ODS 1
Indígena não fala só Tupi
Só no Pará, são 34 línguas ancestrais. Ao decretar 2022 como o primeiro ano da Década das Línguas Indígenas, a Unesco quer tirar da invisibilidade uma enorme diversidade linguística
Só no Pará, são 34 línguas ancestrais. Ao decretar 2022 como o primeiro ano da Década das Línguas Indígenas, a Unesco quer tirar da invisibilidade uma enorme diversidade linguística
O Brasil é um país de muitas línguas. O Pará, por exemplo, é o coração Tupi da América do Sul. Das 34 línguas indígenas faladas no estado, 18 delas são do tronco Tupi. É um mosaico linguístico tão rico e plural, que derruba por terra o mito do monolinguismo no Brasil. Ainda que o português seja a língua hegemônica, em solo brasileiro se fala cerca de 180 línguas indígenas, das quais muitas delas correm o risco de extinção. O Censo do IBGE, de 2010, por exemplo, constatou que 75% das línguas são faladas por povos indígenas de até 100 pessoas. Em Roraima, existem três a quatro línguas que são faladas por apenas quatro pessoas, ou seja, são línguas de alto risco de extinção. Ao decretar 2022 como o primeiro ano da Década Internacional das Línguas Indígenas, a Unesco dá um passo importante para tirar da invisibilidade essa enorme diversidade linguística e valorizar um patrimônio linguístico cultural mundial.
O Brasil está entre os dez países mais multilíngues do mundo. Só que, ao mesmo tempo, é um dos países que tem a maior população monolíngue do planeta, chama a atenção o antropólogo Marcus Vinícius Garcia, da Divisão Técnica de Diversidade Linguística do Departamento do Patrimônio Imaterial, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Por considerar que a diversidade linguística encontra-se ameaçada no país, a Década das Línguas Indígenas, defende, será fundamental para o Brasil: “Os indígenas e as línguas indígenas vivem um drama histórico, porque a sociedade brasileira dificultou a cidadania cultural desses povos originários”, afirma Garcia.
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“A língua é um processo político”, defende a professora Ivânia dos Santos Neves, que, à frente do Grupo de Estudos Mediações, Discurso e Sociedades Amazônicas (Gedai), da Universidade do Pará, coordenou a pesquisa “Retratos do contemporâneo: as línguas indígenas na Amazônia paraense”.
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Veja o que já enviamosO projeto gerou o documentário “Entre rios e palavras: as línguas indígenas no Pará em 2021” e um mapa interativo, disponível no site do Gedai e onde cada língua indígena tem seu verbete. O levantamento ainda comprovou a existência de 13 povos isolados no Pará, o que dificulta saber se esses indígenas falam algumas das línguas já catalogadas. Caso não falem, isso significa que o número de falantes de línguas indígenas no estado pode ser ainda maior.
Sobreviventes de todo tipo de violência, os povos indígenas resistiram e, mais que isso, chegaram ao século 21. Preservar a língua é também uma forma de defender seus territórios, alvo de constantes ameaças. A perda de floresta entre 2019 e 2021 ultrapassou os 10 mil km² ao ano, número 56,6% maior que a média anual do período anterior. O desmatamento ocorreu, em especial, sobre as terras indígenas e Unidades de Conservação tendo chegado a representar 51%, segundo estudo do Projeto Amazônia 2030, uma iniciativa do Imazon, Centro de Empreendedorismo da Amazônia, PUC-RJ e Climate Policy Initiative. Os indígenas não terão vida fácil em 2022. Na agenda do Congresso, há um conjunto de projetos de lei anti-indígena: o PL 490/2007, que busca inviabilizar demarcações de terras indígenas, e o PL 191/2020, que libera as terras indígenas para a mineração e grandes empreendimentos.
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“Temos visto o avanço de atividades ilegais sobre as terras indígenas, como o desmatamento e a mineração, e essas atividades são uma ameaça para as línguas indígenas. Os garimpeiros e os madeireiros chegam falando português, e o pior, de má qualidade, e vão aliciando os jovens, muitas vezes em troca de um celular. É como se as ilegalidades que ocorrem na Amazônia e nas terras indígenas fossem um meio de enfraquecer as línguas indígenas”, analisa a antropóloga Ana Maria Machado. Fluente em Yanomami, ela foi uma das organizadoras do livro “Políticas para as Línguas Yanomami”, primeiro livro registrado na Biblioteca Nacional em cinco línguas ou variedades da família Yanomami: yanomami, yanomam, sanöma e dois dialetos de ninam.
No Pará, o multilinguismo e o multiculturalismo são características intrínsecas ao estado. Nas aldeias, se ouve de tudo um pouco: Apiaká, Araweté, Guajajara, Munduruku, Xipaia, Mbyá-Guarani, Karajá … O povo Yanomami, por exemplo, um dos mais diversificados agrupamentos linguísticos nativos da América do Sul, tem seis línguas, que, por sua vez, agrupam um conjunto de pelo menos 16 dialetos falados no território nacional, segundo Ana Maria Antunes, que organizou o livro “As Línguas Yanomami no Brasil: diversidade e vitalidade“. Os falantes da língua yanomami somam 28 mil pessoas.
Para os indígenas, o idioma materno é um instrumento de autoafirmação da identidade e da cultura. O líder Raoni Metuktire, por exemplo, só fala na sua língua original quando está em eventos públicos, seja no Brasil ou no exterior. Preservar a língua indígena significa manter vivos a medicina e os conhecimentos tradicionais desses povos.
“Essas línguas pluralizam o contemporâneo”, afirma Ivânia. Aos exemplos: nas redes sociais, os Mebêngôkre tiveram 1,4 milhão de visualizações cantando Forró Caiapó. Os Mundurukus e os Waiwai, por sua vez, estão brigando na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) pela produção de conteúdo acadêmico nas suas línguas originárias. Com cerca de 600 universitários, a Ufopa abriga o maior número de alunos indígenas do estado.
“A língua nunca foi e nunca será apenas uma estrutura linguística com sujeito e predicado”, reafirma Ivânia. É fato. Se nas primeiras décadas da ocupação portuguesa o Tupi antigo era falado entre os indígenas, europeus e as primeiras gerações de brasileiros mestiços, aos poucos a língua indígena foi sendo boicotada, até perder força.
Em meados do século 18, a primeira proibição. O então primeiro-ministro Marquês de Pombal decretou o português como língua oficial. O Tupi foi banido. Quem desobedecesse era castigado e até morrer. A perseguição seguiu seu curso pelos séculos seguintes. Durante a Segunda Guerra Mundial, mais uma canetada contra as línguas indígenas assinada, à época, pelo então presidente Getúlio Vargas. No governo militar, novo impedimento: nada de transmissão radiofônica em línguas indígenas. Foi só em 1988 que a Constituição reconheceu os direitos linguísticos dos povos indígenas, incluindo a possibilidade de uma educação diferenciada, em suas próprias línguas.
“Desconhecer os falantes e ignorá-los alimenta o processo histórico de apagamento dessas línguas”, concluiu Ivânia, explicando, porque na pesquisa, questionou a ideia de que o país é monoglota e que os indígenas perderam sua língua: “Não se perde uma língua, como se perde uma chave”.
Para Ivânia, o silenciamento dos povos indígenas levou a um apagão estatístico. “Hoje no Brasil e no continente americano de uma forma geral há um movimento intenso entre diferentes povos indígenas voltado à valorização e à revitalização de suas línguas. Não se trata de querer inscrever estas línguas em práticas culturais do passado, ignorando o fluxo da história, mas sim de retomar outras formas de vida, de fortalecer identidades e de visibilizar a pluralidade do contemporâneo”.
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Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.