No começo de novembro de 2003, o adolescente Champinha confessou o assassinato da estudante Liana Friederich, de 16 anos, também seguidamente estuprada por ele e seus cúmplices, e do namorado Felipe Caffé, de 19, na região metropolitana de São Paulo. Os outros autores do crime bárbaro foram condenados a penas de até 110 anos de prisão. A Champinha, então com 16 anos, foi aplicada medida socioeducativa: devia ser liberado, no máximo, quando chegasse a 21 anos, de acordo com o estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Mas, desde 2007, meses antes de completar 21, ele segue trancado numa instalação chamada Unidade Experimental de Saúde (UES), considerada irregular por especialistas no campo jurídico e médico, e até mesmo condenada pela ONU, que diz o seguinte em seu relatório de 2013: “Este tipo de privação de liberdade é arbitrária sob os padrões internacionais de direitos humanos, particularmente se não possui base jurídica”. A unidade será fechada, está decidido. Champinha poderá, então, ser solto? Esta é a pergunta que incomoda a Justiça paulista que precisa decidir o novo destino de Roberto Aparecido Alves Cardoso, nome de batismo do assassino do casal de adolescentes 20 anos atrás, hoje com 36 anos.
O próprio pai da adolescente assassinada, o advogado Ari Friedenbach, 63, critica a UES. “Não pode acontecer de novo um caso como o do Champinha e fazer uma acochambração jurídica, fazer de conta que estamos resolvendo o problema”, afirmou ele ao #Colabora, antes de complementar: “Eles fazem de conta que estão tratando, mas é mentira. Só o colocaram numa jaula melhorada”
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Veja o que já enviamosPelo menos desde 2011, a defesa vem tentando colocar Champinha em liberdade, recursos seguidamente negados pelas varas pelo TJSP, pelo STJ e até pelo STF. Naquele ano, o jornal “Agora” publicou uma entrevista com o criminoso confesso, já então com 24 anos, feita por carta e intermediada por seu advogado na época. Roberto, de próprio punho, escreveu estar “preparado para viver lá fora”. Afirmou que pretendia terminar os estudos e fazer faculdade de veterinária e que não havia sentido estar ali. “Não tem lei no Brasil para manter eu preso”.
Não é à toa que a pergunta – Champinha poderá ser solto? – incomoda tanto. Vinte anos depois, ele ainda é lembrado como mentor do sequestro, tortura e assassinato do casal de adolescentes, crime que chocou o país pela crueldade. Em 31 de outubro de 2003, os namorados Liana Friedenbach e e Felipe Caffé foram acampar no município de Embu-Guaçu – cerca de 50 quilômetros da capital – sem avisar às respectivas famílias. Na noite seguinte, 1º de novembro de 2003, eles foram sequestrados por Roberto e Paulo César da Silva Marques, conhecido como Pernambuco, então com 32 anos.
O casal foi levado para a casa insalubre de um terceiro criminoso, Antônio Caitano Silva, então com 50. Enquanto Felipe permanecia num dos quartos, amordaçado, no outro, Liana era seguidamente estuprada pelos três criminosos. No dia seguinte, o rapaz foi morto por Pernambuco com um tiro na nuca. Um quarto homem, Agnaldo Pires (47 anos em 2003) se uniu ao bando, e Liana seguiu sendo violentada, até ser morta por Champinha a facadas. Os corpos do casal só foram encontrados em 10 de novembro, quando o então menor de idade confessou os crimes.
A mão da Justiça foi pesada como os acusados. Pernambuco foi condenado a uma pena total de 110 anos de prisão pelo duplo homicídio e mais sequestro, cárcere privado, estupro – ele ainda está na cadeia. Agnaldo e Antônio Caitano, condenados a penas acima de 25 anos por estupro, já foram beneficiados pela progressão de regime; também foi condenado Antônio Matias de Barros – seis anos por ter ajudado na fuga e na ocultação dos cadáveres: este já cumpriu sua pena. Champinha, por ter 16 anos na época, cumpriu medida socioeducativa: enviado inicialmente para a Febem (hoje Fundação Casa), inaugurou, em 2007, a tal unidade experimental, nem cadeia, nem hospital psiquiátrico.
Gambiarra jurídica para uma pena sem sentença
A detenção prolongada do criminoso confesso está baseada em um diagnóstico de Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS), que o tornaria uma ameaça à sociedade. A lei brasileira não permitia sua transferência para um manicômio judiciário: só podem ser tratados ali réus condenados; Champinha, menor na época do crime, nunca foi processado e sentenciado. Hospitais psiquiátricos disponíveis no Estado – voltados para pessoas sem problemas com a Justiça – se recusaram a recebê-lo, segundo servidores que atuaram no caso.
Enquanto se aproximava o prazo final da medida socioeducativa, autoridades de São Paulo construíam, na zona norte capital paulista, a UES, criada para acomodar jovens com transtornos mentais e envolvidos em crimes graves. Àquela altura, Roberto acumulava uma série de diagnósticos que divergiam entre si, como retardo mental e TPAS. Dentro da própria Febem, segundo médicos e defensores ligados ao seu caso, ele tinha acompanhamento psicológico e psiquiátrico e alguns profissionais até concordavam que ele poderia sair para residências terapêuticas, sem contenção.
Mas a Promotoria de Justiça de Infância e Juventude da Capital (DEIJ) queria que Champinha e mais outros jovens com TPAS fossem para um local com vigilância 24h. Em maio de 2007, ele liderou uma fuga da já então Fundação Casa (a mudança de nome, protocolos e políticas foi feita no ano anterior); depois, a Vara Distrital de Embu-Guaçu (onde Roberto Alves nasceu) aceitou pedido da promotoria de interdição cumulada com internação compulsória e o enviou para a UES para tratamento psiquiátrico.
O tratamento nunca aconteceu. Tanto que Champinha foi para lá com a casa vazia: o governo estava ainda negociando convênio com a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) para acompanhamento psiquiátrico dos internos, mas não se concretizou. Ele ficou lá sozinho, sob vigia, por meses, até chegar outro egresso da fundação. “Jovens que na Fundação Casa começaram a dar problema eram colocados lá na UES. A gente implora até hoje para os diretores dos hospitais pegarem os casos, mas ninguém quer receber, nem a assistência social quer acompanhar”, disse uma das profissionais ligadas à Secretaria da Saúde e que pediu para não ser identificada.
Saltam tanto aos olhos as irregularidades do local que publicações passaram a chamá-lo de Guantánamo brasileira, numa alusão à prisão militar americana em Cuba criada após os ataques de 11 setembro de 2001, e para onde suspeitos de terrorismo eram levados e torturados sem qualquer condenação.
Sob administração da Secretaria Estadual de Saúde, a UES tem capacidade para 40 pessoas e instalações que contam com TV, geladeira, horta, quadra poliesportiva, academia, salas de computação e biblioteca. O local é cercado por agentes penitenciários vinculados à Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) e só tem dois psiquiatras plantonistas e um assistente social. As visitas são feitas aos fins de semana somente. Ou seja: características de prisão.
Em 2011, grupos ligados à infância e juventude e à saúde, como o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP), assinaram nota denunciando ausência de médico, a falta de projeto terapêutico ou de regimento interno. Até hoje a UES não foi inserida no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES). “O espaço é destinado em evidente jogo político, a perpetuar a contenção de um jovem massacrado pela mídia”, apontava o documento, numa clara referência a Champinha.
Desde então, a Defensoria Pública apela ao Judiciário pelo fechamento da unidade. Nos processos judiciais, a própria Secretaria Estadual de Saúde (SES) reconhece que a UES não se caracteriza como um serviço de saúde mental dentro da legislação, que não há acompanhamento multidisciplinar. Mas alega que a mantém por “ordens judiciais”. Finalmente, em 2021, houve uma decisão da Justiça determinando que a UES não recebesse novos internos – apenas seis eram mantidos ali, entre eles, Champinha. E foi selado o destino da unidade, que será fechada.
Então, Champinha vai ser solto?
Desde o fim do ano passado, foi firmado uma acordo, sob máximo sigilo, entre o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), Ministério Público, Defensoria Pública, além da Secretaria Estadual de Saúde, para encaminhar desinternação dos cinco jovens – Champinha, 36 anos, entre eles – ainda na UES para o posterior fechamento da unidade.
Esses órgãos criaram um comitê para impedir novas internações, e os atuais internos vão passar por um programa específico de atendimento na rede de atenção psicossocial, com possibilidade de internação em momento de crise. “Para retirar direito, você envia para uma residência terapêutica, busca família, tem todo um desenho”, informa uma técnica envolvida no processo e que pede para não ser identificada.
No decorrer das discussões entre os órgãos, um interno da UES já foi solto. Hoje, ele e a família estão sendo atendidos num Caps (Centro de Atenção Psicossocial). Um dos profissionais envolvidos no processo disse que o jovem está evoluindo e em segurança, mas não quis dar maiores detalhes para não prejudicar o tratamento.
Champinha, então, também pode ser solto? Como define Ari Friedenbach, o assassino de sua filha 20 anos atrás está numa espécie de “limbo”. Se seu cúmplice Pernambuco tivesse sido diagnosticado com algum transtorno de saúde mental (nunca foi), ele teria sido encaminhado para um HCTP (Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico), unidade do sistema penitenciário. Mas o ECA não prevê nada semelhante para crianças e adolescentes que só podem ser internados e interditados (cumprindo medida socieducativa ou não) a pedido dos pais e responsáveis ou do Ministério Público (como no caso de Champinha) em unidades terapêuticas, o que ficou provado que a UES não é.
Envolvidos nas discussões sobre o fim da UES lembram que o Estatuto da Pessoa com Deficiência, instituído em 2015, estabelece, entre outras coisas, que a pessoa com deficiência – inclusive com transtornos mentais como Champinha foi diagnosticado – tem direito à reabilitação até conseguir sua autonomia e participação social. Mas também recordam que pedidos para colocá-lo em regime ambulatorial sempre foram seguidamente negados, inclusive por tribunais superiores.
Para tirar Champinha deste limbo, o primeiro desenho do acordo era encaminhá-lo para tratamento em unidade psiquiátrica, sem escolta de policiais ou agente penitenciários – opção que ainda enfrenta resistência do MP e no próprio Judiciário. Já foi aventada a hipótese de transferência para o Hospital de Custódia de Taubaté – mas, novamente, foi lembrado que a unidade é para presos condenados e Champinha não foi sentenciado.
O limbo é reforçado pelo sigilo do processo porque, por mais surreal que possa parecer, o situação de Champinha agora está entregue a uma Vara de Família. Atual responsável pela defesa de Roberto, o defensor público Marcelo Dayrell não quis comentar sobre o processo alegando segredo de Justiça: “casos em que há interdição cumulada com pedido de internação compulsória dizem respeito ao estado jurídico da pessoa, tratado, portanto, como sigilo na Vara de Família”. Por meio da defensoria, a mãe de Champinha, Maria das Graças, 62 anos, também disse que prefere não se pronunciar. A reportagem também procurou a mãe de Felipe, Lenice Caffé, 71, que não retornou aos contatos.
Procurado para falar sobre o acordo, por Lei de Acesso à Informação (LAI), o diretor técnico de Saúde da UES Ivis Bertin informa que não tem conhecimento do acordo celebrado e homologado entre a Secretaria e a Defensoria no tocante ao futuro da UES, e que a mesma segue atendendo e cumprindo as determinações judiciais até a presente data.
A pergunta sobre o destino de Champinha tem a mesma resposta do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Ministério Público: não podem se manifestar porque o caso está em segredo de Justiça. Ele é tratado como adulto; um adulto sem condenação, interditado por transtornos mentais por decisão de um Juizado de Família – mas, diferentemente da imensa maioria dos casos semelhantes tratados pelas Varas de Famílias, está internado em uma unidade com muros altos e guardada por agentes penitenciários.
A promotoria de Justiça de Embu-Guaçu, natural dos procedimentos de interdição e internação, segue com o mesmo discurso: diz que os processos estão sob segredo de Justiça, e que, ao menos por enquanto, ainda não há uma definição quanto à questão da desinternação – soltura, libertação, em outras palavras – de Champinha.