Praça dos Três Poderes e Capitólio: semelhanças e diferenças

Depredação do patrimônio, arte e cultura mostram o desprezo da democracia pela extrema-direita (Foto: Mateus Bonomi/ AFP)

Historiador analisa os ataques criminosos no Distrito Federal em 2023 e a invasão golpista à sede do Legislativo nos EUA em 2021

Por Ana Carolina Aguiar | ODS 16 • Publicada em 11 de janeiro de 2023 - 10:00 • Atualizada em 15 de janeiro de 2024 - 09:46

Depredação do patrimônio, arte e cultura mostram o desprezo da democracia pela extrema-direita (Foto: Mateus Bonomi/ AFP)

As semelhanças entre os ataques aos prédios dos Três Poderes no último domingo (8), no Distrito Federal, e a invasão ao Capitólio, sede do poder legislativo estadunidense, em 6 de janeiro de 2021, são muitas. Vão da proximidade das datas à recusa dos chefes de Estado Jair Bolsonaro e Donald Trump em reconhecer sua derrota nas urnas, mas há diferenças substantivas e que revelam maior gravidade no caso brasileiro, afirma o historiador João Daniel Almeida, professor de Relações Internacionais da PUC-Rio.

É com base na memória idealizada e delirante dessa ditadura brasileira que se construiu o bolsonarismo. A ditadura que tortura e mata. Não é a memória do desenvolvimentismo e dos militares moderados, mas sim a memória do porão mais nojento e abjeto

João Daniel Almeida
Historiador e professor de Relações Internacionais

Para começar, nos EUA o ataque foi ao Legislativo e, aqui no Brasil, os crimes afetaram também Executivo Federal e a Suprema Corte. Por sua vez, Lula já havia tomado posse há uma semana, enquanto Trump ainda era o presidente na data da invasão e continuou no posto até que Joe Biden tomasse posse em 20 de janeiro de 2021.

Além do factual, Almeida destaca a importância de se perceber que a “trumpização” estava restrita a uma parte do sistema político estadunidense e não tomou conta das Forças Armadas, forças de segurança e elementos militares do país. Portanto, por lá, não houve leniência das forças de segurança diante dos ataques como constatado por aqui no episódio de domingo ou nos bloqueios de rodovias pós-eleição ou em relação aos acampamentos pedindo golpe diante de quartéis.

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O historiador ressalta ainda a ligação desses movimentos no Brasil com o histórico de uma ditadura militar que durou 21 anos. “É com base na memória idealizada e delirante dessa ditadura brasileira que se construiu o bolsonarismo. A ditadura que tortura e mata. Não é a memória do desenvolvimentismo e dos militares moderados, mas sim a memória do porão mais nojento e abjeto”, analisa, lembrando que Bolsonaro celebra essa memória constatemente como no episódio em que homenageou um torturador, o coronel Carlos Brilhante Ustra, durante o impeachment de Dilma Rousseff em 2016.

Almeida ressalta que uma parcela da sociedade brasileira ainda acena para esse passado autoritário por ter essa memória viva. Ele lembra que, apesar de Trump flertar com o populismo de extrema-direita, não celebra torturadores nem fala que vai implementar uma ditadura. “Isso é muito mais perigoso no Brasil do que nos EUA porque lá nunca teve uma ditadura. O Trump fala em roubo da democracia e direito de expressão com viés autoritário, mas não está celebrando uma ditadura que, no caso do Brasil, já aconteceu e é celebrada como positiva por essa parcela de delirantes. Acredito que essa seja talvez a principal diferença entre os dois casos”, pontua.

De acordo com o historiador, os atos criminosos dos bolsonaristas no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal anunciam dois apontamentos em relação ao fascismo na sociedade brasileira atual. O primeiro aspecto é a eliminação completa da falsa equivalência entre a esquerda e a extrema-direita. Almeida identifica a necropolítica existente nessa extrema-direita pautada na violência e destruição. “Setores da direita liberal e moderada do Brasil afirmavam que são dois extremos violentos igualmente. Não tem isso. Eles são pessoas descoladas da realidade e não respeitam nada. Nem a arte, a cultura, os símbolos nacionais, as instituições”. 

Trabalhadores arrumam e limpam os rastros das ações dos criminosos no Palácio do Planalto (Foto: Mateus Bonomi)

A mobilização popular da esquerda, ocorrida em 2016, após a extinção do Ministério de Cultura no governo Temer, ilustra essa diferença. Sem depredação e violência, a ocupação no Palácio Capanema – um edifício carioca considerado um dos maiores monumentos arquitetônicos do mundo – durou meses e durante o movimento houve uma preocupação dos ocupantes em proteger o tapete, as vidraças, os banheiros e as obras de arte que já estavam em situação precária de manutenção por causa da falta de orçamento. Também tiveram shows de figuras importantes da música brasileira como Chico Buarque e Gilberto Gil. “Foi um espaço de criação durante uma ocupação. Já no ataque de domingo, em quatro horas, eles destruíram tudo. É um absurdo. Essa falsa equivalência ficou muito clara. Essas pessoas são terroristas e devem ser tratadas como tais pela força da lei.”

Nem sempre é possível conciliar. Esse é o segundo aspecto apontado pelo historiador.  “A conciliação ocorre quando adversários políticos têm posicionamentos divergentes, mas não é possível conciliar com a aniquilação e destruição da democracia. O direito de expressão tem limites. O limite dele é o direito penal. Quando a própria democracia é questionada, esses grupos fascistas de extrema-direita não deveriam ter o direito de se organizar”, pontua. 

Espero que o Estado brasileiro e a democracia demonstrem toda a sua firmeza contra esses extremistas e que mandem prender todos eles

João Daniel Almeida
Historiador e professor de Relações Internacionais

O historiador relembra os episódios antidemocráticos durante o governo Juscelino Kubitschek na década de 1960. O presidente da época enfrentou duas rebeliões armadas da Aeronáutica, que era o grupo mais radicalizado, com as revoltas de Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959). Os participantes da primeira tentativa de golpe foram anistiados pelo próprio Juscelino, e, os da segunda revolta, perdoados no governo Jânio Quadros. Essas lideranças se tornaram nomes influentes da ditadura militar brasileira chegando, poucos anos depois, ao poder. Um desses nomes, o brigadeiro João Paulo Burnier, foi responsável por diversas torturas e pela tentativa de explosão do Gasômetro no Rio de Janeiro para culpar comunistas. Ele era considerado delirante até pela própria direita. Entre as pessoas que estavam acampando, havia figuras da alta cúpula da segurança que contaram com a leniência e com o apoio de militares. Se essas pessoas não forem punidas, podem se tornar novos Burnier. Numa eleição futura em que um Bolsonaro ou alguém do tipo seja eleito, nós estaremos colocando em risco a própria democracia. Não pode ter política do apaziguamento”.

Almeida considera 8 de janeiro de 2023 o dia mais triste, até aqui, da democracia brasileira na nova república e, portanto, esse episódio exige uma cobrança absoluta das instituições brasileiras diante do fascismo. “Espero que o Estado brasileiro e a democracia demonstrem toda a sua firmeza contra esses extremistas e que mandem prender todos eles”, afirma.

Apesar de imaginar que ainda haverá uma parcela de extrema-direta por um tempo na sociedade, Almeida enxerga o grande desafio da democracia no Brasil neste momento: a desbolsonarização e a desradicalização da alta cúpula das forças de segurança.  “Sem isso, a gente vai continuar refém. Infiltrados dentro dessas forças sendo financiados por empresários golpistas antidemocráticos não pode ser algo aceitável. Essas pessoas precisam ser processadas, exoneradas, presas e colocadas em lugares em que não tenham nenhuma posição de poder”.

Ana Carolina Aguiar

Jornalista, comunicadora antirracista, da Baixada Fluminense e apaixonada por ouvir e contar histórias. Seja por meio da fotografia, audiovisual ou escrita. Foi estagiária da assessoria de comunicação do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro e colaboradora do portal Notícia Preta.

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