ODS 1
Chico Buarque e os ODS
Os Objetivos dos Desenvolvimento Sustentável da ONU também estão presentes na obra do gênio brasileiro, vencedor do último Prêmio Camões
Em quase 60 anos de carreira, Chico Buarque lavou a alma do Brasil incontáveis vezes. A última foi semana passada quando, numa espécie de encerramento solene das trevas que se abateram sobre a cultura nacional, o grande artista recebeu em Lisboa o Prêmio Camões, a maior honraria literária da língua portuguesa. “Reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para assinatura do nosso presidente Lula”, discursou, durante a cerimônia, referindo-se aos quatro anos (a honraria foi concedida em 2019) em que Bolsonaro recusou avalizar o documento.
Tudo muito bom, tudo muito bem – mas aqui é o #Colabora, e aí vem a pergunta: tem ODS na obra iluminada de Chico Buarque? Tem, sim senhor. Várias músicas se enquadram ou se referem aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. Pretexto perfeito para um passeio sustentável pela obra do premiado genial. Bora?
Viu essa? Chico, a cidade e o frisson
ODS 1 – Erradicar a pobreza
Em “Pivete”, de 1978, Chico (com Francis Hime) narra a rotina e as agruras de um menino pobre de uma grande cidade brasileira – o que, no futuro, a gíria batizaria de “corre”.
ODS 2 – Erradicar a fome
O mais brasileiro dos pratos inspirou o poeta, que descreve uma tarde de alegria, amizade, amor e fartura em “Feijoada Completa”, de 1977. “E vamos botar água no feijão!”, decreta ele.
ODS 3 – Saúde de qualidade
O direito reprodutivo está entre os mais preciosos e difíceis, nas questões da saúde. Dentro da trilha de “Ópera do malandro”, a linda e dramática “Uma canção desnaturada” (1979) fala de uma gravidez indesejada e os dramas embutidos na mazela.
ODS 4 – Educação de qualidade
Uma aula sobre a importância da democracia e a luta contra toda forma de arbítrio deu em “Vai passar” samba arrebatador que, lançado em 1984, virou hino na cruzada por eleições diretas para presidente. Felizmente, outra “página infeliz da nossa história” foi virada.
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Veja o que já enviamosODS 5 – Igualdade de gênero
É o ODS pelo qual Chico mais passeia, com suas canções magistrais sobre mulheres. “A Rita”, “Carolina”, “A canção de Lily Braun”, “Teresinha”, “O meu amor” são alguns exemplos de empoderamento. Como “Sob medida” (1979), na qual uma mulher conhecedora do próprio valor avisa ao marmanjo: “Se ajeite comigo, e dê graças a Deus”.
ODS 6 – Água potável e saneamento
A linda “Cio da terra”, pérola composta em 1977 com Milton Nascimento, prega o cuidado com o tratamento de resíduos na produção da comida e a necessidade de “afagar a terra”.
ODS 7 – Energias renováveis e acessíveis
“Puseram uma usina no mar/ Talvez fique ruim pra pescar”, especula Chico em “Bye bye, Brasil”, escrita (com Roberto Menescal) para o excelente filme de Cacá Diegues, em 1979. A canção – uma conversa ao telefone – surge no contexto da construção de hidrelétricas no projeto de Brasil grande da ditadura militar e passeia por vários aspectos daquele momento.
ODS 8 – Trabalho digno e crescimento econômico
A repetição infinita dos dias, do pensar “em dizer não”, mas recuar pela “vida pra levar” e se calar “com a boca de feijão” expressa a angústia dos trabalhadores em “Cotidiano”, de 1971. Porque começa tudo de novo, e de novo, e de novo…
ODS 9 – Indústria, inovação e infraestruturas
Considerada por muita gente a obra suprema de Chico Buarque, “Construção” (1971), com o surreal malabarismo das proparoxítonas, descreve o calvário de um trabalhador brasileiro nas péssimas condições historicamente impostas a ele. Contundente denúncia – lançada na fase mais radical da ditadura militar – sobre um país que até hoje, pleno 2023, flerta com a escravidão.
ODS 10 – Reduzir as desigualdades
As batalhas sociais sob o sol carioca inspiraram Chico – um permanente soldado contra as desigualdades – em “As caravanas”, de 2017. Retrato preciso dos dias polarizados, raivosos e intolerantes que vivemos. E, claro, “a culpa deve ser do sol”.
ODS 11 – Cidades e comunidades sustentáveis
Mas as belezas do Rio, a cidade do poeta, vencem em “Carioca”, música de 1998 que celebra “O poente na espinha/ Das tuas montanhas” que “Quase arromba a retina/ De quem vê”. Receptivo às mudanças, Chico ainda lembra os bailes funk e a religiosidade como traços da sua terra.
ODS 12 – Consumo e produção responsáveis
A ironia cortante, presente no discurso do Camões, também mora em “Bancarrota blues”, que critica o capitalismo e o valor excessivo à propriedade e à acumulação. De 1985, a música reproduz os argumentos em torno da venda de uma propriedade rural.
ODS 13 – Ação climática
“E quem sabe, então/ O Rio será/ Alguma cidade submersa…”, prevê Chico no clássico “Futuros amantes”. Paradoxalmente, a canção começa com “Não se afobe, não/ Que nada é pra já”, versos desatualizados diante da crise climática que, apontam os estudiosos, pode inundar cidades litorâneas.
ODS 14 – Proteger a vida marinha
A melancolia de uma cidade distante do mar e a lembrança da paixão vivida com “as bocas salgadas pela maresia” das “noturnas praias” compõem a linda canção de 1980. Uma declaração do amor pelo oceano banhado pelo luar.
ODS 15 – Proteger a vida terrestre
Lançada no compacto “Terra” em conjunto com o livro homônimo de Sebastião Salgado, em 1997, “Assentamento” evoca a luta rural e a importância da produção sustentável. “Quando eu morrer/ Cansado de guerra/ Morro de bem/ Com a minha terra/ Cana, caqui/ Inhame, abóbora/ Onde só vento se semeava outrora/ Amplidão, nação, sertão sem fim/ Ó Manuel, Miguilim/ Vamos embora…”
ODS 16 – Paz, justiça e instituições eficazes
Era 1970, direitos individuais eliminados pelo AI-5, a tortura se alastrava pelas sombras da ditadura militar, quando Chico lançou um monumental clamor pela liberdade. Caprichou na metáfora, usando sol, alegria e amor como armas contra o autoritarismo. Um clássico da MPB que viverá para sempre.
ODS 17 – Parcerias para a implementação de objetivos
Caçula da lista, “Que tal um samba?”, de 2022, dá nome à turnê atual que o premiado no Camões realiza, com a parceria de Mônica Salmaso. Virou hino do renascimento brasileiro após as trevas – “Um samba para alegrar o dia/ Pra zerar o jogo”.
Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!