Uma década depois de desembarcar na periferia de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, a cultura Ballroom cresceu, empreteceu e incorporou ritmos musicais tipicamente brasileiros nas balls, como são chamados os eventos de competição promovidos pela comunidade LGBTQIAPN+. Inicialmente concentrada nessas três cidades, foi se espalhando de Norte a Sul do país, chegando a Brasília, Maceió, Manaus e Porto Alegre, e criando, inclusive, categorias que só são disputadas por aqui.
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A Ballroom brasileira vem se firmando internacionalmente e chamando a atenção até mesmo de membros da comunidade nos Estados Unidos, onde tudo começou. “Misturamos elementos como brega, capoeira, frevo, funk e samba no pé, entre outras manifestações culturais tipicamente brasileiras”, conta Ákira Avalanx, mulher trans, artista, produtora e uma das pioneiras do movimento no Brasil. Ela vem ajudando a popularizar as balls em São Paulo, dando aulas gratuitas de voguing, um estilo de dança caracterizado por braços ágeis que fazem linhas marcadas, ângulos precisos e movimentos velozes.
Seu nome artístico foi escolhido mantendo a tradição da cultura Ballroom. As balls são disputadas por pessoas de uma “house” (casa em português), que não necessariamente significa um espaço físico, com endereço e CEP. É um lugar simbólico e espelhado no parentesco, só que criado por vínculos afetivos e não biológicos.
O dono da casa é chamado de mãe ou de pai, ou, mais precisamente, de mother e de father, e fornece orientação e apoio para as “crianças” de suas casas. Os membros da comunidade replicam as regras do movimento e reproduzem os nomes em inglês dos postos na hierarquia da Ballroom — o que pode ser uma barreira, especialmente para quem não domina o idioma, dificultando entender o que está sendo dito.
A primeira casa no Brasil, a House of Hands Up, foi aberta em 2014 por Eduarda Kona, no Distrito Federal. Professora de Hip-Hop, Street Jazz, Waacking e Voguing, ela é também mãe da House of Zion, braço da tradicional casa de Nova Iorque, que tem em Brasília a primeira unidade na América Latina. Na cultura Ballroom, alguns membros da comunidade, como Wallandra, da House of Cazul, estão no top da hierarquia. Ela tem o título de Legendary Overall Princess.
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Veja o que já enviamos“As houses são espaços de acolhimento para corpos trans periféricos”, resume Ákira, mãe da House of Avalanx – vem daí seu sobrenome artístico, que é usado por todas da sua família. Além de São Paulo, seus filhos estão espalhados por Minas Gerais, Rio de Janeiro e Ceará. Mas existem aqueles que preferem seguir sozinhos, sem o vínculo com nenhuma casa. São chamados de “007” e, apesar da carreira solo, são muitos bem-vindos nos bailes e competições.
Resistência festiva
O famoso “pretinho básico” não tem vez nas balls, que são influenciadas pela moda. A exuberância dos figurinos é uma das premissas para dançar ou desfilar e os participantes se vestem de acordo com a categoria em que estão competindo. É uma mistura de glamour, orgulho de enfrentar as convenções sociais, que insistem em empurrar eles e elas para a marginalidade, celebração e competição, o que imprime nos bailes uma forte energia competitiva.
Mas o evento é bem mais que uma competição festiva e entretenimento, com DJ e muita música. É, sobretudo, um espaço de resistência, que acolhe e celebra a diversidade de corpos. Afinal, muitos dos competidores ainda lutam para o direito de viver – a transfobia e o racismo são violências que, no Brasil, andam de mãos dadas. Somos o país que mais mata pessoas transexuais no mundo, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais do Brasil (Antra).
“Se a branquitude e cisgeneridade são vírus sociais, os corpos da Ballroom são antídotos, arquivos vivos da história, capazes de transformar passado, presente e futuro”, escreveram Diego Pereira e Filp Couto, curadores da coletiva “Cosmologias Ballroom”, a primeira exposição no Brasil com obras de artistas da cultura Ballroom expostas em um centro cultural, o Solar dos Abacaxis, no Centro do Rio de Janeiro.
Os bailes duram horas e horas, podendo virar a noite. Tudo vai depender do número de competidores. O espetáculo é comandado por uma dupla, host e chanter, anfitrião e narrador, respectivamente, que anuncia as categorias e os jurados, a quem cabe avaliar as habilidades performáticas (voguing), figurinos e atitudes dos concorrentes. A festa é animada com palavras de ordem – invariavelmente frases curtas e ritmadas. A plateia vibra e torce pelos competidores.
Uma ball é cheia de regras, ainda que qualquer pessoa possa competir e subir na passarela. Só ganha a batalha de cada uma das categorias, que é disputada sempre por dois finalistas, quem levar nota dez de todos os jurados. O troféu costuma ser gigante: podendo chegar a ter até quatro metros de altura e tem o formato de bolas, daí o nome balls para os bailes. São duas as modalidades de competição: caminhar (runaway, como é chamada), onde o competidor desfila como se estivesse em uma passarela, e voguing, um tipo de dança performática que emula pose de modelos em revistas de moda, tendo sido a famosa revista Vogue uma referência.
Brasilidades em cena
O jornalista Dante Alves, mineiro de Belo Horizonte, homem trans, membro da comunidade e autor de “Cultura Ballroom – O processo de emancipação da Ballroom brasileira” se perguntou na sua tese de conclusão do curso de Jornalismo: “a Ballroom brasileira tem o necessário para assumir as responsabilidades de ser emancipada?”
Segundo ele, é perceptível as modificações e influências culturais do Brasil na Ballroom:
“O brasileiro, por mais que respeite todos os conceitos e normas desta cultura, que chega neste território por meio da transnacionalização, adiciona elementos importantes que destacam e transformam esta cena, mostrando toda a riqueza cultural e popular que o país tem em sua natureza”.
Ballroom empreteceu
À medida que os novos ritmos foram atualizando as balls, pessoas pretas foram ocupando lugares de visibilidade, autoridade e influência na Ballroom brasileira, retomando à essência do movimento: uma manifestação artística e política criada por e para trans afro-latinas do Harlem, subúrbio de Nova Iorque, nos anos 1970.
No Brasil chegou em 2015. Como reflexo da desigualdade socioeconômica, que tende a privilegiar as pessoas brancas em detrimento das pessoas pretas, a Ballroom no Brasil atraiu, em um primeiro momento, os profissionais das danças urbanas. Como toda regra tem exceção…
Original de Alagoas, Fênix Zion, que se define como trans não binário, juntou dança e moda para falar sobre HIV/Aids, racismo, LGBTfobia. Foi na Ballroom que recebeu acolhimento, após receber o diagnóstico de HIV. É a primeira filha da House of Zion no Nordeste e se considera uma “artivista” — uma mistura de artista com ativista. Para ela, a “Ballroom continuará desempenhando um papel fundamental na promoção da conscientização e na luta contra o estigma em torno do HIV/Aids”.
Ele lembra que, nos primórdios da Ballroom no Brasil, apenas algumas pessoas conseguiam viajar para Nova Iorque para ter acesso a comunidade e cultura Ballroom. Em sua maioria, acrescenta, eram pessoas brancas. Isso fez com que nos estúdios de dança, iniciassem a pesquisa em Voguing.
Pai da House of Zion e da Casa de Pimentas, para iniciantes, Félix considera a Ballroom “um movimento artístico político”, daí porque as duas casas dão preferência a pessoas LGBT negras, não binárias, da periferia e indígenas, como é o caso de Simas Zion Maverick.
De Nova Iorque para Manaus
Do subúrbio de Nova Iorque, a Ballroom chegou a Manaus. A artista Simas, pessoa trans não-binária, abriu a primeira casa manauara, a Kiki House of Dení em 2019, após oferecer treinos abertos na Escola Superior de Artes e Turismo, da Universidade Estadual do Amazonas, onde cursava danças urbanas — uma das modalidades é o Vogue, que, no caso de Simas, foi amor a primeira vista. Ela também é matriarca da Kiki House of Maverick
“A Ballroom é uma cultura que fala sobre raça, gênero, sexualidade e várias outras questões sociais e políticas”, teoriza, comentando que a abertura de novas casas e a promoção de bailes culminou com a realização da primeira ball indígena, no 19° Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, em 2023. O baile foi promovido pela Casa de Onijá em parceria com o Coletivo Tybyra.
As balls em Manaus vêm crescendo, assim como no país todo. Do primeiro grande evento no Brasil, o BH Vogue Fever, em 2015, foi pipocando até chegar a uma média de 300 bailes por ano, o que incluí eventos pequenos, médios e grandes, com convidados internacionais.