Para além daqueles que enfrentaram tortura, violência e morte dentro do Complexo Penitenciário de Pedrinhas durante a rebelião continuada entre 2013 e 2014, outras vidas também foram impactadas pelas chacinas que ocorreram: a dos familiares. “Não gosto nem de lembrar dessa parte da minha vida, a gente foi muito humilhado” – esse é o relato de Lucinda*, mãe de um jovem encarcerado, sobre o tratamento que os parentes de pessoas presas sofriam durante as visitas.
Lucinda conta que seu filho Daniel* cresceu em uma família grande e estruturada, com pais amorosos; porém, mesmo com a educação dada ao rapaz para que não se envolvesse com “besteira”, ele começou a andar com “amizades erradas” e se tornou usuário de maconha. Essa é a forma de relato da maioria das famílias de encarcerados: seu ente querido foi pelo “caminho errado”, andou com “pessoas erradas”. É muito dolorido para um familiar assumir que alguém que ama está envolvido com o crime e que prisão e morte podem passar a ser parte de seu caminho.
A tensão entre as facções afetava os familiares nos territórios e no próprio Complexo. “Um dia, minha nora tava lá dormindo na porta. Era uma sexta-feira e ela dormiu lá para a visita do dia seguinte. Aí passaram atirando nos familiares”, conta Lucinda, sobre um ataque de uma facção aos parentes que acampavam nas entradas das unidades para serem as primeiras a entrar nos dias de visita. “Quando uma mãe entrava e saía muito rápido, a gente já sabia que alguém tinha morrido”, relata a mãe de três filhos que, na época, trabalhava como empregada doméstica e morava no bairro Anjo da Guarda, na periferia de São Luís . Às vezes, uma pessoa era assassinada dentro da cela e escondida na lixeira; em outros casos, o corpo era colocado sentado em uma cadeira ou deitado na cama e coberto com um lençol.
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Naqueles meses de rebelião continuada em Pedrinhas, alguns presos chegaram a desaparecer no Complexo: uns fugiram e nunca mais foram capturados; outros foram mortos e a administração das unidades só percebeu quando a família dava por falta. Corpos de vítimas dos massacres foram enterrados dentro do complexo; outros foram cortados em pedaços e jogados fora no meio do lixo em sacos plásticos. Até hoje, há relatos de pessoas que sumiram nessa época e não foram mais encontradas.
Daniel, filho de Lucinda, não foi morto, porém não foi menos traumática a situação para a família. A mãe passava noites e noites chorando, perguntando para Deus por que a família dela enfrentava esse drama. Na época, os parentes, incluindo crianças e bebês, precisavam passar por uma revista vexatória, para as visitas em Pedrinhas. Lucinda lembra que tinha que tirar todas as roupas, agachar nua e tossir. Em alguns casos, eram usados espelhos embaixo da pessoa ou o familiar era obrigado a abrir as partes íntimas. A comida que ela preparava com todo amor era toda revirada.
Piores eram os dias em que os parentes ficavam na fila para entrar, no sol quente, por horas, e eram dispensados sem conseguir realizar a visita. Ela não sabia se Daniel estava bem ou não, apenas na visita. Muitas famílias só descobriam que seu ente querido havia morrido ao entrar para visitá-lo; a desorganização era enorme.
Sentença de morte
A história de Lucinda não é muito diferente da vivida por outros familiares. Com os assassinatos constantes, em 2013 e 2014, ser transferido para o Complexo Penitenciário de Pedrinhas era quase uma sentença de morte. Margarida*, hoje com 68 anos, se sentiu assim quando soube que o filho foi preso. “Levaram meu filho lá para as Pedrinhas”, contou a mulher para seus parentes, chorando e preocupada com o futuro do rapaz.
Dona Margarida também não sabia como seu filho Rogério* estava até conseguir vê-lo. Na primeira vez que o visitou, ele estava todo molhado, pois só tinha uma muda de roupa (a que estava vestido) e precisou lavar. Por isso, estava usando a roupa molhada: não tinha como vestir outra para esperar aquela secar. Ela acompanhou o físico esbelto do filho mudar por conta da má alimentação e do grande tempo ocioso em que ele passava nos pavilhões.
Ainda em 2013, Margarida conseguiu que seu filho respondesse em liberdade. Ele havia sido preso no começo de 2013 por ter violado a condicional – respondia em liberdade após ser condenado pela participação numa briga de bar que ocasionou a morte de um rapaz. Durante os piores motins, em outubro de 2013, Rogério já estava em casa com a família.
Atualmente, após 10 anos, ele continua indo às audiências para a Justiça averiguar que ele não reincidiu no crime e que está trabalhando. Hoje ele mora com a esposa e um filho recém-nascido. Porém, Dona Margarida não tem paz até hoje. “Toda vez que ele sai de casa, que se mete em alguma briga, eu começo logo a chorar com medo de que ele seja preso de novo e eu tenha que passar por tudo aquilo de novo”, conta.
Após o encarceramento de Rogério, parou de sair com as amigas e se negou o direito de se divertir. Mãe de sete filhos, criados no bairro Anil, ela diz que, quando fecha os olhos para dormir à noite lembra de todos os horrores que queria muito poder esquecer. “Toda vez que eu fecho os olhos para dormir, lembro de tudo aquilo, da gritaria, daquele monte de briga que tinha aqui em casa. Às vezes só queria poder esquecer, mas parece que não consigo, que fica grudado na minha mente”, relata Margarida, que, 10 anos depois, quase não sorri; permanece sempre com o semblante sério de uma mulher que já sofreu muito.
Já Lucinda teve que vivenciar todo o período de rebelião em Pedrinhas com seu filho encarcerado. Ele foi preso junto com o primo por assalto. Luci nem acreditou quando soube, que seu menino estaria fazendo aquilo, já que ele não tinha necessidade. “Meu filho é muito lindo, sabe? Mas é assim… uma beleza que se estraga naquele lugar”, diz, demonstrando o desgosto de ver o seu caçula e filho mais chegado perder sua vida daquela forma. Antes da pandemia da Covid-19, ele foi solto para responder em liberdade. Nesse período ele arranjou emprego, mulher e filho.
Quando parecia que a vida dele havia engrenado, ele foi chamado em 2022 para se apresentar novamente à Justiça por ainda ter pena em regime fechado que não havia sido cumprida. Daniel ainda se encontra encarcerado até o atual momento, mas dessa vez a mãe não está disposta a cumprir a mesma rotina de visitas que teve por anos. “Eu não abandonei meu filho; eu só estou cansada e eu e o pai dele precisamos cuidar da gente agora”, desabafa agora, evitando a sofrer novamente toda a humilhação que passou. O pai de Daniel foi diagnosticado com depressão por conta do baque que foi o filho ser preso. Toda a família – irmãos, tios, primos e outros parentes – foi abalada e nunca mais os encontros familiares foram os mesmos.
A ajuda nunca chegou
As famílias denunciaram diversas vezes o abandono do Estado. “Levaram nossos filhos para matar”, desabafou uma mãe. A crítica era a de que as pessoas eram levadas de qualquer jeito e até ilegalmente para o Complexo de Pedrinhas, depois os familiares não recebiam mais nenhuma informação enquanto eram assassinadas encarcerados aos montes dentro dos muros. As famílias precisavam arcar financeiramente para manter seu ente lá. Dona Margarida relata que todo mês fazia uma compra de R$ 200 – em uma época em que o salário-mínimo era R$ 678 – de mercearia, além de adquirir roupas e artigos de higiene para levar a seu filho na prisão. Parte dos produtos era entregue a colegas de pavilhão para que Rogério – não envolvido com as facções – tivesse segurança atrás das grades.
O presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos do Maranhão, Luís Pedrosa, afirma que famílias sem condições financeiras de sustentar seus parentes na prisão precisavam se submeter ao crime organizado, tendo que fazer favores como serem usadas como mulas no tráfico de entorpecentes e correndo o risco de acabarem na cadeia também. “A família da pessoa de periferia que entra ali empobrece cada vez mais, pois perde aquela pessoa economicamente. Muitas vezes, precisavam fazer acordos com as facções para poder manter o seu familiar porque naquela época era muito pior. A família tinha que comprar os materiais de higiene pessoal, comida; tudo isso era moeda de troca”, relata Pedrosa.
A Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, na época, procurou os familiares dos assassinados para fazer um levantamento de que suporte do Estado haviam recebido e a resposta foi: nenhum. Josiane Gamba, integrante da SMDH, foi uma das pessoas que visitou os familiares e ficou com um bolo na garganta quando, em uma entrevista, uma criança – que aparentava ter, no máximo, cinco anos – disse “Eu vi papai na televisão”. O menino tinha reconhecido o corpo ensanguentado do pai pela TV por causa da camisa do time de futebol São Paulo, do qual ele era torcedor.
A organização foi uma das peticionárias responsáveis pela denúncia de violação dos direitos humanos no Complexo de Pedrinhas junto à Conectas, organização nacional de defesa dos direitos humanos que tem status consultivo junto à ONU, e à OAB-MA. Josiane afirma que o local havia se tornado uma máquina de “eliminação gradual de pessoas”.
“E quem mais sofreu nessa situação foram as famílias. Eu pude acompanhar a entrevista com os familiares e essa foi a pior parte porque o luto dessas famílias precisa ser silencioso: são todas de periferia, vivem com medo”, relata a ativista, destacando como o controle dos grupos criminosos nos bairros periféricos dificultou o acesso à Justiça dos parentes das pessoas que foram mortas no complexo penitenciário.
O Governo do Estado foi condenado a pagar R$ 100 mil de indenização para as famílias das 64 pessoas assassinadas na rebelião continuada em Pedrinhas por ter gerado um dano coletivo. Porém, dez anos depois, a indenização ainda não foi paga. A Prefeitura de São Luís, por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), ficou responsável pelo tratamento da saúde mental dos familiares, mas todos entrevistados disseram que o acompanhamento foi insuficiente.
Pessoas que sofrem com vício em entorpecentes também encontram dificuldade em encontrar o tratamento pela rede pública. As famílias precisam pagar clínicas de reabilitação ou esse trabalho é feito por centros evangélicos, os quais são alvos de várias denúncias por violações em direitos humanos.
Atualmente, muita coisa mudou, mas as famílias ainda sofrem com efeitos colaterais por não existir nenhuma política pública de amparo. E, com o país encarcerando cada vez mais pessoas, a tendência é o problema apenas piorar.
*Os nomes foram trocadas a pedido das entrevistadas