Encenação do assassinato de congolês surpreende e emociona

Grito de dor promovido por amigos africanos mostra mais uma vez a estupidez e a banalidade da violência no Rio

Por Alexandre dos Santos | ODS 16 • Publicada em 21 de fevereiro de 2022 - 15:16 • Atualizada em 1 de dezembro de 2023 - 18:25

Amigos se reúnem em torno de um cartaz durante um protesto contra o assassinato do refugiado congolês de 24 anos Moïse Kabagambe (Foto: Nelson Almeida / AFP)

No meio de uma multidão que tomava uma das pistas da Avenida Lúcio Costa, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, um jovem negro com o rosto pintado de preto leva um golpe mata-leão de outro jovem negro, com o rosto pintado de branco, que o leva ao chão. Um terceiro jovem negro, com o rosto também pintado de preto, o golpeia na cabeça, no tórax e nas costas. É tudo uma encenação, mas os rostos das pessoas ao redor são provas do quanto a violência da cena é traumática. O impacto da morte do imigrante congolês Moïse Kabagambe, espancado na noite de 24 de janeiro de 2022 ao cobrar uma dívida trabalhista, varreu o país a partir do momento em que a notícia se espalhou pelas redes sociais e ganhou a mídia tradicional.

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Na semana seguinte ao crime, os responsáveis pela morte de Moïse foram identificados e presos preventivamente. Aleson Cristiano de Oliveira Fonseca, Brendon Alexander Luz da Silva e Fábio Pirineus da Silva devem responder por homicídio duplamente qualificado, porque Moïse não teve como se defender e por terem se utilizado de meios cruéis para assassiná-lo.

Tão cruel quanto a morte do jovem de 24 anos, foram as imagens do próprio espancamento, gravadas pela câmera de segurança do quiosque Tropicália, onde ele trabalhava. As imagens mostram pelo menos 15 minutos de agressões, socos e pontapés, além de golpes com pedaços de madeira e um taco de beisebol. Compartilhadas imediatamente nas redes sociais – em alguns perfis exibidas praticamente sem cortes ou efeitos de edição – despertou também uma série de questionamentos a respeito do limite entre a violência física e simbólica e a naturalização de absurdos como a morte por espancamento de um jovem que exigia o pagamento pelos dias trabalhados no quiosque.

Manifestantes derramaram sangue no chão durante um protesto contra a morte do imigrante congolês no Rio. Foto Evaristo Sá/AFP
Manifestantes derramaram sangue no chão durante um protesto contra a morte do imigrante congolês no Rio (Foto: Evaristo Sá / AFP)

A desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Andréa Pachá, chegou a fazer um apelo em suas redes sociais às pessoas que refletissem antes de compartilhar as imagens da violência contra Moïse, para que a naturalização da barbárie não nos desumanizasse. “Qual a necessidade de repetir à exaustão o vídeo do espancamento, senão para nos embrutecer ainda mais? Quero vídeos que cheguem aos responsáveis, que exibam a punição e que reduzam a dor. Justiça! É o que quer a mãe de Moïse. É o que todos queremos! Não compartilhe a selvageria!”, escreveu a desembargadora.

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Rosane Borges, jornalista e doutora em Ciências da Comunicação (USP), também fala desse processo de curiosidade e naturalização da violência, principalmente contra os corpos negros, principais vítimas de homicídio no Brasil. “O que vemos há tempos é um processo lento e gradual de naturalização do absurdo. Uma espécie de pornografia da violência, onde se tem até um certo prazer velado. Em muitos casos não é proposital, mas quando essas imagens de violência vão se tornado cada vez mais comuns e sempre tendo os corpos negros como alvos, deixamos de questionar a barbárie, deixamos de nos indignar com ela para fazer parte dela”.

Uma das reações mais surpreendentes – tanto à morte de Moïse quanto às imagens do espancamento dele – foi a encenação da própria morte do jovem congolês realizada pelos amigos mais próximos. Ela aconteceu de maneira espontânea durante as manifestações que aconteceram em todo o país cobrando justiça, duas semanas depois do assassinato de Moïse.

No sábado, 5 de fevereiro de 2022, a comunidade congolesa saiu cedo de Barros Filho, bairro da Zona Norte do Rio, para vencer os 34 km que a separava da Barra da Tijuca, Zona Oeste da cidade, e participar dos protestos em frente ao quiosque Tropicália, onde Moïse trabalhava e foi morto.

“A gente já estava pensando em mostrar o nosso próprio grito de dor. Um grito de dor pelo meu amigo, pela maneira cruel que ele foi morto, pelo fato de ele ter ido embora tão jovem”, comenta Dieudonne Tsheke, mais conhecido pelo apelido de Scram Modiam, de 37 anos e há oito no Brasil.

Scram lembra que, para os mais de 200 grupos étnicos diferentes que formam o que chamamos de “povo congolês”, a morte de alguém tão jovem é motivo de profundo lamento: “Para nossas culturas, um velho que se vai é uma festa por causa da missão que ele cumpriu e da sabedoria que ele acumulou. Mas um jovem, esse a gente chora mesmo porque a missão dele não se cumpriu. Eu e outros amigos ficamos muitas noites sem dormir direito pensando como fazer para mostrar que isso não é certo.”

Quando chegaram em frente ao quiosque Tropicália naquela manhã de sábado, a comunidade congolesa do Rio de Janeiro cantava “Mulunge! Tokolongola!” (algo como: “A chapa esquentou! Tirem a camisa!” em tradução livre do lingala, uma das línguas francas da República Democrática do Congo). Depois que se juntaram aos demais manifestantes, gritaram em conjunto “Tropicália, assassino (sic)!” e “Moïse, trabalhador!”

Porém, nas palavras do ator e cantor Fruit Baby (nome artístico), de 24 anos e há quatro no Brasil, só isso não bastava. “A gente ficou chocado com o que aconteceu, com as imagens daqueles homens machucando muito o nosso irmão. A gente não podia aceitar isso. Então resolveu ali, na hora, mostrar para todo mundo como foi cruel o que aconteceu com o Moïse.”

Usando a experiência das aulas de interpretação que teve na República Democrática do Congo, Fruit pintou o rosto com a tinta preta que levaram para pintar uma mensagem no asfalto em frente ao quiosque. Scram encenou Moïse. Fruit e Emmanuel Siril fizeram o papel de dois dos três algozes, amarrando as mãos de Scram para trás. Siril, “responsável” por encenar o mata-leão, foi o único a pintar o rosto de branco, enquanto Fruit “batia” em Scram com um pedaço de madeira encontrado no lixo ao lado de um dos quiosques.

“A gente quis mostrar que aquilo tudo era selvagem. Que aquilo tudo era desumano”, explica Scram Modiam. E continua: “A gente queria que todo mundo pensasse que nem a gente: ‘Como é que o brasileiro pode ser assim que nem esses caras que fizeram isso?’”

Fruit Baby completa: “A gente precisou encenar a morte do nosso amigo porque era a nossa responsabilidade de irmão fazer isso. A gente pintou a cara de preto porque a gente, que veio da África, é um preto ainda mais diferente do que os pretos do Brasil. Todo mundo preto sofre preconceito aqui, mas a gente sofre xenofobia também”. E acrescenta: “Eu pintei minha cara de preto para mostrar que teve gente negra que bateu no Moïse. Como é que pode fazer isso? E Siril ficou com a cara branca pra mostrar que é racismo, sim, bater no nosso amigo até ele morrer só porque ele é preto da África”.

Assim que viu as imagens, Rosane Borges, identificou na encenação da morte de Moïse Kabagambe um esforço de mostrar a dimensão dessa tragédia em particular para toda a comunidade de congoleses e imigrantes de outros países do continente africano no Rio de Janeiro: “O que eles fizeram foi retomar a narrativa. E isso é importantíssimo porque aquelas imagens horríveis do espancamento estão associadas aos que se desumanizaram, aos que promoveram essa barbárie, aos promotores da violência. A partir do momento em que eles tiram a narrativa das mãos dos assassinos, eles estão ritualizando e transcendendo a dor. Ao carregar nas tintas, literalmente falando, eles nos fazem entender, a partir de outra perspectiva, toda essa brutalidade. E mais: como é evidente na nossa sociedade que quem morre e é o alvo primordial da violência é o corpo negro”.

A doutora em Ciências Sociais (Uerj) Bárbara Copque testemunhou a apresentação dos jovens em frente ao quiosque Tropicália e se disse comovida ao enxergar naquela forma de expressão uma série de paralelos com a manifestação cultural do Nego Fugido, típico das comunidades quilombolas de Acupe, distrito de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano: “Fiquei muito mexida porque lá na região de Santo Amaro temos muitas comunidades de povos congo-angola. Há uma forte presença cultural e religiosas desses povos. E ver essa representação da dor com essas pessoas com o rosto pintado, me transportou direto para as encenações do Nego Fugido, que também são eventos traumáticos e de extrema violência transformados em representação, numa região cujos descendentes são de regiões de onde vieram os atuais imigrantes aqui para o Rio de Janeiro”.

A festividade do Nego Fugido surgiu em meados do século 19 e é uma espécie da amálgama entre teatro, festa e ritual que conta, em forma de folguedo, as histórias de tortura e morte dos escravizados de um antigo senhor de engenho, assim como o protagonismo de alguns escravizados em conseguir a própria liberdade.

“Quando Walter Benjamin diz que a humanidade se apropria dessas experiências traumáticas e as transformam em elementos de transcendência, é disso que ele está falando, não é? E que você pode ver tanto no Nego Fugido quanto na encenação da morte do Moïse. Eu vi ali um passado totalmente presente. E vi ali também uma tentativa desses rapazes e moças de superar o medo e o trauma que essa morte causou a todos eles”, comenta Bárbara.

Rosane Borges reforça essa linha de pensamento: “Didi-Huberman também nos lembra que ter a coragem de representar aquilo que parece o irrepresentável é usar a arte para tirar da barbárie o poder destrutivo e, no seu lugar, construir uma outra consciência  através da cultura. Foi o que esses rapazes e moças fizeram, mesmo sem ter feito de maneira proposital. Eles precisam se apropriar dessa tragédia e construir suas próprias narrativas em cima dela”.

“Eu sei que parece feio a gente matar nosso irmão de novo ali na rua, mas a gente fez isso pra ele, pra não esquecer o que fizeram com ele. Foi muita dor que ele sofreu no corpo dele…”, comenta Scram Modiam com a voz embargada.

Fruit Baby, também emocionado, complementa: “Eu sou artista. Então, tinha que usar a arte para extravasar de alguma forma. Representar era a forma certa. Porque eu estou no Brasil há quatro anos e ainda não tenho palavras, não tenho vocabulário suficiente. Não sei expressar o sentimento que isso tudo causou em mim… causou na gente”.

Nem nós, Fruit. Nem nós.

Alexandre dos Santos

Jornalista formado pela Uerj em 1996 e mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Trabalhou como repórter em jornal impresso e em TV. É professor de História da África no curso de Relações Internacionais da PUC-Rio. Carioca de muitas ascendências: camaronesa, angolana, portuguesa e espanhola. E-mail: alexandredossantos@me.com. Instagram: @alsantos72

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