Caso Champinha insuflou debate sobre maioridade penal no Brasil

Caso Champinha insuflou debate sobre maioridade penal no Brasil

Em discussão logo depois do crime, o então deputado Bolsonaro, defensor da redução da idade, atacou a colega Maria do Rosário: "jamais ia estuprar você porque você não merece"

Por Luiza Souto | ODS 16 • Publicada em 16 de outubro de 2023 - 23:28 • Atualizada em 14 de março de 2024 - 11:59

O Brasil ainda chorava horrorizado pela tortura e morte de um casal de namorados em São Paulo, em que uma das vítima, Liana Friedenbach, 16 anos, foi violentada por cinco dias, quando o então deputado federal Jair Bolsonaro (PTB-RJ) disse à deputada Maria do Rosário (PT-RS) a seguinte frase: “Jamais ia estuprar você porque você não merece”. Não satisfeito, voltou a repetir a frase 11 anos depois. E agora é réu pelo crime de incitação ao estupro.

Leu essas? As reportagens da série especial O destino de Champinha, 20 anos depois do assassinato de Liana e Felipe

Foi a repercussão mais famosa do debate sobre a redução da maioridade penal deflagrada pelo crime brutal orquestrado por Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, então com 16 anos. Exatamente um dia após o então adolescente apontar o local onde estavam os corpos de Liana e de seu namorado, Felipe Caffé, 19, em 10 de novembro de 2003, o ex-presidente defendeu a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos durante entrevista a uma equipe de TV, na Câmara, em Brasília. 

Posicionada ao lado de Bolsonaro, Maria do Rosário manifestou-se contrária a sua opinião, e ouviu do parlamentar que levasse “aquele estuprador de São Paulo [referindo-se a Champinha] para dirigir o carro da sua filha lá no seu Estado”. A política gaúcha retrucou dizendo que o colega promovia aquele tipo de morte, mas Bolsonaro entendeu (ou disse ter entendido) que ela o chamara de “estuprador”. O deputado a empurrou, a chamou de “vagabunda” e disse a nojenta frase.

Durante a comoção nacional pelo assassinato de Liana e Felipe, muitos políticos fizeram projetos e discursos acalorados em defesa da diminuição da maioridade penal e pela mudança do ECA.  Entre as propostas, a do senador Magno Malta, do Espírito Santo, que apresentou uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) estabelecendo a redução da maioridade penal para 13 anos de idade,  em caso de crimes hediondos como homicídio e estupros, e a batizou como PEC de Liana Friedenbach. 

A PEC de Malta tramitou no Senado em conjunto com, pelo menos, outras cinco que tratavam do mesmo tema – a maioria estabelecendo a redução para 16 anos. Nenhuma das propostas prosperou – a do senador capixaba foi definitivamente arquivada em 2014 – apesar de o tema voltar à discussão a cada crime violento cometido por menores de idade. Em 2015, a Câmara dos Deputados aprovou uma PEC para a diminuir a maioridade penal para 16 anos, mas essa proposta acabou sendo arquivada no Senado.

O então deputado Jair Bolsonaro foi um dos ardentes defensores da redução durante os debates na PEC da Câmara. Usou Champinha como argumento novamente durante uma audiência pública. E voltou a agredir verbalmente a deputada em 2014, na tribuna da Câmara, após ela criticar a ditadura militar. “Fica aí, Maria do Rosário, fica. Há poucos dias, tu me chamou de estuprador, no Salão Verde, e eu falei que não ia estuprar você porque você não merece”, atacou o futuro presidente ao ver que a deputada deixava o plenário. Por isso, foi condenado a pagar R$ 10 mil de indenização por danos morais, e a pedir desculpas nas redes sociais.  Agora em setembro, Bolsonaro virou réu pelo crime de incitação ao estupro em um processo que corre na 3ª Vara Criminal de Brasília, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT).

Mas, mesmo em sua passagem como presidente, Bolsonaro não conseguiu fazer o tema avançar no Legislativo apesar de ter defendido a redução da maioridade penal em suas duas campanhas. E apesar de pesquisas mostrarem a simpatia da população pela proposta: após os assassinatos, em 2003, o Datafolha apontou que 84% dos brasileiros eram favoráveis à redução da maioridade penal de 18 para 16 anos;  em 2019, esse número aumentou para 87%. Neste mesmo ano, Bolsonaro chegou a pedir celeridade ao Senado para votar a PEC aprovada na Câmara, mas a proposta não foi votada e acabou arquivada em 2022.

Champinha poderia estar em casa desde 2006

No Brasil, ainda que o delito seja hediondo, se cometido por uma pessoa que não completou os 18 anos, ela responde por ato infracional e cumpre medida socioeducativa por, no máximo, três anos. Ou seja: Champinha sequestrou, torturou, estuprou, matou. Mas, em 17 de novembro de 2006 completou seus três anos de medida, e era esperado em casa pela mãe, em Embu-Guaçu (SP). 

Essa punição é a prevista no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente): segundo o texto, o período máximo de internação de um menor infrator é de três anos. Atingido esse limite, o adolescente deverá ser liberado, ou colocado em regime de semiliberdade – quando fica em restrição por um período numa casa, sob monitoramento de uma equipe profissional–, ou em liberdade assistida, quando segue sem privações, mas acompanhado por assistente social. Sua liberação deve ser total aos 21 anos.

Há, porém, uma exceção – e ela foi usada  com Champinha: todo jovem em medida socioeducativa é avaliado a cada seis meses por uma equipe multidisciplinar, geralmente formada por psicólogo e assistente social. Quando há diagnóstico de doença mental, o juiz pode suspender a execução da medida socioeducativa e encaminhar o adolescente para tratamento num programa de atenção integral à saúde mental, em regime hospitalar ou ambulatorial – nunca, porém, numa prisão ou manicômio judiciário. 

Mas, sob laudos divergentes, Champinha foi interditado pela Justiça de São Paulo por Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), e enviado para a chamada Unidade Experimental de Saúde (UES) sem nunca, porém, ter recebido tratamento ou projeto de desinstitucionalização (para sair da instituição). E lá está até hoje. 

Como é em outros países

A ONU estudou sobre a maioridade penal em 54 países, no ano de 2005, e constatou que 78% deles naquela época fixavam em 18 anos ou mais, como Brasil, Argentina, França, Espanha, China, Suíça e Uruguai.

Mas, nos Estados Unidos, por exemplo, dependendo do estado e da gravidade do crime, um jovem de 12 anos pode ser julgado com possibilidade de prisão perpétua e até pena de morte. Caso de um garoto de 16 anos condenado em fevereiro último à  prisão perpétua na Flórida após esfaquear uma colega de classe, de 13 anos, por 114 vezes. O crime aconteceu em 2021. Durante a sentença, o juiz levou em consideração vários fatores, incluindo a idade de Aiden Fucci à época do crime –14, e o “nível elevado” de premeditação.

Pela Europa, países como a Inglaterra e Ucrânia estipulam a maioridade penal a partir dos 10 anos. França e Polônia, 13. Alemanha, Itália e Rússia, 14, e Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia, 15 anos. 

Nem por isso a criminalidade foi reduzida. Na Alemanha, por exemplo, pesquisa recente do Departamento Federal de Investigação Criminal (BKA) apontou que o número de crimes cometidos por menores naquele país aumentou um terço em 2022, em comparação com o ano anterior. O crime mais frequente cometido por crianças e jovens é o furto, seguido por assaltos, danos materiais e delitos relacionados com drogas. Por causa disso, autoridades têm pedindo a revisão da idade de responsabilidade penal.

Na Inglaterra, em 1998, a maioridade penal caiu de 14 anos para 10, após um menino de 2 anos ser raptado num shopping center de Liverpool e morto, com requintes de crueldade. Seus algozes, na época do crime, em 1993, eram dois garotos de 10 anos. Robert Thompson e Jon Venables foram condenados naquele ano, mas receberam liberdade condicional em 2003, quando completaram 21 anos, ganhando novas identidades. Só que Venables foi preso novamente duas vezes, em 2010 e 2017, por pornografia infantil.  Num movimento contrário, em 2010 a Escócia aumentou a maioridade penal de 8 para 12 anos, e registrou a maior queda na criminalidade dos últimos 40 anos de 2013 para 2014.

Luiza Souto

Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile