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Veja o que já enviamosUm ano novo de revolução
Quero uma positividade que impulsione a sociedade a construir um mundo mais justo e compassivo, no qual negras não sejam obrigadas a sustentar o peso e a violência do racismo
2023 foi um ano que só segurando na mão de Oxalá. Nós nos encontramos na curva da passagem do tempo prontos para receber os parabéns por ter feito o que foi possível. A exaustão e o cansaço quase não nos permitem mais contemplar o espiralar do tempo. A virada de um ano para o outro nos exige uma nova agenda, com novas metas, com novas tarefas, com mais um monte por fazer. Queremos pensar em novas oportunidades, em outros desafios, em aprimoramento e buscamos desesperadamente uma tal “melhor versão” que no fundo a gente nem sabe o que é.
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A maioria de nós põe muita esperança e expectativa na chegada de um novo ano. É um ritual que envolve muito mais do que virar a página do calendário. Realizamos balanços internos, reflexões profundas, buscando reconhecer certa linearidade de progresso, sucesso e evolução que muitas vezes está baseada em coisas que disseram para gente que eram métricas de uma vida plena. No geral, a tendência é tentar encaixar as lágrimas e sorrisos de um ano em caixinhas para fazer as tais resoluções de ano novo.
A virada do ano é encarada como uma grande transformação que irá proporcionar altos voos. Revistas, colunistas, coachs e influenciadores vão nos recomendar olhar para dentro em busca de autoconhecimento e crescimento pessoal. Os horoscopinhos vão recomendar que exploremos novos horizontes e a galera do filão vida saudável vem com tudo no discurso pelo investimento no nosso próprio bem-estar. Tudo muito bem organizado e pré-formatado numa positividade tóxica que ultimamente tem ares de sabedoria ancestral. Tudo encapsulado em lettering e design com o intuito de transmitir força, resiliência e sabedoria, mas que oculta a busca obcecada por likes, shares e engajamento.
Parte significativa das orientações de final de ano que a gente vai ler nas redes sociais foram criadas por inteligência artificial. Tua influenciadora favorita vai te inspirar a conduzir a vida com coragem, amor e integridade, mas a verdade é que estamos com medo e totalmente quebradas em um mundo que cada vez exige mais das mulheres e que a cada novo ano nos desumaniza mais.
A renovação e as novas possibilidades que precisamos estão muito mais relacionadas na nossa capacidade de mobilização para exigir a observância dos nossos direitos. No discurso genérico de celebração à jornada da vida e nos desejos vazios de um ano novo cheio de realizações, muitas vezes se esconde o que deixou de ser realizado para a melhoria da vida daqueles e daquelas que estão resistindo, mesmo ocupando os piores índices socioeconômicos.
No discurso gratiluz cheio de good vibes, vivem estereótipos racistas que aumentam a pressão e a exploração do trabalho de pessoas negras. Afinal de contas, basta que fiquemos “de boas” que nossos problemas todos se resolvem. Nisso, a dinâmica das redes sociais entrega um romantismo que ignora ou minimiza as experiências reais de quem vai entrar no novo ano enfrentando as consequências concretas do racismo estrutural e das injustiças sistêmicas que nossas comunidades vivenciam.
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Veja o que já enviamosEu mesma sou pessoa bastante incisiva a respeito das minhas revoltas e expectativas em relação ao mundo. Não é que não queira descansar em gramas macias e perder tardes inteiras apreciando nuvens de algodão em céus profundamente azuis. É que a forma com que o mundo se organiza quase não me permite isso e quando o discurso da positividade e otimismo aparece de forma constante há um subtema inscrito: a pressão social para sermos fortes e encararmos as adversidades como desafios que irão nos fazer crescer enquanto seres humanos.
Tenho quase 36 anos e não aguento mais ser desafiada, não aguento mais essa falácia social que criou a ideia de que mulheres negras são imunes a exaustão. É como se a sociedade esperasse que a resposta para a opressão sistêmica fosse simplesmente um sorriso no rosto e uma atitude positiva, sem levar em conta o impacto emocional e psicológico das experiências vividas.
Espero que no ano que se inicia sejamos capazes de expressar nossos sentimentos sem atravessamentos racistas. Que não sejamos desencorajadas pela positividade tóxica, rosada e padrão, a botarmos para fora nossas raivas, tristezas e frustrações. Pois, assim como outras pessoas, temos tristezas e imensas frustrações que frequentemente engolimos com medo do julgamento alheio.
Que nos agarremos fortemente no nosso direito legítimo de sentir e reagir as situações difíceis sem precisar suprimir nossas emoções genuínas em prol de uma imagem idealizada de resiliência e resistência. Que a chegada do novo ano nos inspire a criar espaços que acolham nossas emoções e que validem tanto nossas experiências individuais quanto nossas vivências coletivas.
Quero uma positividade que impulsione a sociedade a construir um projeto por um mundo mais justo e compassivo, onde negras não sejam obrigadas a sustentar o peso e a violência do racismo enquanto são pressionadas a sorrir e ser benevolentes. Sem negar nem silenciar as lutas históricas da população negra. Uma esperança que transcenda o mero otimismo, mas que seja condutora de existência digna que reconheça que o passado, o presente e o futuro das gentes negras é resultado de uma inabalável consciência da nossa própria humanidade.
Que Exu abra os caminhos e potencialize nossas revoltas.
Desejo a todos nós um ano de revolução.
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