Fortemente presente e cantado nas favelas do Brasil e com muitos artistas oriundos das comunidades faveladas do Rio de Janeiro, o trap (um ritmo norte-americano originado com batidas compassadas e com uso de autoafinadores) tem sido alvo de discriminações. Do ponto de vista histórico, ritmos favelados enfrentam discriminação desde o começo do século XX, quando o samba foi originado nos altos morros do Rio de Janeiro. Pouco tempo depois, já nos anos 60, foi a vez do funk passar pela criminalização. Os estilos musicais chegaram a ser perseguidos pela polícia e, durante a ditadura militar, sambistas pegos na rua eram tratados como “vagabundos”.
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Ao longo dos anos, o samba e o funk passaram a ser mais aceitos, mas sempre alvo de preconceitos. O pesquisador Danilo Cymrot – autor escritor do livro “O funk na batida: baile, rua e parlamento” – aponta que o funk e o trap funcionam como bodes expiatórios. “Existe uma série de problemas sociais, como a violência, o abuso de drogas, a gravidez na adolescência, que tem uma série de causas; causas múltiplas e complexas. E, no entanto, quando você seleciona uma causa principal ou única, no caso funk ou trap, você simplifica uma questão que é bastante complexa e vende a ilusão para o público de que algo está sendo feito”, afirma Cymrot, doutor em criminologia pela Faculdade de Direito da USP.
Funk, rap e trap são expressões da diáspora. São línguas do corpo negro que o sistema tenta apagar, mas não consegue
Hoje, o funk está presente em trends do TikTok, do Instagram e outras redes sociais, ganhando destaque até mesmo em premiações internacionais com destaque de artistas como Ludmill e Anitta. Por outro lado, a cultura favelada segue à mercê da marginalização e da criminalização. Artistas já foram indiciados e chegaram a ser presos. O DJ Rennan da Penha, líder de bailes que levam centenas de pessoas a comunidades faveladas na Zona Norte do Rio, chegou a ficar seis meses presos sob acusação de associação para o tráfico de drogas – e acabou absolvido. Em maio de 2025, o MC Poze do Rodo, também sucesso nas favelas do Rio, foi preso por apologia ao crime e associação para o tráfico de drogas; solto cinco dias depois, ele ainda está sob investigação policial. Os dois artistas reclamam de perseguição por parte da polícia. “O funk sofre constantes perseguições porque é capaz de produzir liberdade onde o sistema prevê o controle”, destaca o produtor musical Samuel da Silva Lima, doutor em Educação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Em julho, o rapper Oruam (Mauro Davi dos Santos Nepomuceno) – filho de Marcinho VP, líder do Comando Vermelho que cumpre pena por tráfico e homicídio – teve sua prisão preventiva decretada após ser acusado de tráfico de drogas, resistência, desacato, dano, ameaça, lesão corporal e tentativa de homicídio: de acordo com a denúncia, ele atirou pedras em policiais que entraram em sua casa para prender um acusado de envolvimento com facção criminosa. Foi o terceira prisão do cantor e compositor, sucesso nas plataformas de áudio, que responde, em outros processos, por uso de arma de fogo, apologia ao crime e favorecimento pessoal (por ajudar um foragido da Justiça). Suas detenções anteriores já havia motivado o surgimento de uma proposta legislativa, apelidada de Lei Anti-Oruam, que tramita na Câmara, e, em linhas gerais, proíbe o poder público de contratar artistas que tenham sido acusados de apologia ao crime.
Do ponto de vista do Direito, o criminologista Danilo Cymrot afirma que a Lei Anti-Oruam é uma espécie de censura prévia, o que é proibido pela Constituição. “Primeiro, quem é que define se uma letra faz ou não faz apologia ao crime? É o prefeito, é o vereador, é qualquer cidadão? Segundo, ainda que um artista possa ter uma outra música acusada de fazer apologia ao crime, você não pode presumir que ele vai cantar essa música no show dele ou que ele não tenha outras músicas que ele possa cantar para se adaptar ao público que está naquele local”, argumenta.
Quando o funk aparece na mídia, sempre associado a algum episódio de violência, você acaba de certa forma reforçando no imaginário social a impressão de que funk é algo violento
Para o pesquisador, o caso de Oruam e a proposta de legislação para proibir a contratação de artistas acusados de “apologia ao crime” são bastante simbólicos. “É mais um exemplo de instrumentalização, de um pânico moral em relação ao funk, para se obter visibilidade, principalmente nas redes sociais. O que a gente vê é uma parlamentar, no caso de direita, que propõe uma lei que é inócua e desnecessária, porque já existem leis que podem ser utilizadas para reprimir aquilo”, afirma Cymrot. O projeto de lei foi protocolado na Câmara pelo deputado Kim Kataguiri, inspirado em proposta semelhante apresentada na Câmara Municipal de São Paulo pela vereadora Amanda Vettorazzo.
O criminologista aponta que, além da repressão com base na legislação penal, com a imputação de apologia ao crime ou associação ao tráfico, o Estado faz uso do direito administrativo como ferramenta de penalização. “Para permitir que um baile aconteça de forma lícita, exige uma série de requisitos burocráticos que, na prática, acabam inviabilizando a existência dos bailes. Exige, por exemplo, a existência de câmeras de vigilância, detectores de metais, ambulâncias, isolamento acústico, autorização do batalhão de Polícia Militar e da delegacia de Polícia Civil”, explica.
O funk nunca passou o que está passando. Estamos no auge da covardia. A cultura escrita e favelada que mais produziu na história é o funk. Não existe outra. A importância de cada um é discutível; a produção, não
Já que uma lei para criminalizar o funk seria inconstitucional, as barreiras para realização de bailes é uma medida eficaz contra a música produzida em territórios populares. “Quando a polícia reprime um baile, muitas vezes ela reprime com base na violação de leis de direito administrativo ou até de contravenções penais, como perturbação do silêncio”, acrescenta Cymrot.
Ainda na visão do pesquisador, o papel da mídia na propagação de discursos criminalizantes é fundamental para a manutenção da discriminação ao que se produz na favela. “Quando o funk aparece na mídia, sempre associado a algum episódio de violência, você acaba de certa forma reforçando no imaginário social a impressão de que funk é algo violento. Então, quando acontece um baile funk em que não existe nenhum episódio de violência, isso não é noticiado”, afirma.
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Veja o que já enviamosPara Danilo Cymrot, a prisão do Oruam diz muito sobre a política criminal brasileira, dentro de um contexto mais amplo da chamada guerra às drogas, que se mostrou ineficaz para combater o problema da violência no Brasil. “A gente sabe que a criminalização, mais do que solucionar, muitas vezes acentua a violência, uma vez que acentua a disputa na base da bala por um mercado altamente lucrativo. E, ao mesmo tempo, é hipócrita porque criminaliza determinadas drogas e não outras que causam sérios danos para a saúde pública”, compara o pesquisador, adicionando que “a Lei Anti-Oruam é uma continuidade desse processo que vem desde a década de 1990”.
Um histórico de criminalização
O pesquisador, escritor e criminologista Danilo Cymrot lembra que o funk chegou ao Brasil ainda na década de 1970, vindo dos EUA e associado à questão racial, uma música de afirmação de orgulho negro mas consumida por um público bastante heterogêneo. Os bailes começaram na Zona Sul do Rio de Janeiro – inclusive no famoso Canecão – mas foram migrando para os subúrbios da cidade. “Aí, eles ganham cada vez mais essa cara periférica e negra”, afirma. Segundo o autor de “O funk na batida: baile, rua e parlamento”, os bailes também foram vistos com suspeitas por censores da ditadura militar.
O funk passa a falar sobre problemas das favelas, sobre facções e também começa a mostrar a beleza das favelas em suas letras. A criminalização de gêneros musicais, como o funk e o samba, vai além da música. “Mais do que a música, o que é criminalizada é aquela população a que esses gêneros são associados. Então, no Brasil, historicamente, a população jovem, negra e periférica das camadas baixas da população, quer dizer, socioeconomicamente falando, são sempre vistas como ameaçadoras, porque, de certa forma, acabam questionando o próprio sistema político e econômico, na medida em que esse sistema político e econômico não consegue responder ao anseio dessa população, não consegue, apesar das promessas do capitalismo, não consegue”, afirma Cymrot.
Nessa toada, o produtor musical e doutor em Educação Samuel da Silva Lima fala da necessidade de “se lançar no abismo” das políticas públicas e da cultura negra como campo de reinvenção. “A gente precisa olhar o funk como o abismo, porque é lá que estão os campos de liberdade. É onde a cultura negra se reinventa e sobrevive”, defende o pesquisador. A ancestralidade, segundo ele, mostra a resistência que as favelas, os artistas e a comunidade funkeira ainda garantem. “Funk, rap e trap são expressões da diáspora. São línguas do corpo negro que o sistema tenta apagar, mas não consegue”, acrescenta, destacando que os ritmos são formas de comunicação, de cultura e educação negras. “O funk está no universo do quilombismo. Não é acabar com o mundo branco, é só deixar o universo negro acontecer”.
Para Samuel Lima, o estado brasileiro tem dificuldade em reconhecer a legitimidade de formas de educação que acontecem fora da escola formal, como nos bailes, nas rodas, nos versos e nos beats. “O Brasil ama música, mas odeia músicos. Diz que valoriza a educação, mas odeia educadores. A educação negra acontece na vida. O funk ensina. Ensina autoestima, corpo, território, liberdade. Garantir o direito à expressão cultural da juventude preta e periférica hoje é se lançar nesse abismo, onde não há respostas fáceis, mas há possibilidades de liberdade”, afirma.
A gente vive numa sociedade hipócrita, que gosta da favela, mas não gosta do favelado; gosta de funk, mas não gosta de quem faz funk; que gosta de rap, mas não gosta de quem canta rap. É criminalização do nosso corpo, do que a gente fala e da nossa realidade
MC Leonardo, cantor e compositor muito conhecido no mundo do funk e que começou a carreira já nos anos 1990, lembra desse histórico de criminalização “Com o samba, eram negadas as condições de existir. O funk foi caçado. Jogaram ele para a boca de fumo, para alcançar os bailes”, afirma o funkeiro. De acordo com MC Leonardo, entre 1992 e 1995, eram mais de 800 bailes espalhados pela periferia do Rio. Esse número foi reduzido à metade no começo dos anos 2000, após a morte do jornalista Tim Lopes, que investigava exploração sexual numa favela da Xona Norte e, 10 anos depois, em 2012, eles acabaram nas comunidades com o projeto UPP (Unidade de Polícia Pacificadora. “O funk na visão da população do Rio de Janeiro é festa de traficante, reunião de traficante”, critica.
O cantor destaca que o funk movimenta não apenas a vida de MCs e artistas, mas toda uma cadeia econômica. “Se o baile não acontecer, a gente não vai ter o editor, fotógrafo, mais DJ, mais dançarino, mais nada”, afirma. “O funk nunca passou o que está passando. Estamos no auge da covardia. A cultura escrita e favelada que mais produziu na história é o funk. Não existe outra. A importância de cada um é discutível; a produção, não”, acrescenta MC Leonardo, destacando a vitalidade do movimento. “O funk produz como nunca, consome como nunca, vende como nunca, tudo como nunca”.
O artista lembra que já foi chamado à delegacia para prestar depoimentos sobre o “Rap das Armas”, composto por ele e por MC Júnior. “A gente tem inspiração naquilo que a gente sente, naquilo que a gente vê. Se não for assim, não é popular, é propaganda, é jingle, é propaganda de refrigerante. Como é o sertanejo: uma propaganda só, o tempo inteiro”, observa.
“Não é criminalizando o que o pobre está falando que a gente vai disputar a juventude, não. Isso é covardia. É o que o Estado mais sabe fazer. Nisso, ele é excelente. Infelizmente, nosso inimigo é poderoso, rico, atento ao que a gente está fazendo. É isso que a molecada tem que saber: se organizar e fazer acontecer. Com ou sem muro, dentro ou fora das quadras. Ocupação de espaço. E aceitação rítmica. Explicar pra molecada de onde veio o som que eles estão ouvindo. De onde surgiu. Esse é o meu papel como artista”, complementa.
A juventude da favela que produz
MC Martina é cria do Complexo do Alemão, inserida nas batalhas de rimas e composições de letras que retratam a raça, gênero e a favela. “O funk é um retrato da realidade social que a gente vive aqui, né? Hoje, a nossa juventude produz o funk. Antes, era o samba, antes do samba, teve a capoeira. O funk, para mim, assim, como rap também, é mais uma forma de expressão, de como a favela, como os corpos pretos se expressam por meio da cultura, da rima, para falar sobre o que acontece na nossa realidade. Só que no beat, com a nossa métrica, com o nosso jeito de falar, de rimar, com a nossa descrição, com a nossa identidade, com a nossa cultura”.
Para Martina, de 27 anos, a arte cria um mundo de possibilidades. “O funk, o rap, a poesia representam a liberdade de ser, de agir, de falar, de pensar, possibilidade de me expressar diferente. A arte em si me possibilita isso, é o poder. Não de falar por muitos, mas despertar, tocar pessoas”, afirma a poeta, rapper e produtora cultural.
A jovem artista diz que a cultura preta e favelada sofre com a criminalização, mas a sociedade se aproveita do que é produzido pelas pessoas que compõem esses grupos. “A gente vive numa sociedade hipócrita, que gosta da favela, mas não gosta do favelado; gosta de funk, mas não gosta de quem faz funk; que gosta de rap, mas não gosta de quem canta rap. É criminalização do nosso corpo, do que a gente fala e da nossa realidade”.
Em suas composições, MC Martina não deixa de fazer os seus registros de como observa a vida e reflete que não pratica autocensura, mas toma cuidado. “Eu ando em muitas favelas e em muitos lugares, então, acho que não é uma censura, mas um bom senso, ou senso crítico do que eu posso falar ou não em público”, argumenta a autora do livro Nunca Foi Sorte, Sempre Foi Poesia. “Quem nunca se sentiu criminalizada, ou mal interpretada e julgada pelo que canta, ainda mais quando você faz poesia, rap ou funk”, argumenta.
Questionada sobre como é ser artista no contexto atual e político no Rio de Janeiro, ela diz que o papel dela é questionar a realidade, a sociedade. “O meu papel enquanto artista é questionar a forma como trata o meu corpo e o corpo de pessoas parecidas comigo, o cabelo, a forma como falo. Por que me tratam diferente se eu quiser amar, demonstrar afeto e receber afeto de outra maneira? Eu encontro um corpo retinto, preto, LGBT, favelada, artista”, pontua. “A questão de reconhecer e tratar com a humanidade o nosso corpo e a nossa cultura”, completa.