Excluídos pelo idioma, imigrantes detidos nos EUA têm socorro de tradutores voluntários

Manifestante protesta contra política de imigração, em centro de detenção em Portland (Foto: Nathan Howard/Getty Images/AFP)

ONG Respond Crisis Translation ameniza burocracia e exigências de documentos em inglês do governo norte-americano que dificultam entrada de estrangeiros pela fronteira com o México

Por Yula Rocha | ODS 16 • Publicada em 20 de outubro de 2020 - 10:15 • Atualizada em 24 de outubro de 2020 - 10:16

Manifestante protesta contra política de imigração, em centro de detenção em Portland (Foto: Nathan Howard/Getty Images/AFP)

O polêmico muro, símbolo da política linha-dura imigratória de Donald Trump,  não foi impedimento para o brasileiro A*, de 46 anos, atravessar a fronteira do México com os Estados Unidos em novembro de 2019. Ele passou por uma das muitas brechas ainda abertas na Califórnia, mas, ao se entregar aos agentes migratórios sem falar uma só palavra em inglês ou espanhol, deparou com outro grandioso muro invisível: a barreira do idioma.

Os muros de palavras já foram erguidos há tempos, portanto falar em muro do Trump é redundante, já existe uma profunda injustiça linguística

A maioria dos estrangeiros sob a custódia das autoridades americanas vive esse segundo isolamento dentro dos centros de detenção. Essas pessoas acabam se perdendo ao navegar pelo hostil e burocrático sistema de leis imigratórias. As cortes exigem que todos os documentos e depoimentos sejam traduzidos por profissionais certificados em inglês, mas a falta de acesso e conhecimento desse serviço é apontada como uma dos principais motivos para vistos humanitários negados. 

 

“A idéia de exigir essa documentação para tornar o processo quase impossível aos imigrantes não é de hoje. Os muros de palavras já foram erguidos há tempos, portanto falar em muro do Trump é redundante, já existe uma profunda injustiça linguística”, diz Ariel Koren, poliglota fluente em 9 línguas e fundadora da ONG Respond Crisis Translation que atua principalmente na fronteira sul dos Estados Unidos, oferecendo aos imigrantes serviço de tradução de graça em 55 línguas, entre elas dialetos indígenas da América Central: K’ich’e, Mam, Tzeltal, Tzutujil. Diferentemente da imagem dos imigrantes normalmente associada aos hispanos, mais de um terço dos que atravessam a fronteira não falam espanhol. Entre as línguas mais comuns estão o creole, árabe, punjabi, russo, farsi, filipino, entre outras.

Brasileiro ficou detido até ser amparado pela ONG Respond Crisis Translation (Foto: divulgação)

A* , como muitos imigrantes que buscam asilo nos Estados Unidos,  acredita que deveria estar protegido pelas leis internacionais das Nações Unidas que garantem refúgio a quem sofre perseguição por motivos políticos, de raça, nacionalidade, religião e corre risco ao regressar ao país de origem. Ele terá que entrar na cota máxima de refugiados admitidos por ano, que caiu de 110 mil para 15 mil desde que Trump assumiu a Casa Branca.

Mineiro de Governador Valadares, A* fugiu do Brasil após denunciar milicianos à polícia, que segundo ele assassinaram seu filho envolvido com tráfico. A ameaça de morte foi feita ainda dentro do cemitério, no dia do enterro do rapaz. Traumatizado juntou a pouca reserva que tinha em busca de um porto seguro que terminou na própria prisão nos Estados Unidos.

É preciso traduzir os vazios na comunicação, muito comuns em situação de profundo trauma

Nos seis meses em que ficou detido na Califórnia, o pedreiro não sabia onde estava, quanto tempo ficaria preso e mais grave, desconhecia seus direitos por não entender a língua. Sem intérprete, ele teve dois pedidos de liberdade condicional negados. Ganhou na terceira e última tentativa, quando seu caso chegou à Respond Crisis Translation depois que sua situação de saúde se agravou e ele foi enviado ao isolamento forçado por causa da covid-19, que contaminou milhares de imigrantes presos. Com a pandemia a ONG lançou uma ação emergencial para traduzir em diversas línguas material informativo de saúde, enviar intérprete para pacientes internados em hospitais, disponibilizar acesso à educação remota e apoio em diversas línguas às vítimas de violência doméstica e à população LGBTI+. 

Em apenas um ano de atuação, a Respond, em parceria com 85 ONGs de direitos humanos e advogados pro-bono de imigração, fez traduções para 1.500 clientes. A rede de ativistas da língua é formada por mais de 1.400 jovens voluntários, linguistas certificados, dispostos a traduzir pilhas de documentos e evidências. A brasileira Samara Zuza, de 31 anos, foi destacada para o caso de A* e a “mineiridade” a aproximou do pedreiro que, em maio, finalmente teve a liberdade condicional concedida e sem pagamento de fiança, o que é raríssimo.

O trabalho do intérprete humanitário vai além do conhecimento da língua, da tradução de palavra por palavra. Deve-se levar em conta o contexto cultural e histórico do país de origem daquele imigrante para educar o juiz que tem o poder de negar ou conceder o visto. “E principalmente fazer uso da sensibilidade e da afeição para que se estabeleça a relação de confiança com o imigrante. É preciso traduzir os vazios na comunicação, muito comuns em situação de profundo trauma”, diz Samara.

O Departamento de Justiça oferece o serviço de tradução e intérprete apenas para as audiências na corte através de uma agência terceirizada, parte da lucrativa indústria imigratória que inclui contratos bilionários com empresas que administram os centros de detenção e ganham por imigrante preso. Mas muitos dos tradutores do governo não têm informação prévia do caso e não conhecem o cliente, gerando margem a erro de interpretação, o que, para ativistas, é um desserviço. 

A* está entre os cerca de 18 mil brasileiros presos pelas autoridades da fronteira em 2019. Eles entraram no país em janeiro do ano passado, antes da extensão do programa Fique no México. O chamado Protocolo de Proteção ao Imigrante (MPP na sigla em inglês), que teve aval do presidente Jair Bolsonaro, permite que os brasileiros sejam detidos e imediatamente enviados de volta ao México onde aguardam por meses uma data para a audiência nos Estados Unidos e enfrentam novamente a barreira da língua, desta vez o espanhol.

Ariel, uma das fundadoras da ONG, e Sandra, que agora é uma das voluntárias (Foto: divulgação)

O esforço de Trump para deter a onda imigratória conseguiu reduzir a travessia em até 75% e ganhou apoio dos nacionalistas mais conservadores. O histórico de ações xenofóbicas e contra os direitos humanos do republicano inclui a separação de crianças de suas famílias, a proibição da entrada nos Estados Unidos de estrangeiros de sete países predominantemente muçulmanos, a suspensão temporária do programa de refugiados e a revisão dos critérios para visto de trabalho.

O alento aos imigrantes pode vir em menos de um mês com as eleições americanas, se o adversário de Trump, Joe Biden virar o jogo. O democrata promete reverter parte dessa política considerada por ele “desumana e cruel” e aprovar a reforma imigratória que tramita há décadas no congresso americano e concederia anistia a 11 milhões de imigrantes que vivem nos Estados Unidos sem documentação. O vice-presidente da gestão Barack Obama, que carrega nas costas o peso do governo que mais deportou imigrantes na história, agora apela ao voto latino pra vencer em novembro.

Os hispanos são maioria entre os imigrantes nos Estados Unidos, mas entre as diversas línguas dos recém-chegados, a maior demanda tem sido por dialetos indígenas da América Central, puxada pelos 250 mil que chegam por ano da Guatemala. É o caso de S* de 25 anos, que fala kaqchikel e foi atendida pela Respond.

Sobrevivente de violência doméstica, ela fugiu do agressor a pé da Guatemala até o Texas, nos Estados Unidos, onde foi presa. “Lá imigrante não é tratado como um ser humano”, ela diz. Depois de três meses de terror sem ver a luz do dia na chamada hielera ou geleira termo usado para descrever o frio dentro dos centros de detenção — S* não teve outra opção a não ser aceitar a deportação. De volta ao país de origem, e com apoio de uma ONG local, a guatemalteca se tornou uma tradutora ativista para a Respond. Está fazendo aulas de inglês e espanhol que aprendeu na prisão e quer usar  o Kaqchikel para ajudar outros imigrantes a atravessarem o muro da língua que, com ou sem Trump no poder, continuará de pé.

Yula Rocha

Jornalista, com mais de 20 anos de experiência como repórter na GloboNews, TV Globo e correspondente internacional pelo SBT em Nova York. Menção honrosa do prêmio Vladimir Herzog pela série de reportagens na base de Guantânamo. Com mestrado em jornalismo internacional, atualmente trabalha em Londres como coordenadora de comunicação da ONG de artes para justiça social People's Palace Projects e colabora regularmente para a revista Stanford Social Innovation Review.

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