Clamor por diversidade para fechar o Festival 3i

Últimas mesas do encontro transformam-se em catarse pelo engajamento da mídia na luta contra o racismo e a intolerância

Por Aydano André Motta | ODS 16 • Publicada em 22 de outubro de 2019 - 10:40 • Atualizada em 22 de outubro de 2019 - 12:16

Raull Santiago, no palco: “Esse país não se informa do jeito correto”. Foto de Oscar Valporto
Raull Santiago, no palco: "Esse país não se informa do jeito correto". Foto de Oscar Valporto
Raull Santiago, no palco: “Esse país não se informa do jeito correto”. Foto de Oscar Valporto

No auditório praticamente lotado da Fundição Progresso, perto de 40 brasileiros ergueram-se das cadeiras, para atender a Raull Santiago. “Quem é preto, periférico e favelado levanta aí”, pediu o comunicador independente, empreendedor social e ativista, integrante dos coletivos Papo Reto e Movimentos e da assembleia da Anistia Internacional no Brasil. Deu-se, então, o momento mais catártico do último dia do Festival 3i.

As duas mesas derradeiras, na tarde do domingo (20), na verdade foram complementares, ao tratar de racismo e desigualdade, representatividade e espaço, olhares e vozes. Mazelas brasileiras ocuparam as falas, com críticas inclusive ao elenco dos debates, que reproduziu o desequilíbrio de gênero e raça verificado na mídia tradicional.

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A penúltima mesa do dia, “Como cobrir a cidade fora das redações tradicionais. Os desafios de tornar o jornalismo mais democrático e acessível – e por que essa transformação deve ser uma prioridade hoje”, apresentada por Ponte e Énois, reuniu, além de Raull, a multipremiada repórter Elvira Lobato e Darryl Hollyday, editor do City Bureau, de Chicago, sob mediação de Maria Teresa Cruz, da Ponte Jornalismo. O americano descreveu o trabalho de capacitar pessoas e comunidades para defender a democracia, num jornalismo radicalmente participativo. “Buscamos o engajamento dos cidadãos na defesa e luta pelos seus direitos”, arrematou.

Elvira alertou para a precariedade da veiculação de informações em lugares como Japeri, na Baixada Fluminense, que vive sufocada pela disputa entre três facções criminosas. “Não é animador o que está sendo feito de jornalismo fora dos grandes centros”, constatou. Ela até lembrou uma exceção, “A Sirene”, jornal criado pelos atingidos pelo rompimento da barragem da Samarco em Bento Rodrigues (MG). Mas lamentou o fim das edições regulares, por falta de verba.

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É grave ler que alunos da PUC sofrem com tiroteio na Rocinha. Jornalismo periférico não fala só sobre violência e morte; a gente cria, fala sobre soluções e isso fala sobre tudo

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Aplaudido com entusiasmo pela plateia – formada na maioria por jovens –, Raull Santiago sustentou sua fala numa assumida parcialidade na prática jornalística. Definiu-se como “comunicador pé na porta” e atacou a alegada imparcialidade da mídia tradicional, “feita por pessoas que vêm do lugar de privilégio e não conhecem a estrutura racista e desigual da cidade”. A construção da inovação, inspiração e independência se dá com a quebra do cenário de exclusão. “Nessa estrutura de ausência, criamos a redação favelada”, acrescentou. “É grave ler que alunos da PUC sofrem com tiroteio na Rocinha. Esse país não se informa do jeito correto. Jornalismo periférico não fala só sobre violência e morte; a gente cria, fala sobre soluções e isso fala sobre tudo. Para cada uma das mesas desse evento, tinha um jornalista favelado que poderia ter sido chamado para falar. Temos que fazer jornalismo que combata atual estrutura desigual e racista”, arrematou, sendo novamente aplaudido com entusiasmo.

Em seguida, a mesa que fechou a segunda edição do Festival 3i abordou a desigualdade que a mídia perpetua. Apresentada por Marco Zero Conteúdo e Ponte Jornalismo, “Quem tem voz nas redações? Como as organizações digitais trabalham internamente com suas equipes e quais os desafios para ampliar a diversidade nas redações”, teve mediação de Carolina Monteiro, do Marco Zero Conteúdo, e a participação de André Santana, do Mídia Étnica e do Portal Correio Nagô, Paula Cesarino Costa, editora de Diversidade da Folha de S.Paulo; Matías Máximo, do Cosecha Roja (Argentina); e Pedro Borges, do Alma Preta.

Baiano, André convidou a plateia para uma reflexão: “Quando falam com negros sobre algo que não seja cultura, futebol ou Carnaval? Quando contam histórias de negros que não sejam sobre violência?”, questionou. “Em qualquer área, tem um especialista negro para falar, que não ganha espaço. E assim, não nos vemos representados nessa mídia”. Ele lembrou ainda o “fetiche dos corpos negros mortos” que grassa pela imprensa e falou da “morte epistemológica promovida pelo racismo estrutural”.

Paula Cesarino falou dos desafios de levar diversidade a uma redação acostumada a funcionar com brancos, a maioria homens, quase todos heterossexuais. “Quem tem voz nesses espaços é gente branca, da elite”, constatou, lembrando a perplexidade de um jornalista inglês que, 15 anos visitou a Folha e só encontrou brancos. Ela argumentou ainda que não adianta contratar um negro e uma trans e dar como cumprida a agenda da diversidade. “Precisa ser muito mais profundo do que isso”, ponderou.

Pedro Borges: "O jornalismo mais incrível do Brasil é produzido pelos moleques das quebradas". Reprodução do Twitter
Pedro Borges (de pé): “O jornalismo mais incrível do Brasil é produzido pelos moleques das quebradas”. Reprodução do Twitter

Máximo exibiu diversos trabalhos do que chamou de “trincheira ativista” no jornalismo argentino, como a cobertura “dissidência sexual e ditadura”, sobre os crimes contra LGBTs cometidos nos anos de arbítrio no país. Ensinou a plateia atenta sobre como pautar toda uma cobertura a partir de memes, no mais pleno jornalismo digital. Um deles, aliás, era “El patrón del fuego”, o “patrão do fogo”, com uma foto de Jair Bolsonaro, por conta das queimadas na Amazônia.

Cofundador e editor-chefe do Alma Preta, Pedro Borges, integrante da rede Jornalistas das Periferias exibiu estatísticas de representatividade em diversos segmentos – inclusive no Festival 3i, que teve apenas sete não brancos entre seus 42 palestrantes. “Vocês não sabem como é duro olhar a mesa e não enxergar ninguém como a gente”, comentou, exaltando a mídia feita nas periferias. “O jornalismo mais incrível do Brasil é produzido pelos moleques das quebradas”, relatou, numa fala contundente e empolgante. Pedro alertou que os negros, historicamente deixados de lado, não estão mais dispostos a prescindir dos avanços. “O jornalismo será negro e periférico. Não vamos abrir mão”, garantiu. “Ou os veículos de mídia entendem que a gente veio para ficar ou vão ficar para trás. Porque nós vamos atropelar”.

Tomara – porque o Brasil precisa.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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