Já vai tarde, Ricardo Salles

Ricardo Salles, que está deixando o ministério, discursa ao lado de Bolsonaro durante uma manifestação de agricultores contra o Supremo Tribunal Federal, pedindo o fim das restrições contra a covid-19. Foto Evaristo Sá/AFP. Maio/2021

Dez razões para comemorar a queda do pior ministro do Meio Ambiente da história do Brasil

Por Agostinho Vieira | ODS 16 • Publicada em 23 de junho de 2021 - 20:22 • Atualizada em 28 de junho de 2021 - 09:43

Ricardo Salles, que está deixando o ministério, discursa ao lado de Bolsonaro durante uma manifestação de agricultores contra o Supremo Tribunal Federal, pedindo o fim das restrições contra a covid-19. Foto Evaristo Sá/AFP. Maio/2021

Ricardo Salles aproveitou o momento de tranquilidade, em que a imprensa só fala do escândalo da Covaxin, e pediu o boné. Ele não é mais o ministro do Meio Ambiente. Na verdade, para ser honesto, Ricardo de Aquino Salles nunca deixou de ser um advogado e, como tal, defendia os interesses do seu mais importante cliente: o Brasil? a biodiversidade? as florestas? o interesse público? Não, Jair Bolsonaro. O presidente que cunhou frases emblemáticas como “o Brasil é uma virgem que todo tarado quer”, “a questão ambiental só é importante para os veganos” e “competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou os seus índios”. Foi desempenhando esse papel sujo que Salles resumiu, em uma reunião ministerial, em abril de 2020, a sua estratégia para a pasta: “É preciso ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento (ambiental), e simplificando normas”.

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Sallles deixa o cargo semanas após a abertura de duas investigações contra ele, uma por ligações com um caso de tráfico ilegal de madeira e outra por supostamente obstruir as investigações em um caso de desmatamento. Sua renúncia coincide também com novos recordes de desmatamento e extração ilegal de madeira da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo.  Ele é acusado de modificar regras com o objetivo de regularizar cargas apreendidas no exterior. As suspeitas da Polícia Federal incluem crimes de corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando, envolvendo agentes públicos e empresários do setor madeireiro. Acha pouco? O #Colabora fez uma lista com dez ações, falas ou pistas que ilustram bem a tragédia ambiental em que estamos envolvidos desde janeiro de 2019.

É preciso ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento (ambiental), e simplificando normas

1 – Esvaziamento do Ibama e do ICMBio – Em maio de 2020, em meio à “tranquilidade” da maior pandemia dos últimos cem anos, o governo Bolsonaro publicou uma série de portarias que alteraram a gestão das unidades de conservação brasileiras. As mudanças enxugaram as chefias de parques, reservas, estações ecológicas, APAs, e as aglutinaram em comandos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O próprio instituto estimou gastar R$ 8.887.191,80 em ajuda de custo para os funcionários que deixaram suas antigas sedes e assumiram funções nos novos núcleos integrados. Em abril de 2019, numa feira do agronegócio em Ribeirão Preto, Bolsonaro já anunciava que ia fazer um “limpa no Ibama e no ICMBio”. As ações do presidente para esvaziar a fiscalização ambiental no país provocaram um encontro inédito de sete ex-ministros do Meio Ambiente. “Nós temos nossas diferenças políticas e ideológicas, mas nenhum de nós ousou desmontar o ICMBio, o Ibama, propor a extinção de parques ou de terras indígenas já demarcadas e homologadas, ou até mesmo de voltar atrás nos avanços das gestões anteriores. Sempre reconhecemos os avanços das gestões anteriores e fomos adiante”, disse Sarney Filho em coletiva de imprensa após a reunião. Foi do presidente também a decisão de afastar o fiscal do Ibama José Augusto Morelli. Foi ele que flagrou o então deputado federal Jair Bolsonaro em um barco com varas de pescar e recipientes para peixes em uma área onde a pesca era proibida: a Estação Ecológica de Tamoios. Por mais de uma vez, Salles propôs, sem sucesso, a fusão entre o Ibama e o ICMBio.

2 – Destruição da Mata Atlântica – Em abril de 2020, Ricardo Salles recomendou, em despacho, aos órgãos ambientais (Ibama, ICMBio e Instituto de Pesquisas Jardim Botânico) que desconsiderassem a Lei da Mata Atlântica (nº 11.428/2006) e aplicassem regras mais brandas constantes do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) para áreas ditas consolidadas nas regiões de domínio da Mata Atlântica. No mesmo mês, o então ministro do Meio Ambiente enviou minuta de decreto à Casa Civil propondo a exclusão de alguns tipos de formações vegetais da regulamentação da Lei da Mata Atlântica e, também, dispensando a autorização prévia do Ibama para desmatamentos de áreas maiores do que o limite atual por órgãos ambientais. “É uma operação casada contra a Mata Atlântica e o meio ambiente”, denunciou o diretor de Política Públicas da Fundação SOS Mata Atlântica, Mário Mantovani.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tenta explicar o aumento dos desmatamentos na Amazônia na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento da Câmara dos Deputados. Foto Mateus Bonomi/AGIF/AFP
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tenta explicar o aumento dos desmatamentos na Amazônia na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento da Câmara dos Deputados: retrocesso na meta nacional para o Acordo de Paris (Foto Mateus Bonomi/AGIF/AFP – 09/10/2019)

3 – A indústria das multas e as Unidades de Conservação – Assim que assumiu, o ministro Ricardo Salles anunciou a revisão de todas as Unidades de Conservação do país, desde o tradicional Parque Nacional de Itatiaia, que tem quase cem anos, até o Parque do Boqueirão da Onça, criado na Bahia em 2018. Ao todo são 334. Segundo o ministro, as unidades haviam sido feitas “sem critério técnico” e deveriam ter os traçados revistos ou mesmo serem extintas. Já a cruzada contra a tal “indústria das multas” sempre foi uma obsessão de Bolsonaro. Nessa batalha, vale até inventar números, como os R$ 15 bilhões anuais em multas que seriam aplicadas pelo Ibama e ICMBio. Os dados, fictícios, são 4 ou 5 vezes maiores do que a realidade: “Não vou mais admitir o Ibama sair multando a torto e a direito por aí, bem como o ICMbio. Essa festa vai acabar”, afirmou o presidente. Entre 2019 e 2020, houve uma redução de 43,5% na média anual de autos de infração contra a flora lavrados na Amazônia Legal em relação ao período de 2012 a 2018. Estudo da UFMG mostrou que, neste intervalo, foram lavrados, em média, 4.620 autos anuais. Já nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, foram apenas 2.610 autuações, apesar de aumento nas taxas de desmatamento em 2019 (10,1 mil km2) e 2020 (10,9 mil km2), a maior já registrada em 12 anos. Em diferentes situações, a fiscalização foi desautorizada pelo governo. A ponto de o ministro Ricardo Salles criticar publicamente os fiscais que destruíram equipamentos usados por criminosos para retirar madeira ilegal de uma Unidade de Conservação no Pará. Vale lembrar que o procedimento está previsto em lei.

Não vou mais admitir o Ibama sair multando a torto e a direito por aí, bem como o ICMbio. Essa festa vai acabar

4 – Desmoralização das lutas indígenas – Essa é outra batalha antiga do presidente.  Bolsonaro garantiu que, sob a sua liderança, não haveria nem mais um centímetro de terra indígena demarcada.  Mas, antes, ele já havia ido bem mais longe: “Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios”, afirmou Bolsonaro, em pronunciamento na Câmara dos Deputados, em 1998. Em uma reunião com os governadores da Amazônia, que deveria tratar de soluções para as queimadas, o presidente atacou as reservas indígenas: “Muitas reservas têm o aspecto estratégico. Alguém programou isso. O índio não faz lobby, não fala a nossa língua e consegue hoje em dia ter 14% do território nacional. Uma das intenções é nos inviabilizar”, afirmou. Aliás, na mesma reunião do dia 22 de abril, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse que odiava o termo “povos indígenas”.

5 – Recusa em sediar a COP 25 – A crise climática planetária, definitivamente, não faz e nunca fez parte das prioridades do governo. Mesmo que os impactos sobre o Brasil sejam graves, como preveem 9 em cada 10 cientistas. O Governo cortou 95% das verbas destinadas aos órgãos que acompanhavam o tema, e abriu mão de sediar a COP-25, maior encontro climático do mundo, que acabou sendo transferido para o Chile e depois para a Espanha. O então ministro do Meio Ambiente também chegou a anunciar o cancelamento da Semana do Clima da América Latina e Caribe (Climate Week), em Salvador. O argumento? Seria apenas uma “oportunidade” para se “fazer turismo em Salvador” e “comer acarajé”.  O prefeito de Salvador, ACM Netto (DEM), não gostou da interferência e bancou a realização do evento.

Os depoimentos, os documentos e os dados coligidos sinalizam, em tese, para a existência de grave esquema de facilitação ao contrabando de produtos florestais, o qual teria o envolvimento de autoridade com prerrogativa de foro nessa Suprema Corte, no caso, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo de Aquino Salles; além de servidores públicos e de pessoas jurídicas

6 – Aliança com a ala mais atrasada do Agronegócio – O discurso do governo sobre o Meio Ambiente é simplista e equivocado. Quem diz isso não é um ambientalista radical, mas dois ilustres representantes do agronegócio: Katia Abreu e Blairo Maggi. Ambos temem que a retórica do presidente faça o Brasil perder mercado: “Não tem essa de que o mundo precisa do Brasil. Somos apenas um “player” e, pior: substituível. O mundo depende de nós agora, mas, daqui a pouco isso se inverte e ficamos chupando o dedo”, disse Maggi, em entrevista ao Valor. “Os agricultores que estão alegres hoje vão chorar amanhã”, completou Katia Abreu, ex-presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Para ela, a retórica “antiambiental” de Bolsonaro, na verdade, é “antimercado” e representa o atraso.

7 – Críticas ao trabalho do INPE – “Com toda a devastação de que vocês nos acusam de estar fazendo e ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido”, disse Bolsonaro em julho de 2019, durante um café da manhã com jornalistas estrangeiros. Repetindo a velha prática de culpar o termômetro pela febre do paciente. As críticas do presidente provocaram a queda do diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Ricardo Galvão. Um mês depois, dados de satélite coletados pelo INPE, órgão respeitado internacionalmente, confirmaram o crescimento das queimadas na região de Novo Progresso e Altamira, no Pará, onde produtores rurais organizaram o “Dia do Fogo”. Nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2020 foram emitidos alertas para 796,08 km² da Amazônia, aumento de 51,45% em relação ao mesmo período de 2019, quando houve alerta para 525,63 km².

8 – Bombardeio ao Fundo Amazônia – Constrangimento, foi o que Ricardo Salles provocou ao convocar uma entrevista coletiva para criticar o modelo de gestão do Fundo Amazônia, que existe há mais de 10 anos, já beneficiou milhares de pessoas e é fundamental para a preservação da Amazônia. O Fundo é gerenciado pelo BNDES e cerca de 95% dos seus recursos, que somam mais de R$ 3 bilhões, vêm da Noruega e da Alemanha. Os dois países não concordaram com as mudanças propostas pelo governo, disseram que o Brasil não vinha se esforçando para conter a subida do desmatamento, o crescimento das queimadas e decidiram interromper o fornecimento de recursos. Bolsonaro tem repetido que o governo está sem dinheiro e que os ministros fazem milagres, no entanto, recusou a ajuda dos países do G7 e fez tudo para inviabilizar o Fundo Amazônia.

9 – Acusações sem provas contra as ONGs – Ao ser questionado sobre o crescimento das queimadas na Amazônia, o presidente Jair Bolsonaro respondeu: “O crime existe e nós temos que fazer o possível para que não aumente, mas nós tiramos dinheiro de ONGs, repasses de fora, 40% ia para ONGs, não tem mais. De modo que esse pessoal está sentindo a falta de dinheiro. Pode estar havendo, não estou afirmando, a ação criminosa desses ‘ongueiros’ para chamar a atenção contra minha pessoa contra o governo do Brasil”. Prova? Nenhuma.

10 – Contrabando de madeira – Em maio deste ano, Salles e o presidente do Ibama, Eduardo Bim, foram alvos de uma operação que investigava a exportação ilegal de madeira para Estados Unidos e Europa. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a quebra dos sigilos bancário e fiscal de Salles e o afastamento preventivo de Bim do comando do Ibama e o de outros nove agentes públicos que ocupavam cargos e funções de confiança nos órgãos. “Os depoimentos, os documentos e os dados coligidos sinalizam, em tese, para a existência de grave esquema de facilitação ao contrabando de produtos florestais, o qual teria o envolvimento de autoridade com prerrogativa de foro nessa Suprema Corte, no caso, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo de Aquino Salles; além de servidores públicos e de pessoas jurídicas”, afirmou Moraes em sua decisão.

Na reunião ministerial de abril, Ricardo Salles ressaltou ainda que as mudanças pretendidas não precisavam ser editadas em formato de projeto de lei, evitando, assim, que passassem pelo Poder Legislativo: “Não precisamos de Congresso, porque coisa que precisa de Congresso também, nesse fuzuê que está aí, nós não vamos conseguir aprovar. Agora, tem um monte de coisa que é só parecer e caneta”. Sem dúvida, o pior ministro do Meio Ambiente da história do Brasil. Em seu lugar, entra Joaquim Pereira Leite, secretário da Amazônia e Serviços Ambientais. Leite é próximo a Salles e, tudo indica, deve manter a boiada passando. Não custa lembrar, no entanto, que o comandante da destruição ambiental no país segue no comando. E coerente com suas convicções. Nos primeiros dias do governo, o recém-eleito Jair Bolsonaro já prometia acabar com a pasta do Meio Ambiente. Não acabou, mas tem se esforçado bastante.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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