Caso Champinha: laudos divergentes e internação perpétua

Caso Champinha: laudos divergentes e internação perpétua

Autor de crimes bárbaros recebeu diagnósticos de retardo mental a transtorno psicossocial, mas nunca passou por tratamento adequado

Por Luiza Souto | ODS 16 • Publicada em 16 de outubro de 2023 - 23:27 • Atualizada em 14 de março de 2024 - 11:54

Vinte anos depois do assassinato brutal de Liana Friedenbach e Felipe Caffé, a decisão iminente sobre um novo destino de Roberto Aparecido Alves Cardoso, conhecido como Champinha, que, aos 16 anos, confessou os crimes de sequestro, estupro. tortura e homicídio, levanta também a discussão sobre sua saúde mental.  Foram laudos e diagnósticos as bases para sua internação desde os 20 anos em uma unidade de saúde que mais parece uma prisão e onde ele poderia cumprir uma internação perpétua caso o espaço não fosse tão irregular que, hoje, o Judiciário, a Defensoria, o Ministério Público e a Secretaria de Saúde de São Paulo estão preparando seu fechamento definitivo.

Leu essas? As reportagens da série especial O destino de Champinha, 20 anos depois do assassinato de Liana e Felipe

As atrocidades confessadas por Champinha causaram comoção nacional e discursos inflamados pela redução da maioridade penal mas, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o jovem Roberto deveria estar em casa desde 17 de novembro de 2006, quando completou três anos de medida socioeducativa. Apenas em caso de doenças mentais, o jovem em conflito com a lei pode ser interditado para acompanhamento psiquiátrico, sob um plano de desinternação. Interditar e internar foi a decisão da Justiça, a pedido da promotoria da Infância e da Adolescência, pouco antes de Champinha completar 21 anos.

Mas como era sua saúde mental? Quando deu entrada na antiga Febem – chamada Fundação Casa a partir de mudanças realizadas em 2006 -, ele teve acompanhamento de psiquiatras do Programa de Psiquiatria e Psicologia Forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (IPQ-HCFMUSP). Após cerca de 10 exames, os profissionais pontuaram que ele tinha retardo mental, mas não apresentava transtornos mentais que determinassem a necessidade de internação. Ele seguiu junto aos demais internos da Febem: sem nenhum registro de violência contra os colegas.

Quando a imprensa lembrou que Champinha estava prestes a completar os três anos de medida socioeducativa, outros órgãos e peritos oficiais passaram a analisá-lo também, como o Instituto de Medicina Social e Criminalística de São Paulo (Imesc) e o Instituto Médico Legal. Foi o IML que, em 2006, o diagnosticou como “Transtorno Orgânico de Personalidade”, e recomendou sua internação psiquiátrica por ser “um indivíduo de alta periculosidade”.

O laudo do Imesc apontou Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS) e também que a doença não tem cura: e recomendava que, para atender pacientes com esse diagnóstico, era preciso um aparato que atuasse como continente/contenção. No Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria, o TPAS é nomeado como psicopatia, sociopatia ou transtorno dissocial de personalidade, sem cura.

Champinha está desde 2007 em unidade experimental: nem hospital psiquiátrico nem cadeia
Champinha está desde 2007 em unidade experimental: nem hospital psiquiátrico nem cadeia

Numa entrevista ao jornal O Globo em 2017, o psicólogo Antônio de Pádua Serafim, coordenador do IPQ-HCFMUS na época, confirmou que não encontrou nenhum transtorno mental que justificasse os crimes de Champinha. “Mas a Justiça insistiu, e outro profissional da área médica deu um diagnóstico que é usado até hoje”, disse Serafim na entrevista.

O Ministério Público uniu o laudo de TPAS ao extenso histórico problemático do jovem para pedir sua interdição civil, com internação psiquiátrica compulsória: mostrou que ele foi reprovado cinco vezes na terceira série primária até desistir de estudar, que usou drogas, tinha uma avó com problemas psiquiátricos, familiares com antecedentes criminais.

A ideia inicial da promotoria era colocar Champinha na Unidade Prisional Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté, interior de São Paulo. O problema é que, de acordo com a lei, os hospitais de custódia são para adultos que cometeram crime: o pedido foi negado pelo juiz, que mandou o autor dos crimes seguir na Fundação Casa até a Secretaria de Saúde arrumar um local considerado adequado para tratamento.

Em maio de 2007, após fugir e ser recapturado no dia seguinte, o juiz Trazíbulo José Ferreira da Silva, da Vara de Execuções da Infância e da Juventude, aceitou pedido do Ministério Público e deu uma medida de proteção para que ele continuasse internado, mas na UES, inaugurada meses antes, ainda sem equipamento e equipe médica. Sua interdição pela Vara da Família veio em novembro do mesmo ano por decisão da juíza Patrícia Padilha, da Vara Distrital de Embu-Guaçu, com base no diagnóstico de TPAS.

Nos 16 anos em que ele está internado lá, apenas outros 13 egressos do sistema socioeducativo, todos sem plano de desinternação, foram encaminhados pela Justiça para a unidade, que tem capacidade para 40 internos.

Champinha, cigarro na boca, aos 32 anos, em 2019, na UES, ao lado de outro interno: autor de crimes está, desde 2007, em unidade que não é nem hospital psiquiátrico nem cadeia (Reprodução: TV Record)

Sem resposta ao tratamento

Defensores e advogados – não apenas de Champinha, mas de outros internados – sempre protestaram alegando que a unidade é de “privação de liberdade” e não de tratamento psiquiátrico. E uma privação de liberdade sem perspectiva de revisão o que equivaleria a uma sentença perpétua.

Em 2013, o STJ negou habeas-corpus para o autor do crime bárbaro em Embu-Guaçu impetrado pelo seu advogado à época, fundamentado na irregularidade da UES. “Tratamento não houve e não há, mas em troca, cerca de 15 agentes penitenciário administram a unidade de saúde. Não é estabelecimento penal, não é socioeducativo. Não se abre nenhuma possibilidade fora dela”, sustentava o pedido de habeas-corpus.

Conclui-se que seu comportamento mantém-se imprevisível em relação à agressividade verbal ou física, compatível com diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial. Recomendável ambiente assistido com segurança 24 horas e sistema de saúde multidisciplina

Laudo sobre Champinha de 2020

O ministro-relator, Luiz Felipe Salomão sustentou que o estado não poderia ser “mero espectador diante de quem coloque em risco a si e a outros”. A decisão foi alvo de recurso, julgado pelo STF em 2015: novamente a liberação de Champinha para tratamento ambulatorial foi negada. Nos dois casos, a defesa anexou a argumentação sobre as irregularidades o laudo do IPQ-HCFMUSP; nas duas vezes, os representantes do Ministério Público apresentaram o diagnóstico de TPAS e os seus laudos. Em 2019, ele e outros internos chegaram render dois agentes para tentar fugir usando um estilingue e um objeto pontiagudo, mas foram detidos e, depois, absolvidos pela Justiça das acusações de motim, ameaça e dano qualificado.

A reportagem do #Colabora teve acesso a uma avaliação médico-psiquiátrica-psicológica de Roberto Aparecido Alves Cardoso, feita em agosto de 2020, quando ele tinha 33 anos. O documento, assinado por dois psiquiatras, relata que Champinha promove brigas com outro interditado na UES, e que ele se vangloria dos assassinatos que cometeu, dizendo que nenhum paciente da unidade tem mais crimes e mais projeção na mídia.

Lê-se, no laudo, que “o quadro clínico se mantém inalterado e a resposta psíquica ao tratamento inexistente. (…) Conclui-se que seu comportamento mantém-se imprevisível em relação à agressividade verbal ou física, compatível com diagnóstico de transtorno de personalidade antissocial. Recomendável ambiente assistido com segurança 24 horas e sistema de saúde multidisciplinar”.

Uma profissional que trabalhou na UES discorda, e diz que, nos dois anos que conviveu com Champinha, o interno tinha bom comportamento, e que, inclusive, negou ter cometido crimes: disse que os confessou por ter sido torturado pela polícia. Outra funcionária ligada à UES colocou em xeque os laudos emitidos por profissionais que atuam no local. “Por aqueles relatórios, você não tira ninguém”.

 

Luiza Souto

Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.

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