ODS 1
Despejo ameaça indígenas venezuelanos refugiados em Boa Vista
Quase 300 pessoas da etnia Warao ocupam antigo ginásio improvisado como abrigo, recusam transferência e temem remoção pelo governo
Inaugurado em março de 2022, Waraotuma a Tuaranoko, novo abrigo da Operação Acolhida – a resposta do governo brasileiro para receber o intenso fluxo de imigrantes da Venezuela que ocorre desde 2018 – em Boa Vista foi concebido para atender exclusivamente para indígenas: uma antiga reivindicação de indígenas distribuídos por outros abrigos em Roraima, que também recebem refugiados não indígenas também. O novo abrigo, entretanto, não é unanimidade entre os indígenas venezuelanos. Dezenas de famílias da etnia Warao se recusam a deixar o Abrigo Pintolândia, na Zona Oeste de Boa Vista, e, agora, estão ameaçados de despejo pelo governo estadual, proprietário do antigo ginásio esportivo, improvisado como abrigo.
Os indígenas venezuelanos do Pintolândia reclamam que os militares da Operação Acolhida não os tratam com “humanidade” e querem ficar no local. Desde 2020, quando começaram os remanejamentos de indígenas pela Acolhida, surgiram denúncias de violências e maus tratos cometidos pelos militares contra indígenas. “Estamos bem aqui, os filhos já estão acostumados, estão na escola, temos mercado perto. Apesar das dificuldades, queremos permanecer, estamos bem sem o Exército que nos intimidava o tempo todo. Eles entravam aqui armados, encapuzados, impunham regras”, desabafou um líder indígena do Pintolândia, que prefere não se identificar com medo de represálias.
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Veja o que já enviamosA situação desses refugiados Warao se agravou no começo de maio quando o general Sérgio Schwingel, coordenador operacional da Operação Acolhida, comunicou, em ofício ao governo de Roraima que o Exército encerraria os “serviços de proteção, segurança, moradia, saúde, atividades sociais e educativas da comunidade que optou permanecer no Pintolândia”. No mesmo ofício, o comandante militar afirma que o abrigo Waraotuma a Tuaranoko, aberto pela Operação Acolhida com apoio da Acnur (Agência da ONU para Refugiados), “proporciona ao migrante indígena maior espaço comunitário, além de melhores condições de saúde, saneamento básico e segurança”.
Agora em junho, os indígenas venezuelanos do Pintolândia receberam a visita de representantes do governo estadual, que mostraram documento da Casa Civil às secretaria estaduais de Gestão Estratégica e Administração e do Trabalho e Bem Estar Social, para a “adoção de providências no tocante a devolução do imóvel ao proprietário” – no caso, o próprio governo estadual. Também foi mostrado às lideranças indígenas o ofício do comando da Operação Acolhida, em que também consta o pedido de celebração de termo de distrato para a devolução do Pintolândia ao Governo de Roraima. No documento, o general Schwingel salienta a impossibilidade da Força Tarefa Logística Humanitária sob seu comando requerer judicialmente a reintegração de posse, já que o imóvel é propriedade do governo.
A visita deixou os indígenas alarmados, à espera de uma iminente ação de despejo. Quando a reportagem que visitou o Pintolância – agora ex-abrigo e uma ocupação dos indígenas – pouco depois do comunicado do governo estadual, sobre a reintegração de posse, os Aidamo – os caciques Warao – defenderam a permanência ali e reclamaram do tratamento dos militares: “nos tratam como animais, não nos consultam para nada”, disse um deles. Chama atenção no relato dos líderes indígenas venezuelanos que os representantes do governo estadual se recusaram a deixar uma cópia do ofício com os ocupantes do Pintolândia; tão pouco deixaram um aviso oficial. Procurado pelo reportagem, o governo estadual não explicou as providências a serem tomadas para a reintegração de posse do antigo ginásio.
O despacho da Casa Civil faz menção ao outro ofício, do Exército – aquele comunicando ao governo estadual o fim das atividades da Operação Acolhida no Abrigo Pintolândia e enfatizando que os indígenas não quiseram ser transferidos para o abrigo Tuaranoko. O documento, assinado pelo general Schwingel, afirma ainda que os ritos de consulta prévia aos indígenas foram concluídos. Os líderes dizem que isso não é verdade.
Indígenas querem autonomia
Para os Warao, o Exército, ao pressionar pela mudança do Pintoândia para o Waraotuma a Tuaranoko, desconsidera aspectos culturais dos indígenas e reclamam de serem tratados de forma truculenta e ameaçadora pelos militares. Os venezuelanos não acreditam que estes super-abrigos – como Waraotuma a Tuaranoko, para dois mil refugiados – seriam apenas para indígenas. Os Warao temem ser obrigados a conviver com não indígenas que, muitas vezes, têm atitudes racistas, provocando um estado permanente de tensão entre as famílias.
Os Aidamo afirmaram que, mesmo no caso de abrigos voltados apenas para indígenas, como está planejado para ser Waraotuma a Tuaranoko, há problemas com as diferenças entre famílias de outras etnias e um número alto de pessoas vivendo muito próximas umas das outras. “Nos disseram (quando começou a Operação Acolhida) que as coisas iriam melhorar. Que iria melhorar alimentação, saúde, educação. Mas não foi isso que aconteceu. Por exemplo, a alimentação: é sempre a mesma coisa, sempre a mesma comida na marmita”, disse um líder indígena que permanece no Pintololândia.
Para o refugiado Warao, normas e regras devem ser diferenciadas. “Nós somos indígenas, temos nossa própria cultura. Queremos que isso seja respeitado”, afirmou o indígena. “Não é que estamos sendo ingratos com a comida fornecida pela Operação Acolhida, é que são cinco anos comendo a mesma coisa, a mesma marmita. Nas eles não entendem, dizem que somos imigrantes e não podemos exigir muito”, acrescentou.
Na agora ocupação Pintolândia, os Warao remanescentes estão seguros do que querem: autonomia, direito de ir e vir, estabelecer seus próprios protocolos de conduta. Seus filhos estão adaptados às escolas e às rotinas do bairro em que vivem. Após a saída do Exército da administração do abrigo, os Warao se sentem melhor e mais a vontade vivendo sob a autogestão.
Os Warao contam que a atual ocupação Pintolândia, um ginásio de esporte, estava abandonado e sujo, quando virou abrigo para os indígenas venezuelanos refugiados. Os Aidamo relataram à reportagem que só faz sentido saírem dali se forem para um terreno deles. Querem ajuda do Estado e da sociedade civil para comprar seu terreno e também querem pagar por esse terreno. “Estava abandonado antes de chegarmos. Querem nos tirar daqui para deixar o espaço abandonado novamente? Não queremos ficar aqui para sempre, mas queremos que nos ajudem a comprar um terreno, para que possamos viver em comunidade, como indígenas, produzindo e trabalhando”, explicou um cacique Warao, que também teme ser identificado. “Não queremos viver em abrigos, sem dignidade”, completou.
As lideranças ouvidas pela reportagem contam que desde que o atual governo, de Jair Bolsonaro, assumiu, as intimidações dos militares com os refugiados indígenas vêm aumentando. Em agosto de 2021 o Repórter Brasil obteve um vídeo que mostra o “cantinho da vergonha”, espaço criado para humilhar indígenas que chegassem embriagados ao abrigo ou que desobedecessem às regras impostas dos militares. Na mesma reportagem, há uma carta assinada por profissionais de saúde, que denunciam os maus tratos cometidos pelos militares brasileiros da Acolhida.
Já em 2022, os indígenas venezuelanos denunciaram mais uma investida da Operação Acolhida para forçar a mudança de abrigo: corte no fornecimento de comida. “Hoje trouxemos comida, amanhã não vai ter” – a ameaça foi feita por um militar aos indígenas Warao que vivem em outro abrigo para refugiados em Boa Vista, capital do estado, de acordo com denúncia também do Repórter Brasil em 24 de março.
Os Warao têm consciência de que o atual governo brasileiro é anti-indígena. “O governo atual é complicado para os imigrantes, sobretudo para os indígenas. Se mudar o governo, talvez nossas vidas melhorem”, opinou um dos moradores da ocupação. “Queremos trabalhar, nós somos capacitados, somos agricultores, carpinteiros. Eu tenho certificado, sou preparado”, explicou.
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Leonardo Milano tem 45 anos, é fotojornalista e foto-documentarista. Trabalha na região norte do país, com foco em questões socioambientais e direitos humanos. Faz trabalhos para a Agência Amazônia Real, InfoAmazônia, Jornalistas Livres e Brasil de Fato. Parceiro da Apib e da ONG Amazon Watch