Lançada, como de praxe, na Quarta-Feira de Cinzas, a Campanha da Fraternidade 2023, que este ano traz como tema “Fraternidade e Fome”, vem sofrendo violentos ataques da direita católica. As agressões se manifestam sobretudo nas redes digitais, mas não só. Estão presentes também em grupos religiosos e entidades identificadas com a extrema direita, como o Centro Dom Bosco, com sede no Rio de Janeiro. Suas lideranças questionam não só a CNBB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, responsável pela campanha, mas até a autoridade do Papa Francisco.
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Esta é a terceira vez que o tema da fome norteia a campanha, criada há quase 60 anos, em Natal (RN), como iniciativa de socorro aos mais pobres. A proposta logo foi encampada pela CNBB, que a tornou nacional, sempre com um tema e um lema anual diferentes. A discussão sobre a fome também dominou o evento nos anos de 1975 e 1985. Em 2023, com o lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (referência a passagens dos Evangelhos) voltou à cena, devido ao aumento do número de famintos no Brasil, hoje em torno de 33 milhões.
Por se saber que tem gente passando fome no Brasil, “cai por terra” qualquer crítica aos propósitos da Campanha da Fraternidade 2023. Eventuais críticas à Campanha apenas escancaram o rosto dos indiferentes, distanciados da autenticidade da fé
A pandemia e o abandono de políticas sociais de distribuição de renda contribuíram para o país voltar a integrar o chamado mapa da fome, ranking da ONU que inclui as nações assoladas por esse flagelo, motivando a escolha do tema.
Os críticos da campanha, ligados à extrema direita, rejeitam o tema, sob a argumentação de que estaria desvinculado dos ensinamentos bíblicos e da doutrina católica e que a campanha e a própria CNBB estariam a serviço de ideologias de esquerda. Segundo eles, as pautas sociais da CNBB estariam contaminadas por ideias materialistas, marxistas e heréticas.
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Veja o que já enviamosEntre os acusadores, estão leigos ultraconservadores e influenciadores digitais, como o economista Álvaro Mendes, vice-presidente do Centro Dom Bosco, e o youtuber Bernardo Küster. No grupo de religiosos, destacam-se o padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, da arquidiocese de Cuiabá (MT), com mais de 1,3 milhão seguidores nas redes digitais, e o padre Padre Paulo Antônio Araújo, da Congregação Servos da Eucaristia, diocese de Ponta Grossa (PR), que integrou a comitiva do então presidente Jair Bolsonaro a Londres, em setembro do ano passado, por ocasião dos funerais da rainha Elisabeth.

Em seu site, o Centro Dom Bosco, fundado em 2016, apresenta-se como “uma associação de fiéis católicos que se reúnem para rezar, estudar e defender a fé”, com a missão de “ajudar a resgatar a bimilenar Tradição da Igreja”. Contestam os números sobre a fome no Brasil e condenam as pautas sociais, o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, que consideram “abusos litúrgicos”.
Outros grupos, como os Arautos do Evangelho, surgido a partir de cisão da antiga TFP (Tradição, Família e Propriedade), também se alinham entre as mais fortes correntes ultradireitistas da Igreja. Todos rejeitam os postulados do Concílio Vaticano II, que reforça o compromisso social da Igreja.
CNBB rebate acusações
Em resposta aos ataques, o presidente da CNBB e arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, dom Walmor Oliveira de Azevedo, afirma, em artigo publicado no início de março, que “há um Brasil que sente fome. Trata-se de problema político e social, como também uma interpelação aos que creem em Cristo”. E conclui: “Por se saber que tem gente passando fome no Brasil, “cai por terra” qualquer crítica aos propósitos da Campanha da Fraternidade 2023. Eventuais críticas à Campanha apenas escancaram o rosto dos indiferentes, distanciados da autenticidade da fé”.
Na mesma linha, o deputado Patrus Ananias (PT-MG), ex-ministro de Desenvolvimento Social e Combate à Fome do primeiro governo Lula e um dos formuladores do programa Fome Zero, considera “inaceitável” que haja fome no Brasil, “um país riquíssimo, com condições climáticas favoráveis e com tantos recursos naturais”.
O ser humano é cindido: temos a dimensão da compaixão, do bem, da justiça, da paz, e, também, um lado sombrio. Mas estamos retomando o caminho da busca pela igualdade e justiça social. Os valores do estado democrático de direito perpassam os valores religiosos e cristãos
O parlamentar lembra a emoção que sentiu quando a ONU anunciou a saída do País do mapa da fome, graças às políticas públicas que ajudou a construir. “Uma conquista histórica”, frisou, citando ações e programas sociais que foram abandonados no último governo e agora são retomados, como o Bolsa Família, o Pronaf, Programa de Agricultura Familiar, o PAA, programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, e o PNAE, Programa Nacional de Alimentação Escolar.
“O direito à alimentação – diz – é o primeiro passo para o acesso à cidadania e precede todos os outros direitos, inclusive o de propriedade”, sinaliza.
O parlamentar, porém, prefere não apontar nomes da direita nem se deter muito sobre as críticas à Campanha da Fraternidade 2023. Para ele, esse embate não é novo, sempre existiu na Igreja Católica. “A Igreja sempre teve um lado muito sombrio. Defendeu a escravidão, mas também teve Francisco de Assis, o Papa João XXIII e agora o Papa Francisco. E no Brasil, tivemos dom Helder Câmara, dom Pedro Casaldáliga e dom José Maria Pires, o dom Zumbi, todos defensores dos pobres. E é neles que devemos nos inspirar.”
Onda conservadora
O ex-ministro considera também que o avanço da direita na Igreja Católica brasileira, nos últimos dez anos ou mais, reflete o que se passa no mundo. “Há uma onda conservadora em todo o mundo, com o avanço do neoliberalismo, o endeusamento do mercado, o individualismo e, nessa esteira, cresceram os adeptos da violência, da intolerância, do fascismo, resultando, no Brasil, na eleição de Bolsonaro”.
“O ser humano é cindido: temos a dimensão da compaixão, do bem, da justiça, da paz, e, também, um lado sombrio. Mas estamos retomando o caminho da busca pela igualdade e justiça social. Os valores do estado democrático de direito perpassam os valores religiosos e cristãos” – afirma.
“Autismo coletivo”
Também compartilha desse pensamento o padre Otávio Juliano de Almeida, doutor em Bioética e mestre em Teologia Moral. Professor da PUC Minas e da Faculdade Jesuíta, padre Juliano é também pároco da Basílica do Cura d’Ars, no bairro Prado, em Belo Horizonte (MG). Segundo ele, os ataques da direita à Campanha da Fraternidade e à própria CNBB fazem parte do contexto maior da “pós-verdade”, marcada pelas fake news e pelo mundo digital. “É um fenômeno da era, há uma espécie de ‘autismo coletivo’, em que as pessoas são impermeáveis, só ouvem o que interessa”. “Muitos alunos já chegam à Universidade ‘formatados’” – lamenta.
Sobre a oposição que se faz à campanha e à CNBB entre os próprios grupos religiosos, destaca que, apesar da hierarquia da Igreja Católica, as dioceses são autônomas e cada bispo atua em sua comunidade conforme seu estilo. A CNBB apenas oferece as linhas gerais de orientação. Os temas sociais, diz ele, encontram muito mais eco nas regiões pobres, como no Nordeste e nas periferias dos grandes centros, do que em paróquias e dioceses de cidades ricas, como no interior de São Paulo.
E por que a CNBB reage de forma tão tímida às críticas? “Porque fez a opção por não confrontar. Seria dar palanque demais pra esse pessoal” – acredita.
Projeto Pão Nosso
Dentro do espírito da Campanha da Fraternidade 2023, a Basílica do Santo Cura d’Ars, em Belo Horizonte, desenvolve, há quase 30 anos, o projeto Pão Nosso, de ajuda a moradores em situação de rua. Todas as sextas-feiras à noite, voluntários percorrem o Centro da capital mineira, nas proximidades da rodoviária, oferecendo alimento e água a centenas de pessoas.
O projeto conta com cerca de 60 voluntários, 25 dos quais envolvidos mais ativamente na coleta, preparação e distribuição de alimentos. No ano passado, o grupo atendeu 11 mil pessoas. Para 2023 a meta é chegar a 15 mil. Segundo os organizadores do projeto, a pandemia fez crescer muito o número de pessoas nas ruas.
Além de água e refeições quentes como sopa, ovos cozidos e arroz com carne ou legumes, o grupo, em parceria com estabelecimentos comerciais, fornece também pão e bolos, além de alimentos crus, típicos de cesta básica, já que muitos que habitam as ruas também cozinham seu próprio alimento. Roupas, calçados, cobertores e kits com material de higiene e limpeza completam as doações.