Em cada esquina, um refugiado

A jovem Jéssica Perez, sentada sobre a mala na praça Simón Bolívar. Foto Charles Wellington

Cidade está com os hospitais lotados e já registra aumento nos casos de violência

Por Eliane Rocha | ODS 1 • Publicada em 19 de fevereiro de 2018 - 19:11 • Atualizada em 24 de junho de 2022 - 21:07

A jovem Jéssica Perez, sentada sobre a mala na praça Simón Bolívar. Foto Charles Wellington

Boa Vista (RR) – O número crescente imigrantes mudou completamente o cenário de Boa Vista, que vê o aumento da violência, das doenças e a superlotação dos hospitais tirar-lhe o título de cidade tranquila e pacata. Recentemente, um caso confirmado de sarampo em uma criança venezuelana de um ano deixou a população em alerta. A prefeitura montou um ponto de vacinação na Praça Simón Bolívar e vacinou 730 pessoas, entre crianças e adultos, no último sábado, dia 17.

Não há previsão de retirada dos venezuelanas da praça Simón Bolívar. Os abrigos estão superlotados

Um dos termômetros da crise migratória em Boa Vista são os semáforos da cidade. Os imigrantes se juntam em grupos de 10 ou mais para limpar os para-brisas dos carros. Quando o sinal fecha, eles abordam os motoristas pedindo: “puedo limpiar?” A presença dos limpadores já criou polêmica nas redes sociais e provocou a ação da polícia. Hoje eles vivem em constante alerta. “A maior parte das reclamações é por causa da insistência deles”, justifica um policial, que acabara de chegar numa viatura para inibir a permanência dos venezuelanos. Mais de 20 que estavam no sinal saíram em retirada, esperando que a polícia fosse embora para retornar à sinaleira.

Betania Hernández, 22 anos, veio com o marido de Maturín há três meses e sobrevivem de moedas nos sinais de trânsito. A bicicleta comprada por R$ 30 é o transporte do casal para chegar cedo ao trabalho todos os dias.

Eudenis Marcano tenta descolar uns trocados limpando os para-brisas nas ruas de Boa Vista. Foto Charles Wellington
Eudenis Marcano tenta descolar uns trocados limpando os para-brisas nas ruas de Boa Vista. Foto Charles Wellington

Com um rodo de mão, que a jovem comprou no supermercado, e uma garrafa PET de dois litros com água e sabão, ela distribui sorrisos em troca de “permiso” para limpar os vidros dos carros. “Não tenho moedas”, avisa o advogado Fábio Martins, 56 anos, mesmo com o serviço oferecido como cortesia.

“Tem brasileiros que não querem que limpe. Xingam a gente”, reclama Eudenis Marcano, 25 anos. Ela também chega às 7h para trabalhar no sinal e retorna às 17h para o quarto alugado onde vive com mais oito venezuelanos. Há três meses em Boa Vista, ela disse ter conseguido fazer duas transferências de R$ 40 para a mãe que ficou cuidando de seus dois filhos. “Tem dias que não temos dinheiro para comprar comida”, desabafa.

As pessoas que chegam da Venezuela e contam que tem famílias que estão tomando só água. Às vezes comem só as seis horas da tarde

Abrigos em Roraima escondem a miséria instalada e sem hora para acabar

Longe das praças e dos sinais de trânsito, mais mil venezuelanos foram apinhados em abrigos. No Ginásio Tancredo Neves, periferia de Boa Vista, estão vivendo 596; próximo de lá, no bairro Pintolândia, vivem 382 indígenas das etnias Warao, Eñapa (Penare) e Pemon e no bairro Operário, foram alojados mais 183. Em Pacaraima, cidade que faz fronteira entre o Brasil e a Venezuela, somam-se mais 350.

Para os imigrantes da Praça Simón Bolívar ainda não há destino. A prefeitura respondeu em nota que “aguarda a estruturação das ações junto ao Governo Federal e Estadual para que possa dar uma posição definitiva de apoio aos migrantes e decidir as próximas ações a serem realizadas”. O governo de Roraima responde que, “por enquanto, não há previsão de retirada deles daquele local, porque os abrigos estão superlotados”.

Merbin Rodriguez come as sobras de pão que conseguiu recolher na praça. Foto Charles Wellington
Merbin Rodriguez come as sobras de pão que conseguiu recolher na praça. Foto Charles Wellington

Na segunda-feira de carnaval, o presidente Michel Temer esteve em Boa Vista para uma reunião com a governadora Suely Campos (PP), a prefeita de Boa Vista, Teresa Surita (PMDB), e parlamentares de Roraima. A visita presidencial aconteceu depois que os ministros Torquato Jardim (Justiça), Raul Jungmann (Defesa) e Sergio Etchegoyen (Gabinete de Segurança Institucional) vieram a Roraima para tratar da crise migratória mas não saíram da Base Aérea de Boa Vista. A notícia teve uma repercussão muito negativa. A ponto de os ministros mudarem a agenda – que seria apenas uma parada na capital roraimense para abastecer a aeronave e seguir para o Suriname, onde teriam outra reunião – e irem ver a situação dos venezuelanos na praça e se reunir com a governadora.

No último dia 15 o presidente assinou uma Medida Provisória (MP) que determina ações emergenciais nas áreas de proteção social, saúde, educação, direitos humanos, alimentação e segurança pública.

O governo também se comprometeu a repassar R$ 15 milhões para dar suporte às ações de apoio humanitário que o governo roraimense vem dando aos imigrantes. Por enquanto, o que há de concreto mesmo são as doações de pessoas que se compadecem com a situação dos imigrantes vivendo na rua com os filhos.

A sobrevivência dos Warao em terras brasileiras

No abrigo exclusivo para os índios venezuelanos, a presença da Fraternidade – Federação Humanitária Internacional – tem ajudado na adaptação dos povos da mata a se manterem fora de seu habitat natural. Os 382 indígenas das etnias Warao (a maioria), Eñapa (Penare) e Pemon vivem em abrigos com melhor estrutura e adaptados à realidade dos índios, barracas do lado de fora para abrigar famílias e liberdade para que eles mesmos preparem seus alimentos.

O cacique Ronny Baez diz que não pretende voltar para a Venezuela: "Lá só há fome". Foto Charles Wellington
O cacique Ronny Baez diz que não pretende voltar para a Venezuela: “Lá só há fome”. Foto Charles Wellington

A conquista é recente. Os Warao, primeira etnia vista nas ruas de Boa Vista, por meio das mulheres balançando caixas de leite nos semáforos pedindo “plata”, sofreram muita discriminação e xenofobia pela conduta de pedir esmola nas ruas. Antes, viviam ao redor da rodoviária e em feiras. Uma ação do Ministério Público Federal em Roraima, os retirou desses lugares e fez com que o governo os alojasse em abrigos.

Ainda se vê a prática de mendicância nas ruas de Boa Vista, mas hoje parte das índias Warao dedicam-se ao artesanato de miçangas e confecção de redes. Cristina Perez é uma das que passam o tempo tecendo redes para vender em pontos turísticos da cidade.

No terreno do abrigo, voluntários da Fraternidade, em parceria com a Embrapa, preparam uma horta. Melão, banana, cheiro verde e buriti – base da alimentação dos Warao – foram cultivados e já dão os primeiros frutos.

“Não pretendo voltar para Venezuela. Lá, só há fome”, diz o aydamo – espécie de cacique – Ronny Baez, 29 anos. Ele trouxe toda a família para o Brasil. Marcelino Moraleda, 32 anos, é líder de 15 famílias Warao e também não pensa em voltar ao seu país. “As pessoas que chegam contam que tem famílias que estão tomando só água. Às vezes comem só as seis horas da tarde”, conta.

Eliane Rocha

Formada em jornalismo pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pós-graduada em assessoria de imprensa e novas tecnologias pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão (IBPEX ), já ganhou mais de 10 prêmios de jornalismo impresso.

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