Se você sai do consultório médico, após uma visita de 15 minutos, com uma pilha de prescrições de exames e acredita que eles são um escudo contra possíveis doenças, melhor rever seus conceitos. Você pode estar prestes a ser ‘transformado’ num doente que jamais seria e a passar por um tratamento que não fará diferença alguma ou, pior ainda, causará efeitos adversos no corpo e no bolso. O alerta é de médicos brasileiros que iniciaram no país, com o apoio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma campanha contra o que chamam de ‘epidemia de diagnósticos’ do século 21.
O movimento, inspirado no norte-americano ‘Choosing Wisely’ (Escolhendo com Sabedoria), acaba de ganhar um site hospedado no Portal Proqualis, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz. O objetivo é estimular cada especialidade médica a criar uma lista própria de condutas a serem evitadas, para o bem dos pacientes. A iniciativa surgiu nos Estados Unidos, em 2012, e já se espalhou por vários países, chegando agora ao Brasil.
[g1_quote author_name=”Luíz Cláudio Correia” author_description=”coordenador da campanha no Brasil” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
O excesso é uma forma que os profissionais encontraram de parecerem competentes. É também uma questão mercantilista. Às vezes, a remuneração por exame é baixa, então são pedidos muitos. Equipamentos de alta tecnologia são comprados e ‘precisam’ ser usados
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Veja o que já enviamosA causa de tantos exames e procedimentos nem sempre é nobre. Um exemplo de exagero vem dos Estados Unidos. “Entre as intervenções coronárias, 50% são inadequadas ou incertas”, conta o cardiologista Luiz Cláudio Correia, professor da Escola Baiana de Medicina e coordenador de pesquisa no Hospital São Rafael, em Salvador (BA). “O excesso é uma forma que os profissionais encontraram de parecerem competentes. É também uma questão mercantilista. Às vezes, a remuneração por exame é baixa, então são pedidos muitos. Equipamentos de alta tecnologia são comprados e ‘precisam’ ser usados. É uma distorção”, critica o médico, que trouxe o conceito de ‘Choosing Wisely’ ao Brasil, junto com o hospitalista Guilherme Barcellos.
Por aqui, a iniciativa foi abraçada até agora pelas sociedades brasileiras de Cardiologia e de Medicina de Família. “As entidades que aderirem terão total autonomia para elaborar suas listas, com base em evidências científicas. ‘Choosing Wisely’ tem um papel de reflexão, que envolve paciente e familiares. Eles devem ter informações e discutir escolhas com os médicos”, explica Barcellos, coordenador do Programa de Medicina Interna Hospitalar do Hospital Divina Providência, em Porto Alegre (RS).
As listas serão elaboradas voluntariamente pelos médicos. “Em seguida, elas vão ser centralizadas e divulgadas no portal. Este projeto contará com suporte de consultores internacionais e colaboradores do Proqualis capacitados para auxílio das sociedades médicas, se necessário”, informa Josué Laguardia, vice-diretor do Instituto da Fiocruz.
Em sua lista, a Sociedade Brasileira de Cardiologia recomenda que seja deixada de lado em pacientes assintomáticos uma intervenção que movimenta US$ 10 bilhões por ano: a colocação de stents – pequenos tubos que abrem vasos entupidos por placas de gordura no coração. “O procedimento é invasivo, obriga a pessoa a ficar usando vários remédios depois e não previne infartos, mesmo em quem tem grande placa. Para cada grande, há várias pequenas, que causam boa parte dos ataques cardíacos, pois podem se romper e formar coágulos que provocam entupimento. O stent só é indicado para melhorar casos de angina, dor em repouso e outras situações específicas, como no pós-infarto. O paciente tem o direito de saber disso”, alerta Correia, coordenador do grupo de 12 especialistas que elaborou a relação.
Para ele, qualquer garantia que um médico dê de que um procedimento vai prevenir problemas como infartos é “medicina baseada em fantasia”. “O profissional precisa ser mais científico, o que requer a humildade de reconhecer que não tem controle sobre o destino de um paciente, mas sim a capacidade de reduzir a probabilidade de eventos adversos”, afirma Correia, que edita o blog Medicina Baseada em Evidências.
A Sociedade Brasileira de Medicina de Família está elaborando sua relação, segundo seu diretor-científico, Gustavo Gusso. “Não é por causa dos exames que as pessoas vão viver mais. Alimentação saudável, atividade física e parar de fumar são mais importantes”, orienta.
Epidemia de diagnóstico
Para seus adeptos, a campanha não desestimula o rastreamento preventivo de doenças de alto risco. “O que buscamos é o uso dos exames de forma racional. Medicina não é só assinar pedidos de ressonância”, resume o cardiologista André Volschan, do Centro de Estudos do Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro. Ele explica ainda que a campanha encoraja os pacientes a fazerem pelo menos cinco perguntas aos seus médicos sobre a real necessidade de procedimentos, entre elas o que aconteceria se nada fosse feito.
Então, quais os ‘motivos nobres’ que fazem o médico pedir exames? Segundo Volschan, são as incertezas sobre o diagnóstico ou o prognóstico. “A partir daí, surgem opções complicadas. A menos cruel é a ignorância: pediu porque não sabe. As outras são: não tem tempo de examinar porque a consulta só dura 15 minutos; receia ser processado se não solicitar os exames; acha que o concorrente vai ‘levar’ seu cliente se não fizer os pedidos; ou o próprio paciente exige as prescrições”.
A epidemia de diagnósticos leva a algo pior: o excesso de tratamentos. Para os especialistas, remédios e procedimentos só se justificam se aumentarem a expectativa ou a qualidade de vida do paciente. “Se nenhum dos dois preceitos for atingido, há de se questionar a validade da intervenção”, declara Volschan. Além de problemas físicos, como efeitos colaterais em pessoas que antes nada sentiam, podem surgir os psicológicos. “O indivíduo, que até então vivia normalmente, passa a carregar o estigma de uma doença”, acrescenta.
Os exemplos são inúmeros. “Entre os pacientes com cálculo de vesícula, 10% não sentem nada. Entre os com lesão de menisco, a taxa é de 40%. Com hérnia de disco, 50%. O que fazer? Expor pessoas assintomáticas aos riscos de um centro cirúrgico?”, pergunta o médico. Outro exemplo é a embolia pulmonar, cujo tratamento traz risco de sangramento. “As hemorragias, teoricamente, são muito mais perigosas do que embolias de pequena repercussão clínica”, afirma. Com o advento da tomografia computadorizada de tórax, a ‘incidência’ da doença subiu 80%, dos anos 80 para os 2000. Em tese, quando há mais pessoas se tratando, a mortalidade cai. “Mas essa taxa continuou igual, e as complicações por sangramentos aumentaram 70%. A doença correr sem intervenção, às vezes, pode ser melhor para o paciente”.
A matéria é muito boa e importante para alertar a sociedade sobre o excessos que estão em curso no campo da medicina, os quais contribuem para agravar a crise de sustentabilidade vigente no setor. Esta crise foi declarada em nos anos 70 do século passado mas sempre negligenciada, razão da influência do poder econômico da poderosa corporação industrial produtora de medicamentos e equipamentos para diagnóstico e intervenção. Hoje vivemos o ápice desta crise, na qual além dos estados nacionais, somam-se as seguradoras de saúde como interessados na redução dos custos. Assim, ao par de uma genuína preocupação médica com minorar os riscos para a saúde dos pacientes, há também, e com grande impacto, a insustentabilidade de uma racionalidade médica biotecnicista focada na doença, dependente de exames complexos e de alto custo, que atrelada a padrões de normalidade propostos em termos ideais, descomprometidos da realidade, determinam como doença e impõem tratamento à desvios que são próprios a variação biológica. Esta crise tem assento na hegemonia de uma concepção de saúde voltada para a patologização da vida, que foi capturada pela lógica mercantilista que domina todos os setores, reduzindo o cuidado médico à venda de diagnósticos e produtos de tratamento. Esta hegemonia que aprisiona, a vida e o vivê-la, aos estreitos limites das explicações tecnológicas e dos fenômenos cientificamente comprováveis obriga a sociedade a abrir mão de tudo o mais que exerce influência sobre a saúde e que pode ser utilizados para o cuidado. A saída desta crise foi dada em 1976 em Alma Ata, quando se propôs o fim da hegemonia da ideia de doença como objeto do cuidado, em favor de uma concepção de saúde orientada pela inclusão, pela diversidade dos saberes, das culturas e das práticas de cuidado da vida. Por esta razão o avanço na saúde pública está na inclusão das Medicinas Naturais no SUS.
Excelente matéria, ao menos uma iniciativa que vai na contramão da medicina mercantilista e da péssima formação técnica dos profissionais médicos. Parabéns Fernanda Portugal!