ODS 1
Polícia do Rio produz sua maior chacina numa favela: 28 mortos
Especialistas em segurança pública e direitos humanos criticam operação policial que levou terror à população do Jacarezinho, na Zona Norte
A favela do Jacarezinho sofreu, na manhã desta quinta-feira (6), a maior chacina provocada por agentes de segurança na história do Rio de Janeiro. A Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente realizou, com auxílio de várias unidades da polícia, a Operação Exceptis que matou pelo menos 27* moradores da comunidade popular da Zona Norte carioca – um policial também morreu durante a incursão. A ação é mais uma que desobedece a proibição do Supremo Tribunal Federal a invasões de favelas durante a pandemia.
Ao menos dois policiais civis e dois passageiros que estavam no vagão do metrô na linha 2, próximo à estação Triagem, também foram feridos durante os disparos. Dentro da composição, o clima foi de pânico, com as pessoas se jogando no chão, em meio ao barulho do intenso tiroteio. O MetrôRio informou que um passageiro foi atingido por estilhaços de vidro e outro por um tiro de raspão no braço, mas foram socorridos pelo Samu.
[g1_quote author_name=”Carolina Grillo” author_description=”Pesquisadora e coordenadora do GENI/UFF” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A Policia Civil agiu como grupo de extermínio e não como órgão de segurança pública
[/g1_quote]Um morador relatou ter presenciado duas pessoas sendo mortas dentro da casa onde mora com a avó durante a perseguição policial. Falou ainda em invasão de residências. “O respeito nunca tem, isso é uma população, mas acho que eles pensam que estão no Iraque”, disse ao G1. “Havia dois helicópteros que davam tiros”, narrou à Ponte outro morador, que saía da casa de um familiar no início da invasão. “A gente recebeu denúncias de moradores de corpos caídos em cima das lajes, os policiais não deixando serem retirados”, acrescentou.
A Operação Exceptis foi organizada pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, com apoio do Departamento-Geral de Polícia Especializada, do Departamento-Geral de Polícia da Capital e da Core contra a atuação de traficantes que estariam aliciando crianças e adolescentes para integrar o Comando Vermelho, facção que domina o Jacarezinho. O plano seria prender autores de pequenos roubos nos trens da Supervia, que tem um dos ramais atravessando a favela. Ainda de madrugada, o policial civil André Leonardo de Mello Frias, da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais) foi baleado na cabeça e morreu logo após chegar ao Hospital Salgado Filho, no Méier, também na Zona Norte do Rio.
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Veja o que já enviamosA ação que resultou nas mais de duas dezenas de assassinatos seria, assim, uma resposta da Core à morte de um dos seus integrantes. Ainda segundo a Ponte, perto de 8h, o LabJaca (Laboratório de Dados e Narrativas na Favela do Jacarezinho) divulgou vídeo e relatos de moradores da comunidade mostrando a presença do “caveirão aéreo”, como os moradores chamam o helicóptero da polícia. “Estamos presos dentro de casa sufocando com a bomba de pimenta e não tem como sair”, denunciou um morador. Nas redes sociais, também havia relatos de pessoas sido atingidos por estilhaços.
O Voz das Comunidades, noticiário produzido por moradores de comunidades populares, informou que a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio e representantes da Defensoria Pública do Rio foram para o Jacarezinho, onde moradores realizaram intenso protesto contra o banho de sangue. Segundo a Polícia Civil, cerca de 200 agentes participam da operação.
[g1_quote author_name=”Jurema Werneck” author_description=”Diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É lamentável que tenhamos esse número absurdo de mortes, oriundas de uma operação policial e mais uma vez, tendo uma favela como o local escolhido para esse massacre. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro precisa garantir que essas atrocidades sejam investigadas de maneira célere, independente e eficaz
[/g1_quote]O Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (Geni), da UFF, atesta ter sido a ação mais letal da história da Polícia Civil fluminense, superando a chacina na Vila Operária, em Duque de Caxias (janeiro de 1998), que terminou com 23 mortos. “O episódio nos leva a lamentar que a Polícia Civil tenha agido como um grupo de extermínio e não como órgão de segurança pública”, afirmou a pesquisadora Carolina Grillo, coordenadora do Geni. Os estudiosos listaram 23 operações de agentes de segurança com 10 ou mais mortos na Região Metropolitana do Rio, desde 1989. “Realizaram uma operação absolutamente desastrosa, supostamente motivada pela repressão a roubos e furtos praticados por menores de idade nas estações e trens da Supervia. Os danos causados pela operação são infinitamente mais graves do que os crimes que ela pretendia combater”, constata o grupo de estudos.
ONG de monitoramento da segurança pública na cidade, o Instituto Igarapé divulgou nota veemente sobre a chacina. “É inaceitável que a política de segurança pública do estado continue apostando na letalidade como principal estratégia, sobretudo em áreas vulneráveis. Privilegiar o confronto indiscriminado coloca nossa sociedade e nossos agentes públicos em perigo”, atesta o documento. “De acordo com dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), a polícia do Rio foi responsável pela morte de 453 pessoas entre janeiro e março deste ano. O número já representava 36% do total registrado em 2020, quando foram registradas 1.245 vítimas”.
O instituto lembra o contexto da pandemia e o desrespeito à decisão do STF. “O episódio no Jacarezinho ocorre em meio à maior tragédia sanitária que já vivemos, com 400 mil mortes registradas. A decisão (do Supremo) vem sendo desrespeitada de maneira sistemática. A decisão foi tomada no âmbito da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 635, conhecida como “ADPF das Favelas”.
“É lamentável que tenhamos esse número absurdo de mortes, oriundas de uma operação policial e mais uma vez, tendo uma favela como o local escolhido para esse massacre. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro precisa garantir que essas atrocidades sejam investigadas de maneira célere, independente e eficaz, seguindo os parâmetros internacionais para que aqueles agentes do estado que cometeram ou participaram desse extermínio sejam responsabilizados e julgados por esses crimes”, prega Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil. “É inadmissível que violações de direitos humanos, como as ocorridas hoje, no Jacarezinho, sejam recorrentemente promovidas por agentes do Estado contra a população moradora de favelas que é, em sua maioria negra e pobre”, acrescentou
Pesquisa do Geni/UFF afere que, de 2007 a 2020, quase 85% de todas as operações obtiveram resultados pouco eficientes, ineficientes ou desastrosas. Apenas 1,7% podem ser consideradas eficientes no período. Boa parte das operações não resultaram de procedimentos judiciais, mas da “discricionaridade policial, e tiveram como resultado, antes mortos e feridos, do que prisões e apreensões”. Como as operações policiais são o principal instrumento da ação pública na área de segurança no Rio, além de serem as principais circunstâncias e situações da letalidade policial, os resultados flagram o uso abusivo da força pelas autoridades políticas e policiais.
“A decisão do STF de restringir as operações policiais salvo em casos ‘absolutamente excepcionais’ reduziu a frequência de operações (- 59%) ao menor patamar em 14 anos na Região Metropolitana. O impacto mais importante da restrição das operações policiais foi cessar uma escalada ininterrupta da violência policial desde 2014, pois 2020 terminou como o ano de maior redução na letalidade policial dos últimos 15 anos (34%). Pelos cálculos do Geni/UFF, até agora foram salvas 288 vidas”, calcula o levantamento. “Importante dizer que isto ocorreu sem que fosse percebido aumento da criminalidade: nesse mesmo ano houve redução tanto os crimes contra vida (- 24%), como dos crimes contra o patrimônio (- 39%). É muito importante destacar isso, porque prova que o respeito aos direitos humanos, a dignidade da vida humana e o enfrentamento da letalidade policial não se opõem ao controle do crime, muito pelo contrário.”
*Matéria atualizada às 18h48 de 08/05 por causa da mudança no número de mortos
Texto produzido pelos jornalistas da redação do #Colabora, um portal de notícias independente que aposta numa visão de sustentabilidade muito além do meio ambiente.