembro de 2020. Tomara que também neste, se estiver errado, seja por excesso e que a realidade nos surpreenda positivamente.

Como de costume, apresentamos o gráfico abaixo que mostra os valores diários das variações dos casos e das mortes no Brasil de 01 março até o dia 19 de junho de 2020. Nota-se que todas as baixas acontecem nos fins de semana e as elevações nos dias úteis. Mas as linhas (pontilhadas) de tendência polinomial de terceiro grau apresentam uma suavização das oscilações sazonais e indicam uma extrapolação para os próximos 7 dias. Observa-se uma clara tendência ao aumento diário dos casos, que estão girando acima de 30 mil novas pessoas infectadas por dia.

No caso das mortes, a linha pontilhada vermelha mostra que a curva está estacionada em alto platô, acima de 1 mil mortes diárias. Pelo ajuste polinomial de terceiro grau não existe tendência nem de subida e nem de decida. A estabilidade da curva indica que o Brasil deve manter este número elevado nos próximos dias, deixando o país no primeiro lugar no triste ranking mundial de número de mortes diários.

O panorama global

O mundo atingiu 8,8 milhões de pessoas infectadas pela covid-19 no dia 19 de junho de 2020 e 428 mil vidas ceifadas, com uma taxa de letalidade de 5,3%.

No gráfico abaixo, a curva do número de casos parecia indicar uma reversão em meados de maio e começar a decrescer. Porém, manteve a tendência de alta e acelerou a subida, com um recorde impressionante de cerca de 180 mil casos em um só dia. A liderança absoluta coube ao Brasil com cerca de 55 mil casos. Em segundo lugar veio os EUA com cerca de 34 mil casos. Em terceiro a Índia com cerca de 15 mil casos. Em quarto a Rússia com 8 mil casos. Em quinto o Chile com mais de 6 mil casos, em sexto o México com pouco menos de 6 mil casos e em sétimo lugar o Paquistão com 5 mil casos.

Mas o mais grave é que a curva de mortes que indicava uma perspectiva de baixa, inverteu a tendência e agora indica uma perspectiva de alta. Também neste caso a liderança coube ao Brasil com mais de 1,2 mil óbitos em 24 horas. Em segundo lugar os EUA com 719 mortes. O México em terceiro com 667 mortes. A Índia em quarto com 366 mortes e o Chile em quinto lugar com 252 mortes no dia 19/06.

Ou seja, a pandemia que parecia estar diminuindo o ritmo com a redução dos casos e das mortes principalmente na Europa, voltou a colocar o pé no acelerador, mas desta vez com a maior participação do Brasil, da América Latina, da Índia, Paquistão e Bangladesh, além do destaque de alguns países do Oriente Médio e da África (principalmente Egito e África do Sul).

A pandemia avança por todo o mundo e já atingiu mais de 210 países e territórios, sendo que há dois países com mais de um milhão de casos (EUA e Brasil) e há 65 países com mais de 10 mil casos. O coronavírus avança como um maremoto. Mas alguns países souberam se preparar e se defender, enquanto outros foram lenientes com a covid-19. Os países que foram firmes e perseverantes enfrentaram apenas uma “marolinha”. Diversos outros enfrentaram uma grande onda, alguns estão enfrentando uma segunda onda, os EUA são o país mais afetado, mas, na média nacional, já apresentam tendência de redução dos casos e das mortes.

Mas o epicentro global é o maior país da América do Sul que tem se mantido na liderança do horrendo ranking do número diário de casos e de mortes. E o mais incrível é que, no meio desta onda toda e em uma semana de tristes recordes, o presidente da República se preocupou apenas em dar uma declaração defendendo Fabrício Queiroz, e não houve sequer uma palavra presidencial no sentido de combater o Sars-CoV-2. As famílias brasileiras ainda aguardam uma manifestação de solidariedade e pesar por seus mais de 1 milhão de doentes e dezenas de milhares de vítimas fatais. Se o Palácio do Planalto não se digna a cumprir o seu dever constitucional, fica difícil ser otimista com o presente e o futuro do país.

Frase do dia 20 de junho de 2020

“O otimista é um pessimista mal informado”

Millôr Fernandes (1923-2012)

Referência

ALVES, JED. Número de infectados no Brasil pode chegar a 380 mil, #Colabora, 03/04/2020

https://projetocolabora.com.br/ods3/numero-de-infectados-no-brasil-pode-chegar-a-112-mil/

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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