Diário da Covid-19: Na Copa América pandêmica o campeão pode ser o coronavírus

Com a maior média de mortos do planeta, América do Sul é o local mais arriscado para se fazer um torneio de futebol neste momento

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 13 de junho de 2021 - 10:03 • Atualizada em 24 de junho de 2021 - 12:55

Um trabalhador carrega cilindros de gás em frente a uma arte da bandeira do Brasil desenhada em uma parede em Calcutá, na Índia. Foto Debarchan Chatteriee/NurPhoto, via AFP. Junho/2021

A Copa América 2021 começa neste domingo, dia 13 de junho, no momento em que o Brasil tem uma média móvel de pessoas infectadas acima de 66 mil casos diários e uma média de quase 2 mil óbitos a cada 24 horas. O torneio organizado pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) acontece no momento em que a América do Sul registra os maiores coeficientes de incidência e mortalidade do mundo. Por conta dos riscos de contágio e de mortes – que aumentam com as viagens e a circulação de atletas, jornalistas e outras pessoas envolvidas na atividade – a Colômbia e a Argentina desistiram de hospedar o evento. Porém, numa articulação entre o ex-presidente da CBF, Rogério Caboclo (afastado do cargo após a denúncia de assédio sexual e moral) e o presidente Jair Bolsonaro, o torneio foi programado para os gramados nacionais.

O jogo de abertura, entre as seleções do Brasil e da Venezuela, está agendado para o final da tarde de domingo, no Estádio Nacional Mané Garrincha, em Brasília. No sábado, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal informou que 12 membros da delegação da Venezuela (cinco jogadores e sete membros da comissão técnica) ficaram isolados em um hotel na Asa Norte, em Brasília, após testarem positivo para a covid-19. Segundo o Ministério da Saúde, o Distrito Federal registrou no dia 12/06 um coeficiente acumulado de incidência de 137,6 mil casos por milhão de habitantes (a média mundial é de 22,6 mil) e um coeficiente de mortalidade de 2.959 óbitos por milhão de habitantes (a média mundial é de 488). Ou seja, o Brasil está sediando uma Copa pandêmica na América do Sul.

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O gráfico abaixo, do jornal Financial Times, mostra a média móvel de 7 dias do número de mortes da covid-19 no mundo, decomposta por países e regiões.  Nota-se que, na dinâmica global, o 1º pico pandêmico ocorreu na semana de 9 a 15 de abril de 2020, com média de 7.031 óbitos diários. O 2º pico ocorreu na semana de 22 a 28 de janeiro de 2021 com média de 14.510 óbitos diários. Entre fevereiro e a primeira quinzena de março, a quantidade de mortes caiu, mas voltou a aumentar e atingiu um 3º pico na última semana de abril. Nos meses de maio e junho os números globais de vítimas fatais estão em queda.

Todavia, a configuração nacional e regional segue ritmos diferenciados. Nos dois primeiros picos, a Europa e os Estados Unidos foram os grandes responsáveis pelo enorme número de vidas perdidas. Mas nos dois últimos meses os destaques são a América Latina e a Índia. Durante todo o mês de maio, um grande surto fez da Índia o epicentro mundial da covid-19. Mas em junho, a América Latina (com 660 milhões de habitantes em 2021) ultrapassou a média de mortes da Índia (com 1,4 bilhão de habitantes). Assim, a Pan América Latina é o atual epicentro da pandemia global.

Com a maior média de mortos do planeta, América do Sul é o local mais arriscado para se fazer neste momento um torneio de futebol como a Copa América

Cabe ressaltar que, dentro da América Latina, o destaque vai para a América do Sul, que possui o maior coeficiente de mortalidade entre todos os continentes do planeta. Como mostra o gráfico abaixo, em termos acumulados, a América do Sul registra 2,2 mil óbitos por milhão de habitantes; a América do Norte, 1,5 mil óbitos por milhão; a Europa, 1,45 óbitos por milhão; o mundo, 486 óbitos por milhão, e a Oceania, apenas 26 óbitos por milhão de habitantes (quase 100 vezes menos do que o continente sul-americano).

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Considerando a média diária de óbitos, o gráfico abaixo mostra que a América do Sul possui o maior coeficiente, com média móvel de 9 óbitos por milhão de habitantes, enquanto o mundo, a Ásia e a América do Norte têm média em torno de 1 óbito por milhão e a África e a Oceania possuem média abaixo de 0,3 óbito por milhão de habitantes. Ou seja, a América do Sul é o local mais arriscado para se fazer um torneio de futebol atualmente.

O gráfico abaixo mostra a situação dos 10 países do continente sul-americano que vão participar da Copa América. O Brasil possui um coeficiente de mortalidade similar ao da média do continente, com 9 óbitos por milhão de habitantes. O campeão atual é o Paraguai com 19 óbitos por milhão, que aparece acima do Uruguai com 16 óbitos por milhão. A Argentina registra 13 óbitos por milhão e a Colômbia 11 óbitos por milhão. O Peru – que possui o maior coeficiente acumulado de mortalidade do mundo – apresenta 10 óbitos diários por milhão. Chile e Bolívia estão com 6 óbitos por milhão e o Equador com 2 óbitos por milhão. A Venezuela – que teve 12 membros da delegação com testes positivos da covid-19 – apresenta números oficiais pequenos, abaixo inclusive da média mundial que é de 1,3 óbito por milhão de habitantes.

A Copa de futebol sul-americana em 2021 chega em um momento crítico da pandemia no continente e em um instante em que o Brasil se aproxima de meio milhão de mortes pelo SARS-CoV-2, estando no limiar de uma terceira onda pandêmica. A taxa de ocupação dos leitos hospitalares está elevada, muitas cidades já preparam novas restrições na mobilidade espacial e o ritmo da vacinação continua lento. Lastimavelmente, interesses escusos deturparam o sentido de um esporte que já foi uma manifestação genuína da cultura popular e se transformou em uma paixão nacional e internacional.

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Copa América: torneio reúne países que batem recordes de casos e de mortes por covid-19

Indubitavelmente, a Copa América em meio à pandemia só se justifica pelo cálculo comercial e político e pela força dos interesses financeiros das confederações que, intencionalmente ou não, contribuem para transformar o futebol em fonte de lucro para poucos e em ópio do povo para muitos. A prioridade atual não deveria ser a competição entre adversários futebolísticos, mas sim a cooperação entre as nações para vencer a morte súbita que tem ceifado tantas vidas. A América Latina não precisa de disputas campais e sim de solidariedade e harmonia para restaurar a saúde nacional e continental.

Os epidemiologistas se posicionaram contra a realização de um campeonato que reúne seleções de países que batem recordes nacionais de casos e de mortes da covid-19. Contudo os conselhos da ciência não encontram eco entre os assessores mais próximos do mandatário máximo da República. O presidente do Brasil insiste em criticar o distanciamento social, sabota o uso de máscaras e desqualifica a efetividade das vacinas. Jair Bolsonaro participou no sábado (12/06) de uma “motociata” nomeada Acelera para Cristo, organizada por simpatizantes evangélicos e por associações de motociclistas. O ato é semelhante aos já realizados no Rio de Janeiro e em Brasília e reuniu grande número de pessoas, promovendo aglomerações, aumentando a probabilidade de transmissão do vírus e contrariando as recomendações das autoridades municipais e estaduais.

A Copa América começa agora e termina em 10 de julho. No dia 21 de junho começa o inverno. Neste ambiente de circulação de pessoas de vários países, de reunião de amigos e familiares para assistir aos jogos em casa ou em bares, de clima mais frio, de briga política quente entre as autoridades das três esferas federativas, de negacionismo científico e de desarmonia entre o poder público e a sociedade civil o que se pode prever, lamentavelmente, é que a terceira onda chegue na forma de um tsunami.

 Frase do dia 13 de junho de 2021

“A morte, surda, caminha ao meu lado

E eu não sei em que esquina ela vai me beijar”

Canto para a minha morte. Composição: Paulo Coelho e Raul Seixas

 

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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