Pesquisa mostra racismo institucionalizado no país

Manifestação no Rio de Janeiro, logo após a morte de George Floyd, nos EUA (Foto: Barbara Dias / AGIF)

Levantamento inédito registra 49 manifestações racistas ditas por autoridades públicas: presidente, procuradores, ministros, deputados...

Por Liana Melo | ODS 10ODS 16 • Publicada em 25 de novembro de 2020 - 09:49 • Atualizada em 9 de dezembro de 2020 - 09:51

Manifestação no Rio de Janeiro, logo após a morte de George Floyd, nos EUA (Foto: Barbara Dias / AGIF)

O discurso de ódio racial das autoridades públicas é cada vez mais recorrente. Os racistas perderam a vergonha e saíram do armário. Um levantamento feito pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) em parceria com a ONG Terra de Direitos, entre 1º de janeiro de 2019 e 6 de novembro deste ano, mapeou 49 casos de discursos institucionais  racistas proferidos pelo presidente da República, seu vice, deputados, ministros e representantes políticos das três esferas da federação (municipal, estadual e federal). A pesquisa comprovou, em números, que o racismo se naturalizou no país entre algumas autoridades públicas. É como se fosse o novo normal.

“Racismo é algo raro no Brasil” (em programa de TV, ao tentar se defender da acusação de racista)

Deputado, o que você acha das pessoas de bem portando fuzil? Hummm, depende, qual a cor? (no Twitter)

 

Escravidão é quase um aspecto da natureza humana (ao homenagear a data de assinatura da Lei Áurea)

Não acho que nós tenhamos dívida com quilombolas (…) problema da escravidão aqui no Brasil foi porque o índio não gosta de trabalhar (durante evento com estudantes)

Temos mais negros com armas, mais negros no crime, mais negros confrontando a polícia (ao negar o genocídio da população negra em Discurso na Câmara de Deputados)

De 2019 para 2020, o número de declarações racistas proferidas por autoridades públicas mais que dobrou (106%), pulando de um total de 16 para 33 casos. Neste ano, todos os meses chegaram a ocorrer pelo menos um discurso racista. Não foram incluídos na pesquisa declarações que configurassem injúria racial, crime previsto no artigo 140 do Código Penal, que consiste em ofender alguém com base em sua raça, cor, religião, idade ou deficiência.

Também não constou do estudo as frases racistas ditas pelo presidente Bolsonaro e seu vice Hamilton Mourão após o assassinato de João Alberto Freitas, por seguranças do Carrefour em Porto Alegre, às vésperas do Dia da Consciência Negra. Mourão afirmou que “no Brasil não existe racismo” e o Bolsonaro completou afirmando que são “tentativas de importar para o nosso território tensões alheias à nossa história”. Presidente e vice reeditaram, com outras palavras, a ideologia da democracia racial, tão defendida e propagada pelos militares durante a ditadura.

A data do lançamento do monitoramento foi escolhida a dedo. Por ser o mês da Consciência Negra, novembro seria o período ideal para discutir o assunto. Só que as cenas da vida real surpreenderam até mesmo os organizadores da pesquisa. A morte de João Alberto foi seguida de um manifesto de juízes e juízas da Associação dos Magistrados do Estado de Pernambuco (Amepe) contra um curso online que seria ministrado a eles sobre racismo. Os assinantes do abaixo-assinado alegaram “infiltração ideológica” nas “causas sociais” levantadas dentro da entidade, e que seu conteúdo poderia provocar “cisões internas”. Dos 505 membros da Amepe, quatro deles assinaram o manifesto.

Considerando os anos de 2019 e 2020, Bolsonaro e deputados estaduais lideraram as ocorrências registradas no período estudado: 12 discursos racistas cada qual, o que representou 25% dos casos. Em seguida, vieram discursos de ministros, secretários e presidente de autarquias, num total de 11. Por fim, frases racistas proferidas por deputados federais (6), vereadores (5) e membros do sistema de justiça, juízes e procuradores (3). Dos discursos listados, 96% deles foram ditos por homens e 4%, por mulheres.

O levantamento mapeou cinco tipos principais de discursos racistas.  São eles: reforço de estereótipos racistas, incitação à restrição de direitos, promoção da supremacia branca, negação do racismo e justificação ou negação da escravidão e do genocídio. Os discursos mais recorrentes reforçaram estereótipos racistas (18 casos) e incitaram à restrição de direitos, principalmente de quilombolas (15 casos).

É notável a maior disseminação de discursos dedicados a promover a supremacia branca no ano de 2020

“É notável a maior disseminação de discursos dedicados a promover a supremacia branca no ano de 2020”, comenta Givânia Maria da Silva, coordenadora da Conaq, complementando seu raciocínio, afirmando que “este tipo de discurso parece estar sendo utilizado como ferramenta de reação ao fortalecimento dos movimentos globais de luta contra o racismo e em defesa das vidas negras, que marcaram de forma significativa o ano de 2020”.

Nascida no quilombo Conceição das Crioulas, no interior de Pernambuco, Givânia está convencida de que, com base no levantamento, “é possível apontar para a ocorrência de uma espécie de efeito manada: o uso do discurso racista por algumas autoridades acaba por legitimar e encorajar a disseminação do ódio racial através do discurso por outras autoridades”.

À medida que se tornam visíveis e presentes no debate público, o levantamento constatou que as instituições reagem sob “um impressionante regime de silenciamento no tratamento das denúncias”. Dos 49 casos mapeados, em 20 deles (40%) foram iniciados procedimentos de apuração dos fatos e/ou responsabilização, seja por meio de abertura de inquérito, ação ou procedimento administrativo. Nenhum dos casos, resultou em responsabilização dos autores, tornando a impunidade e a falta de respostas eficazes das instituições públicas a regra nas ocorrências de discursos racistas proferidos pelas autoridades públicas no Brasil.

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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