Abundância invisível: o paradoxo entre crescimento agrícola e fome no Acre

Abundância invisível: o paradoxo entre crescimento agrícola e fome no Acre

Por Conexão UFF UFPA ODS 13ODS 2

Produção cresce mais de 100%, enquanto população sofre com insegurança alimentar e pequenos agricultores perdem suas safras devido à urgência climática

Publicada em 4 de novembro de 2025 - 00:12

Imagine acordar sem saber se vai ter o que comer ao longo do dia ou já sabendo que não terá mais do que uma alimentação insuficiente, sem os nutrientes necessários para viver de forma saudável. A insegurança alimentar no Brasil ainda afeta milhões de pessoas, mesmo em regiões onde há crescimento da produção agrícola. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, módulo Segurança Alimentar, divulgada pelo      IBGE      em 2024, cerca de 21,6 milhões de domicílios (27,6% do total no país) viviam em algum grau de insegurança alimentar no último trimestre de 2023. Seguida de perto pelo Nordeste (38,8%), a região Norte é a uma das mais afetadas pelo problema, com 39,7% dos domicílios registrando algum grau de insegurança alimentar.

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No Acre, a insegurança alimentar atinge 90 mil domicílios, o que representa 30,5% do total do Estado, número acima da média nacional. Entretanto, mesmo não sendo o primeiro em insegurança alimentar na região Norte (o título pertence ao Pará, conforme dados do PNAD/IBGE), esses índices chamam a atenção devido a uma contradição evidente: enquanto a fome afeta quase um terço dos domicílios do Acre, a sua produção agrícola cresceu 101% nos últimos seis anos e chegou a R$ 3,9 bilhões no primeiro trimestre de 2025, de acordo com o índice de Valor Bruto de Produção (VBP).

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Este crescimento foi anunciado pela Agência de Notícias do Acre, com base no ranking da produção agrícola do Estado, em 2024, divulgado pela Secretaria de Estado de Agricultura (Seagri). A pecuária lidera a lista, seguida da produção de mandioca, milho, café e banana. A soja aparece em sexto lugar, com uma produção 11% maior do que a média nacional. Quanto à fruticultura, além da banana, o abacaxi, a laranja, o açaí e o maracujá estão entre os principais produtos.

A maioria das nossas camponesas, dos nossos grupos de mulheres organizadas que são feirantes, perdeu 100% da produção. Os produtos diminuíram bastante. Você vai de um extremo ao outro: uma enchente, depois uma seca. Foram perdas muito grandes, prejuízos imensos para as nossas produtoras

Maria Rosângela Saraiva de Queiroz
Agricultora e coordenadora estadual do Movimento de Mulheres Camponesas no Acre

Diante desses avanços na produção agrícola e do alto índice de insegurança alimentar entre os acreanos, uma pergunta é praticamente inevitável: essa abundância não deveria conter a fome de quem vive nesse Estado? Retrato da realidade socioeconômica, a insegurança alimentar é mais do que um problema do presente, ela compromete o futuro: “Se 30% da população não têm acesso adequado à alimentação, isso impacta diretamente o desenvolvimento humano”, alerta a professora Francisca Santiago, nutricionista e mestra em Ciências da Saúde pela Universidade Federal do Acre. Sem nutrientes em quantidade e qualidade, os efeitos adversos à saúde se acumulam, prejudicando o desenvolvimento físico e cognitivo de crianças, a memória e a funcionalidade dos idosos, e afetando o capital humano da região como um todo.

Crianças e idosos estão entre os grupos mais vulneráveis. A má alimentação nos primeiros anos de vida pode comprometer o desenvolvimento psicomotor: andar, falar, pensar e aprender tornam-se tarefas mais difíceis. Isso se reflete no desempenho escolar e, futuramente, na inserção no mercado de trabalho. “É bastante comprometedor, porque ela (criança) vai ter dificuldade de aprendizagem, não vai avançar. (…) O organismo precisa se desenvolver na sua totalidade, principalmente em fases como o trato gastrointestinal e o desenvolvimento psicomotor. Para isso, são necessários nutrientes em quantidade e qualidade: os macronutrientes e micronutrientes”, ressalta a professora Francisca. Ela lembra que, em muitos casos, a principal (ou única) refeição das crianças acontece nas escolas e creches: “O lanche escolar, muitas vezes, era o almoço e jantar dessas crianças. Muitas famílias não tinham renda para garantir alimentação adequada”.

Nos idosos, o processo é inverso: o corpo começa a perder a capacidade de produzir ou absorver certos nutrientes, como as vitaminas do complexo B. Sem suplementação ou alimentação adequada, surgem sintomas como a perda de memória, afetando a autonomia e a qualidade de vida: “Se eles não recebem as vitaminas necessárias, a saúde vai se deteriorando. Ao invés de manter uma vida ativa, terão suas funções comprometidas pela ausência desses nutrientes na alimentação”, explica a professora. Não há dúvida de que crianças e idosos estão entre os grupos mais vulneráveis, pois têm necessidades nutricionais específicas e dependem de terceiros para ter acesso à alimentação.

Cidade de Brasiléia submersa com enchente: extremos de chuva e seca impactam na produção de pequenos agricultores (Foto: Marcos Vicentti / Agência de Notícias do Acre)

Clima, enchentes e desigualdade

 Ao longo dos anos, o Acre vem enfrentando as consequências de episódios extremos, como as cheias e secas que demarcam um paradoxo climático. No ano de 2023, houve fortes ondas de calor, com temperatura acima da média, atingindo a saúde pública e a produção agrícola. Em 2024, a enchente histórica em Brasiléia, município localizado na fronteira com a Bolívia, a mais de 230 km de Rio Branco, deixou milhares de pessoas desabrigadas.

Um estudo que envolveu pesquisadores do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGama), da Universidade Federal do Acre, e da Secretaria do Meio Ambiente do estado, destaca os “impactos e consequências dos eventos climáticos extremos no Acre em 2023 e 2024”, ressaltando que eles “vão além dos danos materiais, afetando também a saúde humana, com aumento de doenças e vulnerabilidade de comunidades”.

Eventos como esses afetam diretamente a produção agrícola, levando à perda parcial ou total de diversas safras. A agricultora Maria Rosângela Saraiva de Queiroz, coordenadora estadual do Movimento de Mulheres Camponesas no Acre, atua no município de Bujari, nordeste do Estado, promovendo a produção agroecológica como resposta à fome e à violência contra a mulher. Parte da produção é voltada ao autoconsumo e parte é vendida em feiras, onde há boa aceitação desses produtos pela população urbana. Para ela, “alimento é remédio” e a agricultura familiar é a base da alimentação no estado, ainda que pouco valorizada pelas políticas públicas.

A insegurança alimentar se agrava pela ausência de políticas de produção agrícola voltadas à população local e pela negligência histórica dos governos, tanto de esquerda quanto de direita, em relação às áreas rurais

Silvio Simione
Geógrafo, pesquisador e professor da da Universidade Federal do Acre

Rosângela relata que, embora não tenha sido pessoalmente afetada, a maioria das agricultoras do movimento perdeu toda a produção em razão das enchentes e secas extremas de 2023. A perda de produtos comprometeu inclusive a manutenção das feiras, com a necessidade de recorrer a alimentos de outras produtoras não afetadas. Segundo ela, o apoio governamental foi insuficiente e desigual, chegando a poucas famílias: “A maioria das nossas camponesas, dos nossos grupos de mulheres organizadas que são feirantes, perdeu 100% da produção. Inclusive nas feiras, foi um momento muito difícil de manter, porque tivemos que pegar produto de outras feirantes que não foram atingidas. Os produtos diminuíram bastante. Você vai de um extremo ao outro: uma enchente, depois uma seca. Foram perdas muito grandes, prejuízos imensos para as nossas produtoras”.

Apesar da gravidade das perdas, o auxílio recebido foi insuficiente. Rosângela destaca que, embora tenham havido ações pontuais divulgadas na mídia, elas não chegaram de forma ampla à ponta: “Foi recebida muito pouca ajuda. Você até vê nos meios de comunicação, vê algumas ações, mas ela não chega para todas. Chega para alguns, outros não. O que aconteceu mais entre nós, do nosso movimento, foi a solidariedade. Alguém com dificuldade recebia sementes, mudas, uma lona, o que tivesse. Houve muito mais solidariedade entre camponeses do que ajuda governamental. Mas veio. Pouca, mas veio”.

A articulação para a participação na próxima Conferência das Partes (COP) da Organização das Nações Unidas (ONU), a COP30, a ser realizada na Amazônia brasileira, em novembro deste ano, tem sido fortalecida por meio de esforços conjuntos entre movimentos sociais, organizações estaduais e instituições de ensino. As propostas do Movimento de Mulheres Camponesas têm sido encaminhadas a instâncias nacionais, com o objetivo de garantir representatividade nas discussões globais sobre clima e justiça social. A presença do movimento na COP foi confirmada, com pautas construídas coletivamente e em diálogo com outros grupos, evidenciando a importância do apoio institucional para a continuidade da luta e da visibilidade das pautas camponesas em arenas internacionais.

Lavoura de milho no Acre: produção agrícola cresce mas insegurança alimentar atinge 30% das casas do estado (Foto: José Caminha / Agência de Notícias do Acre)

O que está sendo feito e o que ainda falta?

 As enchentes e secas recorrentes têm comprometido o abastecimento alimentar em várias regiões do Acre. Segundo o governo do estado, municípios isolados como Jordão, Marechal Thaumaturgo, Porto Walter e Santa Rosa do Purus estão entre os mais impactados. As dificuldades logísticas, como estradas precárias e a dependência de acesso fluvial, agravam o cenário, dificultando o transporte de alimentos e suprimentos. O poder público afirma que há ações emergenciais em curso, além de esforços contínuos para fortalecer o abastecimento, com destaque para programas de compra local, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Diante dos dados apresentados nesta reportagem, como o crescimento de 101% da produção agrícola nos últimos seis anos e o recorde de quase R$ 4 bilhões em valor gerado em 2025, surge uma questão fundamental: essa produção tem, de fato, garantido o abastecimento interno e promovido segurança alimentar? Ou os ganhos têm priorizado o mercado externo e a lógica do agronegócio de exportação?

Para o professor Silvio Simione, da UFAC, a fome e a insegurança alimentar no Acre resultam da ausência de uma política produtiva voltada para o abastecimento da própria região. “O modelo atual, adotado pelo governo, segue a lógica nacional de expansão do agronegócio, mas beneficia apenas uma minoria, excluindo a maior parte da população”, afirma o pesquisador, que se dedica ao estudo das dinâmicas sociais e econômicas que impactam a vida de agricultores familiares e comunidades extrativistas na região. .

A desigualdade no acesso aos alimentos não decorre apenas da escassez, mas também da distribuição e das prioridades políticas e econômicas. “O estado, apesar de ter terras férteis, não consegue abastecer sua própria população com alimentos básicos, como banana e mamão, que vêm de outros estados”, afirma Simione. “A insegurança alimentar se agrava pela ausência de políticas de produção agrícola voltadas à população local e pela negligência histórica dos governos, tanto de esquerda quanto de direita, em relação às áreas rurais”.

Em nota, o governo do Acre comentou sobre a COP 30 , destacando a expectativa de que o Acre leve uma delegação própria ao evento. A promessa é de que o estado participe das discussões internacionais com foco em temas como justiça ambiental, bioeconomia, serviços ambientais e direitos dos povos tradicionais.

Contudo, não foram detalhados os projetos específicos ou mesmo propostas que o estado pretende apresentar na COP, nem quem serão os representantes da delegação. Essa ausência de informações concretas corrobora o pensamento do professor Silvio Simione: “Não acredito que a COP30 vá trazer soluções efetivas para problemas centrais como a insegurança alimentar, pobreza e miséria na Amazônia. O evento poderá gerar promessas de financiamento e apoio, mas há um alto risco de que os recursos não cheguem à região ou fiquem sob controle de grandes institutos do Sudeste, que pouco conhecem – ou valorizam – a realidade amazônica.”

Em um contexto de eventos climáticos extremos recorrentes e insegurança alimentar persistente, a participação do estado na COP representa uma oportunidade de se buscar soluções concretas, algo que a região necessita de maneira urgente, como afirma o professor da UFAC.

“A Amazônia precisa de mais do que promessas globais. Precisa de um projeto real de desenvolvimento. É inconcebível que, em uma das regiões mais ricas do planeta em biodiversidade e recursos naturais, sete dos dez piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil estejam aqui. Essa é a grande contradição: temos riqueza natural, mas vivemos na pobreza. E, se continuarmos a ser tutelados por uma lógica externa e não nos colocarmos como protagonistas dos nossos próprios processos, nem mesmo 10, 20 ou 30 COPs trarão mudanças reais”.

Reportagem de Evelyn Ludovina, Raul Martins, Thiago Lobato, Samilly Santos (UFPA) João Arthur de Souza, Flávio Monteiro e Douglas Ribeiro (UFF).

Conexão UFF UFPA

O Conexão UFF – UFPA é um projeto que reúne alunos dos cursos de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense e da Universidade Federal do Pará para a produção de reportagens especiais, sob a coordenação das jornalistas e professoras Adriana Barsotti (UFF) e Elaide Martins (UFPA).

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