Massacres no Complexo de Pedrinhas: a noite que ninguém esqueceu

Massacres no Complexo de Pedrinhas: a noite que ninguém esqueceu

Especial 'Complexo de Pedrinhas: marcas de uma barbárie' | Motim mais violento em um ano de rebelião continuada teve 10 mortes e mais de 70 feridos na cadeia, além de sete ônibus incendiados pela cidade

Por Lara Souza | ODS 16 • Publicada em 11 de junho de 2024 - 01:55 • Atualizada em 19 de junho de 2024 - 12:15

A crise já vinha se agravando desde o começo do ano de 2013 no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís do Maranhão. Uma rebelião continuada, declarada por duas facções rivais, vinha provocando uma série de massacres. Enquanto isso, as condições de sobrevivência dentro dos presídios eram quase impossíveis por conta da falta de saneamento, do calor e de violações contra os direitos humanos.

O maior motim dessa rebelião continuada – que já havia resultado na fuga de 85 pessoas encarceradas em Pedrinhas e teve, no total, 64 pessoas assassinadas até os primeiros meses de 2014 –  foi registrado em 9 de Outubro de 2013, na Casa de Detenção (Cadet), uma das unidades do complexo penitenciário.

Leu essas? Todas as reportagens da série Complexo de Pedrinhas: marcas de uma barbárie

A insurreição dos internos começou um pouco antes das 18h quando os agentes penitenciários (hoje chamados policiais penais) resolveram fazer a inspeção em uma das celas do Bloco F, pavilhão II, onde estavam integrantes do Bonde dos 40, uma das facções que dominavam o presídio. A revista aconteceria porque os agentes suspeitavam que estava sendo cavado um túnel para dar fuga a cerca de 50 pessoas. Contudo, os encarcerados naquele pavilhão se rebelaram e impediram a entrada dos agentes. Foi o estopim para o conflito que só foi encerrado na madrugada com 10 mortos e dezenas de feridos.

A estrutura do Complexo de Pedrinhas, para quem o via da rodovia BR-135 à época, era um grande muro alto amarelo, intercalado por guaritas. Todas as unidades tinham entradas separadas, de frente para a BR, que consistiam, em cada uma, de um portão grande para a entrada de veículos e um portão pequeno para a entrada de pessoas. A Cadet era o segundo conjunto de portões – logo após o Presídio de Pedrinhas. Era a segunda unidade mais antiga e com estrutura para aprisionar 500 pessoas; havia 675 homens ali naquela noite, a maioria (62%) detidos provisoriamente.

“Quando a gente entrou, jogaram uma cabeça de uma pessoa na gente. Uma cabeça mesmo. ‘Toma, aí, para vocês, bando de abestados!’. Era assim que eles gritavam

Michael Trombim
Policial penal

A unidade era constituída de três grandes galpões e compridos, separados por níveis diferentes; era como se a Cadet estivesse descendo degraus de uma escada. Na época, as facções ainda se misturavam dentro das unidades. Mas o pavilhão mais alto estava destinado aos integrantes Bonde dos 40, facção formada na capital; o mais embaixo reunia majoritariamente integrantes do PCM (Primeiro Comando do Maranhão) – facção criada no próprio por pessoas que haviam sido presas no interior do estado e transferidas para São Luís; o pavilhão do meio era reservados a homens considerados neutros na guerra entre os dois bandos envolvidos na disputa territorial pelo tráfico de entorpecentes no Maranhão. Nenhum preso ficava restrito à sua cela. Isso impedia que os agentes realizassem os procedimentos regulares de segurança, como revistas e vistorias. E ameaçava a integridade física de todos ali dentro – funcionários e prisioneiros.

A Casa de Detenção, palco do mais violento motim em um ano de rebelião continuada em Pedrinhas: estrutura precária, facções em guerra e descontrole do estado (Reprodução: TV Mirante)
A Casa de Detenção, palco do mais violento motim em um ano de rebelião continuada em Pedrinhas: estrutura precária, facções em guerra e descontrole do estado (Reprodução: TV Mirante)

Naquele final de tarde, o bate-boca inicial teve como sequência uma troca de tiros. Como os agentes insistiam, sem conseguir, em entrar para vistoriar as celas, alguns internos começaram a sair armados de dentro do pavilhão e atirar. O descontrole nas unidades era tão grande que as pessoas encarceradas ali conseguiam quase tudo que queriam: drogas, alguns eletrodomésticos, aparelhos de TV, celulares, videogames e até armas de fogo.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

Naquela noite de motim, o Grupo Especial de Operações Penitenciárias (Geop) foi chamado para conter a rebelião na Cadet. A segurança das unidades era feita por uma empresa privada contratada, a Atlântica, porém os guardas já haviam deixado seus postos ao primeiro sinal de confusão. Quando o Geop entrou, o caos já havia se instalado, com paredes inteiras quebradas e grades derrubadas. A divisão entre os blocos já não mais existia e as pessoas corriam por toda a extensão da penitenciária. Parecia uma cena de guerra, algo visto somente em filmes.

O agente Michael Trombim, à frente do comando do Geop naquela noite, conta, 10 anos depois, que sentia-se apático diante da rotina de brutalidade no Complexo de Pedrinhas. “Quando a gente entrou, jogaram uma cabeça de uma pessoa na gente. Uma cabeça mesmo. ‘Toma, aí, para vocês, bando de abestados!’. Era assim que eles gritavam para a gente”, relata.

Michael recorda ter pensado, no mesmo momento, o quanto ele havia ficado insensível em relação às atrocidades que via todos os dias. Olhou para a cabeça – que minutos antes havia sido parte de um ser humano como ele – e não sentiu o horror que deveria sentir com essa situação. O Geop entrou e saiu: o grupo teve que se retirar da unidade por motivo de segurança, era impossível que tão poucos – apenas uma dúzia de agentes – conseguissem parar aquela turba raivosa. Resolveram esperar por reforços – a Polícia Militar já havia sido acionada.

Vítima de conflito na penitenciária é retirado de Pedrinhas: estrutura precária, descontrole e guerra de facções (Reprodução: TV Mirante)

Tiros, gritos e explosões

Nas outras unidades, o esforço era para evitar que o motim não se espalhasse, como havia ocorrido outras vezes durante aquele ano, em conflitos com vítimas em mais de uma cadeia do Complexo de Pedrinhas. Quando o pessoal do Geop e outros agentes perceberam que não conseguiriam deter o banho de sangue na Cadet, usaram seus esforços para conter a tentativa de insurreição na Central de Custódia de Presos de Justiça (CCPJ) e no Presídio de Pedrinhas, onde as pessoas encarceradas começaram um tumulto por conta do barulho vindo da unidade vizinha.

Wilma Roseane Diniz – na época, diretora da CCPJ, unidade separada apenas por um muro da Cadet – conta que foram quase 40 minutos seguidos de um barulho ensurdecedor, tanta coisa junta, algo que ela nunca tinha ouvido em toda sua experiência em penitenciárias. Eram tiros, gritos, bombas, explosões, estrondos de quebra de paredes e grades. Foi necessário fazer um buraco no muro que separava as unidades para que pessoas neutras pudessem ter uma chance de escapar do banho de sangue. Mais de 200 pessoas passaram pelo muro e se abrigaram na quadra da CCPJ. Quando Wilma olhou para a unidade que estava sendo destruída, ficou chocada. “Tinha um vão enorme, onde antes tinha uma parede, e um corpo atirado no chão no caminho que antes levava à administração. Fiquei pensando na força que o ser humano tem para conseguir fazer aquilo tudo”, recorda Wilma, 10 anos depois.

O Batalhão de Choque da PM do Maranhão chegou para dar o reforço ao Geop e tentar conter o motim. Enquanto isso, dezenas de pessoas se reuniam em frente ao portão de entrada da Cadet para ter notícias de seus parentes. Em vão. Naquela altura da noite, ninguém sabia dizer quem estava vivo, morto ou ferido, nem a administração do presídio nem os policiais e agentes. Do lado de fora, era possível avistar as chamas e a fumaça do incêndio lá dentro: fogo foi ateado em colchões empilhados para o desespero de quem esperava por informações do outro lado do portão. Muitos familiares tentaram derrubar o portão à força ou atirando pedras.

O Complexo Penitenciário de Pedrinhas antes da reforma: facções rivais na mesma unidade e facilidade de entrada de armas (Foto: Clayton Montelles / Governo do Maranhão)

Quando os policiais do Choque e os agentes do Geop, já com o apoio do Grupo Tático Aéreo da PM, entraram, finalmente, na Cadet, horas após o começo do motim, os confrontos entre as facções já não estavam tão intensos. Os internos já não se arriscavam tanto a subir ou descer para atingir os rivais. Com a entrada da tropa, as pessoas reunidas à frente da entrada da Cadet ouviram mais tiros, gritos e estrondos.

À equipe da Defensoria Pública do Estado (DPE) que esteve no Complexo de Pedrinhas nos dias subsequentes ao conflito, as pessoas encarceradas na Cadet naquela noite contaram que a força de contenção da rebelião entrou aos gritos de “Aqui é a Operação Carandiru!”, fazendo referência à invasão policial na antiga Casa de Detenção de São Paulo em 1992, quando 111 pessoas foram mortas, no maior massacre prisional do país.

Uma medida internacional acontece quando se esgotam todos os recursos locais e era essa a situação: a gente estava cansado de ver aquela eliminação gradual de pessoas

Joisiane Gamba
Advogada e integrante da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos

A família de Dorgival Alves, de 38 anos, foi uma das que denunciou aos jornalistas, na época a morte de uma pessoa sem envolvimento com facções durante o motim. Ele cumpria pena na Cadet por tráfico de drogas, em sua segunda passagem pelo complexo penitenciário. Segundo o relato de companheiros de cela para aos defensores públicos, com a guerra se desenrolando e o temor de sufocamento pela fumaça do incêndio nos colchões, Alves correu para tentar ajudar a apagar o fogo quando foi atingido por um tiro do grupo de contenção da rebelião (ninguém soube dizer se do Geop ou da PM). Um colega de cela relatou à DPE que ele pediu ajuda enquanto agonizava: “Eu não posso morrer que eu tenho cinco filhos para criar!”. Não houve tempo para salvá-lo.

Com o helicóptero sobrevoado e dando apoio às unidades em terra, os internos começaram a planejar uma negociação. Idenilson Viegas, de 35 anos, conhecido como “Irmão Idenilson” por ser evangélico e neutro – ou seja, sem ligação com facção – foi escolhido para ser o porta voz de condições para uma rendição. A família dele foi outra a denunciar sua morte por agentes de segurança para DPE e para a imprensa. De acordo com depoimentos de colegas de pavilhão à DPE, os faccionados deram a Idenilson um celular e instruções para que levasse até o grupo de contenção. Ao avistá-lo, agentes posicionados em guaritas à distância o alvejaram com tiros. As testemunhas garantem que ele estava desarmado e não havia feito nada que indicasse um perigo iminente.

Além de Idenilson e Dorgival, outras oito pessoas foram mortas naquela noite: Carlos Eduardo Oliveira, 23, Cosme Damião Sousa, 53, Daniel Fonseca Rodrigues, 23, Fábio Silva Lima, 30, Natanael de Sousa do Espírito Santo, 30, Ubiraci Pereira Aranha, 22, Uvanir Duarte de Farias, 64, e Gilson de Jesus Pinheiro, 24. Além das mortes, cerca de 40 pessoas precisaram ser levadas aos hospitais de urgência com ferimentos. Contudo, com tanta gente armada, das duas facções e das forças de segurança, era impossível identificar quem atirou em quem.

Em meio a tanta confusão, era impossível saber até se houve fogo amigo. Entre os principais problemas do sistema prisional na época estava a falta de padronização e fardamento. Agentes trabalhavam com a arma no bolso da bermuda. Não tinham qualquer fardamento específico para a função que exerciam. Pessoas condenadas, cumprindo pena, usavam roupas caras, tênis de marca e cordões grossos de prata ou ouro. A forma como os chefes das facções se vestiam dentro dos presídios era uma demonstração de status.

Em algumas rebeliões, agentes foram atingidos até mesmo por fogo amigo, vindo do Geop ou da PM. Além disso, naquela desorganização, não existia procedimento padrão nem para desmobilizar um motim nem para outras situações de crise. O protocolo pra contenção era a força bruta. O Geop sequer tinha acesso à munição não letal.

Defensor público conversa com preso durante vistoria em Pedrinhas em 2015: após a noite mais sangrenta de 2013, internos culparam agentes de segurança por pelo menos duas mortes (Foto: Anadep / Divulgação)

Cidade em chamas

Enquanto as forças de segurança se concentravam em frente ao Complexo Penitenciário de Pedrinhas, a poucos quilômetros dali, na Zona Urbana de São Luís, três homens armados saíram correndo de um carro e invadiram um ônibus. Os passageiros se desesperaram achando que era um assalto, mas os invasores começaram a gritar para todos descerem. Apenas segundos depois, o fogo tomou conta do coletivo. Ao todo, sete ônibus foram queimados naquela noite, como parte da guerra que estava ocorrendo na Cadet. A rebelião ultrapassou os muros do complexo e estava chegando ao asfalto. Ninguém ficou ferido nestes ataques que ocorreram nos bairros Vila Kiola, Tibiri, Jardim São Cristovão, Vila Janaína, Maracanã, Cohab Anil e Monte Castelo.

O Bonde dos 40 assumiu a iniciativa do motim: integrantes da facção disseram a jornalistas que o ataque a inimigos nos pavilhões foi realizado como vingança pelo assassinato de três aliados dias antes. A administração da penitenciária, entretanto, levantou a hipótese da rebelião também ter ocorrido por uma retaliação à prisão de 38 pessoas ligadas à facção em uma festa. A prisão em massa foi resultado de uma operação com mais de 50 policiais, um dia antes desta rebelião no Complexo de Pedrinhas.

Na visita à Cadet dias depois da rebelião, a Defensoria Pública do Estado relatou ainda ter encontrado detentos convalescendo de ferimentos de armas de fogo da noite do conflito, alguns de barriga aberta (cortada) ou com a perna quebrada que não haviam sido levados ao hospital. De acordo com os defensores, mais de 30 feridos ficaram sem assistência médica adequada ou acesso a remédios. Com a estrutura da Cadet quase completamente destruída, alguns presos passaram dias sob sol escaldante no pátio de uma unidade vizinha; outros ficaram abrigados em uma quadra de esporte sem cobertura. Por meses, internos ficaram em barracas até as celas serem reformadas.

Após este motim, que destruiu a já precária estrutura da Cadet, o Complexo de Pedrinhas finalmente recebeu reforços da Força Nacional, após decreto de Situação de Emergência no Sistema Penitenciário do Estado do Maranhão, pelo período de 180 dias, Decreto n. 29.443, de 10 de outubro de 2013. Contudo, este não foi o fim da rebelião, apenas o ápice. Nos meses seguintes os massacres continuaram. Somente em 2013, foram assassinadas pelo menos 45 pessoas; e outras 19 se somaram à lista em 2014.

A noite de 9 de Outubro também embasou a petição preparada por entidades da sociedade civil para órgãos internacionais. A Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), a seccional maranhense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a ONG Conectas de Direitos Humanos realizaram um relatório para a Comissão Internacional de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) para pedir por uma intervenção internacional no complexo penitenciário. “Uma medida internacional acontece quando se esgotam todos os recursos locais e era essa a situação: a gente estava cansado de ver aquela eliminação gradual de pessoas”, afirma Joisiane Gamba, relatora da SMDH.

Lara Souza

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFMA (Universidade Federal do Maranhão. É cofundadora da agência Sebá Comunica e assessora de comunicação na pauta dos Direitos Humanos. Metade maranhense e metade carioca, é apaixonada por leitura e escrita criativa.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile