Responda rápido. Nesta jornada mundial de vacinação contra a covid-19, que acaba de se iniciar, quem será imunizado antes? a) Um jovem de 25 anos que vive em uma cidade qualquer dos Estados Unidos; b) Um idoso de 75 anos que mora em Adis Abeba, capital da Etiópia. Muito mais difícil do que responder a essa primeira questão é não ficar envergonhado com a resposta para a segunda pergunta: Por que eu, você e a torcida do Flamengo escolhemos a opção A? Será que somos todos partidários do “America First” ou do popular farinha pouca, meu pirão primeiro? Afinal de contas, estamos no meio de uma pandemia, uma das maiores crises humanitárias da história do planeta, com quase 75 milhões de infectados e mais de 1,6 milhão de mortos. Não seria razoável enfrentar o problema de uma forma ética, sem considerar as fronteiras ou a riqueza dos países?
Para Reinaldo Guimarães, professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ, no início da pandemia até houve uma preocupação com essa dimensão humanitária, mas que foi logo engolida por questões geopolíticas e pelos interesses comerciais: “Houve uma decisão inicial da OMS que estabeleceu um princípio de que os produtos industriais usados para combater o vírus teriam um caráter universal, contornando as questões de patente e propriedade intelectual. Em seguida, a China fez um sinal na mesma direção. Mas logo isso caiu no esquecimento e sobrou a velha disputa entre potências econômicas e uma corrida das chamadas Big Pharma para ver quem chegava antes”, explica.
[g1_quote author_name=”Reinaldo Guimarães” author_description=”Professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Não creio que haverá uma campanha niteroiense e nem uma campanha paulista. O Programa Nacional de Imunizações (PNI) existe há quase 50 anos e sempre funcionou muito bem. Nós temos cerca de 30 mil salas de vacinação no país. Os problemas do Brasil são de outra ordem: temos o tropeço da AstraZeneca/Oxford, que eu penso que será contornado, e temos o efeito e a influência do Bolsonaro
[/g1_quote]As tais Big Pharmas são as grandes empresas farmacêuticas mundiais, como a Johnson & Johnson, a Pfizer, a Novartis, a Merck, a Sanofi e a GSK. Juntas, elas detêm mais de 75% do mercado mundial de vacinas. Entre 2005 e 2013, os registros de fusão e aquisição nesse segmento movimentaram cerca de US$ 220 bilhões. Não à toa, algumas delas estão liderando a maratona mundial para saber quem produzirá o imunizante mais eficaz, seguro e rápido da história. A Pfizer, em parceria com a alemã BionTech, saiu na frente, produzindo uma vacina no tempo recorde de nove meses, mas muitas outras correm por fora. Vale lembrar que essas vacinas não são gratuitas, cada picada de BNT162b2, nome do imunizante da Pfizer/BionTech, custará cerca de US$ 40, o equivalente a pouco mais de R$ 200, que serão pagos, obviamente, com o dinheiro dos impostos.
Recentemente a prefeitura de Niterói anunciou um acordo para comprar 1,1 milhão de doses da vacina chinesa Coronavac, que será produzida pelo Instituto Butantã, em São Paulo. Como a cidade de Arariboia tem menos de 500 mil habitantes, daria para vacinar todo mundo, duas vezes, e ainda sobraria para o pessoal das barcas. Será que um jovem de 25 anos de Niterói também será vacinado antes de um idoso de 75 anos, de Campina Grande, na Paraíba? O professor Reinaldo Guimarães, que também é vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), aposta que não:
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Veja o que já enviamos“Para começar, eu acredito que nenhuma Prefeitura ou Estado vai comprar nada. A compra, mais cedo ou mais tarde, deverá ser feita pelo Ministério da Saúde, como sempre aconteceu, e seguirá o caminho do SUS. É preciso, obviamente, ter um plano nacional de vacinação, que ainda não temos. Mas não creio que haverá uma campanha niteroiense e nem uma campanha paulista. O Programa Nacional de Imunizações (PNI) existe há quase 50 anos e sempre funcionou muito bem. Nós temos cerca de 30 mil salas de vacinação no país. Os problemas do Brasil são de outra ordem: temos o tropeço da AstraZeneca/Oxford, que eu penso que será contornado, e temos o efeito e a influência do Bolsonaro”
Aqui é importante explicar que quando o professor Reinaldo Guimarães conversou com o #Colabora, o presidente Jair Bolsonaro ainda não tinha dito que os brasileiros serão obrigados a assinar um termo de responsabilidade antes de se vacinar. Mas é exatamente isso que ele chama de “efeito Bolsonaro”. Essa capacidade inigualável de jogar contra a ciência ou contra a lógica. Essa falta de ética intrínseca. Na verdade, do ponto de vista do presidente, parece fazer sentido. Se temos um problema de segurança no país, basta dar uma arma para cada cidadão. Se precisamos de uma vacina confiável, por que não passar o ônus para cada paciente? Brasil acima de tudo, Deus acima de todos e eu não tenho nada com isso.
O Brasil, desde o início da pandemia, apostou em duas vacinas: a inglesa AstraZeneca, em parceria com a Fiocruz, e a chinesa Coronavac, em parceria com o Butantã. Se tudo correr bem nós teremos 100 milhões de doses da vacina inglesa, 50/60 milhões de doses da vacina chinesa e mais 45 milhões de doses do Covax Facility, um consórcio de países e organizações liderados pela OMS. Essa soma dá, mais ou menos, 200 milhões de doses, cerca de uma para cada brasileiro. Só que serão necessárias duas doses. Logo, só seria possível vacinar metade da população. Seria porque a AstraZeneca está atrasada e, até o momento, só demonstrou uma eficácia de 70%. Além disso, metade dos brasileiros ouvidos pelo DataFolha dizem que não tomarão a versão chinesa. Antes de saber, é claro, que segundo o presidente da república, eles terão que assinar um termo de responsabilidade. Para quem gosta de comparações, o Canadá já se comprometeu a comprar 10 vezes mais vacinas do que o tamanho da sua população. A Alemanha terá 3 vezes mais vacinas do que alemães. Já os EUA têm um decreto do presidente Trump proibindo que qualquer vacina saia do seu território antes que todos os americanos sejam vacinados.
Enquanto a discussão ética passa à margem de governos e empresas, parte considerável da população brasileira, cansada do isolamento social, resolveu tomar uma atitude firme: saiu às ruas para se aglomerar. Como disse o infectologista da UFRJ, Roberto Medronho, em entrevista à CNN Brasil, é como se caíssem 4 ou 5 aviões todos os dias e as pessoas continuassem na fila de embarque. No meio desse enorme salve-se quem puder, Reinaldo Guimarães diz que a maior preocupação dele para 2021 é com o fim do auxílio emergencial, que termina este mês. Faz todo o sentido. Imagine, um país sem emprego, sem dinheiro, sem vacina, sem ministro da saúde, sem presidente e sem saco para aguentar isso tudo?