Julie e a República Democrática do Congo: história de resistência e transformação

Entre a herança Banyamulenge e a paixão por educação, jovem congolesa conecta sua história à luta por oportunidades em contextos humanitários

Por Camila Batista | ODS 1ODS 10ODS 2
Publicada em 13 de outubro de 2025 - 09:30  -  Atualizada em 13 de outubro de 2025 - 09:38
Tempo de leitura: 16 min

Julie Mudasumbwa em sua vila na República Democrática do Congo: história de resistência e transformação pela educação em país marcado pela pobreza e pela violência (Foto: Arquivo Pessoal)

Toda narrativa nasce de um lugar. 

Essa história começa na República Democrática do Congo, também conhecida como RDC.  O quarto país mais populoso do continente africano, com mais de 100 milhões de habitantes, a RDC se estende por uma área gigantesca, maior que a França, Alemanha, Espanha e Itália juntas. 

Estava a 10 km de onde trabalhava quando ouvi que a vila próxima estava sendo atacada. Apesar do perigo, percebi a importância da minha presença. As pessoas valorizam os recursos que chegam, mas valorizam ainda mais a presença humana

Julie Mudasumbwa
Ativista e líder comunitária da República Democrática do Congo

Conheci Julie Mudasumbwa no México, no ano passado, durante um encontro global de empreendedores de impacto. Ela era a mais jovem do meu grupo, mas ocupava o espaço com a leveza e a força de alguém mais experiente. Sua apresentação foi breve e cativante, disse que nasceu na República Democrática do Congo e que sua grande paixão era trabalhar com educação e em contextos humanitários: seus projetos incluem alimentação comunitária, agricultura sustentável e capacitação de mulheres na produção e distribuição de alimentos. Conectamo-nos de imediato. 

Enquanto a ouvia, me peguei pensando: quanto eu realmente conhecia sobre esse gigante da África Central? 

Você sabia que apesar de a França ser o berço da língua francesa, é a República Democrática do Congo que abriga a maior população francófona do mundo? O francês é a língua oficial, usada na administração, na educação e como meio de comunicação entre centenas de etnias e línguas locais.

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A RDC é um país de vasta beleza natural, rios, vulcões e montanhas, incluindo a segunda maior floresta do mundo. Também é repleto de riquezas naturais, incluindo grandíssimas quantidades de minerais como cobalto, cobre e coltan, além de ouro e pedras preciosas. No entanto, se em alguns casos a abundância pode ser motivo de celebração e progresso, em outros ela pode representar disputas, amarras e grandes infortúnios. 

As pessoas não têm ideia da gravidade do que acontece aqui, e por isso não se importam. Mas como você pode se importar com algo que não vê e que não escuta?

Julie Mudasumbwa
Ativista e líder comunitária da República Democrática do Congo

Com o tempo, fui entendendo que Julie, aos 29 anos, carregava uma trajetória densa, profundamente entrelaçada ao seu território. Ela me contou que seus pais cresceram em um pequeno povoado, sem grandes ambições. Seu pai é um congolês da tribo Banyamulenge, um povo tutsi tradicionalmente pastoril da República Democrática do Congo, e a sua mãe originalmente nascida no vizinho Burundi. Os banyamulenge foram muitas vezes confundidos com ruandeses e, tornaram-se alvo de massacres, levando grande parte da comunidade ao refúgio em outros países.

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Os Banyamulenge são originários do Kivu do Sul, no leste do Congo, e falam uma variação do idioma kinyarwanda-Kirundu e outras línguas locais. Muitas vezes chamados de “tutsis congoleses”, muitos confundem sua origem: alguns acreditam que descendem de tutsis que migraram para a região há muito tempo; outros, que se formaram como um novo grupo. Embora compartilhem a língua com outros povos, mantêm costumes e tradições próprias.

Para Julie, essa herança carregava um peso que, por muitos anos, ela preferiu evitar. Sua principal motivação era sair daquele contexto, projetar-se em outro país, construir outro destino. Mais tarde, reconheceria que esse movimento era, em certa medida, também um processo de fuga.

Julie (de óculos, à esquerda) com mulheres de projeto de capacitação para produção e distribuição de alimentos na República Democrática do Congo: foco na participação feminina (Foto: Arquivo Pessoal)

A oportunidade surgiu ao ser selecionada, por uma renomada universidade norte-americana, para estudar Agricultura e Desenvolvimento Rural, uma área profundamente conectada à história de sua família e ao potencial econômico de seu país, mas que, em um primeiro momento, não tinha grande significado para ela. Com o apoio da família, decidiu seguir adiante e mudou-se para os Estados Unidos. Não foi um passo fácil, mas parecia o caminho mais óbvio.

A República Democrática do Congo enfrenta uma instabilidade política crônica. Desde sua independência em 1960, o país passou por múltiplos golpes de Estado e longos períodos de turbulência. No leste do Congo, facções armadas ainda disputam o controle da região, enquanto tensões persistem com os vizinhos Ruanda e Burundi. Esse ciclo contínuo de violência tem provocado impactos humanitários devastadores, com milhões de mortes e deslocamentos desde a década de 1990, atingindo de forma particularmente dura as mulheres, que enfrentam violência sexual, perda de meios de subsistência e rupturas profundas em suas comunidades.

É importante ir para o Ocidente e aprender, mas também voltar e aplicar esse conhecimento. Nas sociedades africanas, raramente falamos sobre saúde mental e trauma, mas essa é uma conversa que precisamos ter.

Julie Mudasumbwa
Ativista e líder comunitária da República Democrática do Congo

Enquanto Julie me falava sobre sua paixão por trabalhar em contextos de pobreza, especialmente com crianças e mulheres, me veio à mente a peça Ruined, de Lynn Nottage, vencedora do Prêmio Pulitzer. A obra se passa na República Democrática do Congo durante a Segunda Guerra do Congo (1998-2003), um dos conflitos mais devastadores da história recente da África, envolvendo múltiplas facções e países vizinhos, e resultando em milhões de mortes e deslocamentos forçados. Ruined retrata a experiência de mulheres durante a guerra civil, fruto de uma pesquisa em que Nottage entrevistou sobreviventes de violência sexual e outras atrocidades. A dramaturga descreve como os corpos dessas mulheres se tornaram verdadeiros campos de batalha e, ainda assim, como a resiliência e a capacidade de agir permaneceram. 

A obra me marcou profundamente e, agora, ao ouvir Julie, eu finalmente podia situar essa história no mapa, dando-lhe rosto, voz e presença humanas. Ao aprofundar minha pesquisa, ficou claro que a República Democrática do Congo é um território de profundas contradições e complexidades humanas, reflexo de desafios que ecoam em muitas outras partes do mundo.

Julie (direita) conversa com mulheres em área de conflito na República Democrática do Congo: quarto país mais populoso do continente africano enfrenta uma instabilidade política crônica, com disputas entre facções armadas (Foto: Arquivo Pessoal)

Ao mesmo tempo, ao lado dessa dor, o país também é um território de grande abundância. Voce sabia que a RDC é a maior produtora mundial de cobalto? Para não deixar dúvidas do alcance dessa importância: Em 2024, o país produziu 75% do cobalto mundial. A RDC também é a maior produtora mundial de coltan, respondendo por mais de 42% da produção global no ano passado. E como se isso já não fosse o bastante… O país também é o segundo maior produtor mundial de cobre refinado. 

Haja mão de obra para sustentar esse ritmo. Para se ter uma ideia, mais de 10 mil pessoas trabalham apenas na mina de Rubaya, na província de Kivu do Norte, responsável por cerca de 15% da produção de coltan do país. Localizada próxima à fronteira com Ruanda, essa mina é um labirinto de escavações e explorações.

Mas, afinal, qual a real importância do que se extrai dessas minas? O cobalto, facilmente identificado pelo seu tom azul-prateado, é a matéria prima das baterias de íons de lítio, encontradas em smartphones, computadores, veículos elétricos, dentre outros. E o coltan, é refinado no metal tântalo, extremamente resistente ao calor, e portanto, essencial para a produção de capacitores eletrônicos. Já o cobre é estratégico para eletrônicos e painéis solares. Ou seja, na prática, a RDC está presente, em fragmentos, no nosso cotidiano.

Julie em palestra para mulheres na RDC: transformar o ciclo da alimentação em ferramenta de empoderamento (Foto: Arquivo Pessoal)

O que tudo isso sugere?

Que este país deveria figurar entre os líderes da economia mundial? Que tamanha riqueza deveria se traduzir em infraestrutura sólida e crescimento sustentável? Sem dúvida! Mas, então, por que três em cada quatro pessoas vivem na extrema pobreza, com menos de 2 doláres por dia? Por que a RDC está entre as cinco nações com menor renda nacional per capita, de acordo com relatório do Banco Mundial?

Essa é uma pergunta que ecoou durante a infância de Julie e que, agora, vivendo nos Estados Unidos, ela começou a explorar com mais profundidade.

Sempre me vi como uma criança, mas quando estou na RDC, sinto-me como uma avó

Julie Mudasumbwa
Ativista e líder comunitária da República Democrática do Congo

Como migrante, Julie se reconectou com sua própria história e identidade. E, contrariando o que havia imaginado, decidiu retornar ao Congo para um estágio. Ela me contou que não sabia exatamente porquê, mas sentia um chamado forte e irresistível. Seu pai, que naquele período enfrentava grandes desafios no país, não esperava ver a filha de volta a um território tão “arriscado”.

Esse pai não era um homem qualquer: líder comunitário, fundou a primeira universidade de sua cidade, a Eben-Ezer University of Minembwe. Ao longo da vida, dedicou-se a promover a paz e a educação no leste da RDC, acolhendo pessoas deslocadas pela guerra, formando novas gerações de estudantes e representando a sociedade civil nas Consultas de Paz Inter-Congolesas em Nairóbi em 2022. 

Em meados de 2023, ele foi preso sob falsas acusações de colaboração com rebeldes. Mas, pela sua história de resiliência, transformou sua passagem pela prisão em um espaço de ação, criando projetos de alfabetização e capacitação profissional. Durante seu encarceramento na Prisão de Makala, chegou a perder 40 quilos e enfrentou sérios problemas de saúde. Hoje, em liberdade, é reconhecido como um verdadeiro símbolo de resiliência e paz.

Julie em meio à plateia masculina em concerto em universidade na RDC: “Eu estava sentada ali porque era convidada. Mas, como você pode ver, os homens se sentam na frente e as mulheres atrás” (Foto; Arquivo Pessoal)

Quando Julie compartilhou sua decisão, seu pai, a princípio, se surpreendeu, mas acabou apoiando sua ida à RDC. No país, ela passou meses pesquisando nutrição em áreas de conflito, enquanto ataques assolavam cidades vizinhas. Entre o cheiro de fumaça e o aroma da mandioca cozinhando nas panelas, ela reencontrou o fio que conecta sua história pessoal ao destino coletivo de seu povo.

“Estava a 10 km de onde trabalhava quando ouvi que a vila próxima estava sendo atacada. Apesar do perigo, percebi a importância da minha presença. As pessoas valorizam os recursos que chegam, mas valorizam ainda mais a presença humana.”

Ao ouvir esse comentário, pensei imediatamente na ativista Caddy Adzuba Furaha (1981), fundadora da rede Un Altavoz para el Silencio e da Associação de Mulheres de Meios de Comunicação do Leste do Congo, que dedicou sua vida a atuar em campo diante de questões delicadas e de enorme complexidade. Caddy sobreviveu a atentados e hoje vive sob proteção da ONU, dando voz às vítimas de feminicídio e violência sexual em contextos de guerra na RDC.

Nascida em Bukavu, advogada e jornalista da Rádio Okapi, seu ativismo a levou a denunciar crimes contra mulheres e crianças congolesas em espaços como o Tribunal Internacional de Justiça e o Senado dos Estados Unidos. Para ela, assim como para Julie, estar no território foi essencial para se conectar com a história de quem carrega essas dores no cotidiano.

“As pessoas não têm ideia da gravidade do que acontece aqui, e por isso não se importam. Mas como você pode se importar com algo que não vê e que não escuta?”, comenta Julie, para quem essa provocação resume o sentido de sua luta: tornar visível o que o mundo insiste em invisibilizar.

Julie (de preto) durante missão humanitária das Nações Unidas na República do Congo: ciclo contínuo de violência provoca impactos humanitários devastadores (Foto: Arquivo Pessoal)

Ao trabalhar com projetos de alimentação comunitária, agricultura sustentável e capacitação de mulheres na produção e distribuição de alimentos, seu objetivo é não apenas fornecer acesso a refeições, mas transformar o ciclo da alimentação em ferramenta de empoderamento, melhorando a saúde, gerando renda local, promovendo a educação das crianças e fortalecendo a resiliência da comunidade.

A RDC está entre os maiores produtores de mandioca do mundo. Por sua resistência à seca e à pobreza dos solos, esse alimento se tornou indispensável para a sobrevivência da população. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, 2024), mais de 27% da população da RDC enfrenta insegurança alimentar grave, com milhões de crianças subnutridas, o que impacta diretamente o desenvolvimento e a estabilidade social.

Julie acredita que, ao atuar junto à diáspora e parceiros internacionais, é possível trazer soluções inovadoras que respeitem a cultura local e, ao mesmo tempo, promovam o desenvolvimento sustentável. 

Julie com uma amiga em vila na RDC: buscando inspirar mulheres e meninas e ajudar a transformar a realidade local (Foto: Arquivo Pessoal)

Ela me contou que deseja seguir os passos de outras ativistas congolesas inspiradoras, como Julienne Lusenge, ativista que há décadas defende sobreviventes de violência sexual em tempos de guerra, especialmente na região de Kivu Norte. Cofundadora e presidenta da SOFEPADI (Solidarité Féminine pour la Paix et le Développement Intégral) e diretora do Fundo de Mulheres Congolesas. Recentemente, foi responsável por investigar possíveis abusos sexuais cometidos por pessoas vinculadas à ONU durante a resposta à epidemia de ebola (2018-2020) no leste da RDC.

Hoje, a missão de Julie é remover o estigma sobre sua comunidade e incentivar a diáspora a contribuir ativamente com o desenvolvimento local. “É importante ir para o Ocidente e aprender, mas também voltar e aplicar esse conhecimento. Nas sociedades africanas, raramente falamos sobre saúde mental e trauma, mas essa é uma conversa que precisamos ter.”

Com a transição global para energias renováveis, a demanda por cobalto e lítio nunca foi tão alta. Segundo o Fórum Econômico Mundial, o consumo de cobalto deve quadruplicar até 2030, impulsionado principalmente pelos veículos elétricos. Esse cenário pode aumentar ainda mais as tensões no país, tornando urgente a presença de pessoas e projetos que apoiem a região.

Julie, que um dia duvidou de si mesma, hoje reconhece sua força: “Sempre me vi como uma criança, mas quando estou na RDC, sinto-me como uma avó.” Com coragem e propósito, ela segue transformando a realidade de sua comunidade e inspirando mulheres e meninas assim como aqueles que um dia a inspiraram a ocupar espaços que antes pareciam inalcançáveis.

Camila Batista

Camila Batista Pinto, advogada e ativista pelos direitos das mulheres, é uma empreendedora social brasileira e COO da Migraflix, organização que promove a inclusão social e econômica de migrantes e refugiados na América Latina por meio do empreendedorismo; também preside o Conselho Consultivo da Migration Youth and Children Platform (MYCP), plataforma global oficial de participação juvenil em processos intergovernamentais e no sistema das Nações Unidas, e é conselheira da organização Palhaços Sem Fronteiras Brasil

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