Ataques a jornalistas e redes de desinformação ameaçam democracia nas Filipinas

À frente de cartaz com a mensagem “Tire as mãos da imprensa”, a jornalista Maria Ressa dá entrevista após ser condenada por “ciber-difamação”: democracia e jornalismo sob ataque nas Filipinas (Foto: Ted Aljib/AFP)

Editora de site, processada e condenada, alerta em seminário: "isso pode estar chegando a uma democracia perto de você - se ainda não chegou"

Por #Colabora | ODS 16 • Publicada em 22 de julho de 2020 - 20:06 • Atualizada em 27 de outubro de 2021 - 08:19

À frente de cartaz com a mensagem “Tire as mãos da imprensa”, a jornalista Maria Ressa dá entrevista após ser condenada por “ciber-difamação”: democracia e jornalismo sob ataque nas Filipinas (Foto: Ted Aljib/AFP)

Nos últimos dois anos, a jornalista Maria Ressa, fundadora, editora executiva e CEO da Rappler – uma das principais organizações de notícias on-line das Filipinas – enfrentou oito mandados de prisão com acusações que vão de difamação a fraude fiscal, numa clara tentativa de intimidação da imprensa na escalada autoritária promovida pelo governo do presidente Rodrigo Duterte. “Você precisa olhar para as Filipinas porque nosso presente distópico é para onde você está indo. Isso está chegando em breve a uma democracia perto de você – se ainda não chegou”, alertou Ressa na primeira palestra do Simpósio Internacional de Jornalismo Online (ISOJ), organizado pelo Knight Center,  programa de extensão e capacitação profissional para jornalistas na América Latina e no Caribe.

(Maria Ressa foi uma das vencedoras do Prêmio Nobel da Paz 2021, ao lado do jornalista russo Dmitry Muratov. A academia sueca, ao divulgar os vencedores na sexta-feira, 08/10, explicou que prêmio foi concedido “pelos esforços de salvaguarda da liberdade de expressão, pré-condição para a democracia e paz duradouras” dos dois jornalistas. “A senhora Ressa e o senhor Muratov recebem o Prêmio Nobel da Paz pela corajosa batalha pela liberdade de expressão nas Filipinas e na Rússia”, disse Berit Reiss-Andersen, do Comitê Nobel norueguês. “Ao mesmo tempo, eles representam os jornalistas que lutam por esse ideal num mundo onde a democracia e a liberdade da imprensa enfrentam condições cada vez mais adversas”, acrescentou*).

Em junho de 2020, Ressa e Reynaldo Santos Jr., um ex-colega de Rappler, foram condenados por “ciber-difamação”,  que pode render a ambos seis anos de prisão. A lei da “ciber-difamação foi promulgada em 2014 mas os jornalistas foram condenados por fatos ocorridos em 2012. “A lei está sendo usada como arma contra a imprensa nas Filipinas por um governo autoritário que não admite a crítica”, afirmou Maria Ressa. A editora do Rapler e seu colega foram liberados sob fiança e aguardam o julgamento de recurso em liberdade. “Não vamos nos esquivar, não vamos nos esconder; vamos aguentar firmes”, disse a jornalista em um documentário sobre os primeiros anos de Rodrigo Duterte como presidente das Filipinas – o mandato termina em 2022 – que está prestes a ser lançado nos Estados Unidos.

“Sentimos que estamos no limite de nossos direitos constitucionais, sentimos o poder chegando até nós. Mas, se você deixar esse limite ser ultrapassado, não poderá recuperar esse terreno. Desde então, esse é o nosso grito de guerra ”, explicou Ressa, durante a palestra no ISOJ 2020, que está sendo realizado virtualmente pela primeira vez desde sua criação em 1999.  No painel “O impacto da tecnologia na democracia”, desenvolvido, na segunda (20/07) com mediação do jornalista Reg Chua, editor-gerente da Reuters, a filipina de 56 anos afirmou que os ataques contra ela e outros jornalistas chegaram na situação atual de perseguição legal através de um processo em que as mídias sociais foram usadas como arma. “A transformação das mídias sociais em arsenal começa com ameaças de morte e mensagens de ódio, mas depois pode evoluir para complexas redes de desinformação que podem, efetivamente, influenciar o comportamento de pessoas”, denunciou Maria Ressa que, na quarta, voltou ao tribunal em Manilla para se declarar inocente em mais um processo.

ali, nas redes sociais, que o incitamento ao ódio e a criação de redes de desinformação começa. É assim que você cria realidades alternativas, é assim que você faz uma mentira parecer realidade, é assim que a democracia vai morrendo por  mil cortes

Como  lembrou a jornalista, os métodos do governo filipino podem estar “numa democracia perto de você”. O Brasil, desde o início do governo Bolsonaro, tem assistido a uma escalada de ataques a jornalistas – principalmente, mulheres – por parte do presidente, de seus filhos e de seus aliados. As agressões digitais e as mensagens de ódio alcançaram também o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, que agora investiga redes de fake news pelos ataques. Recentemente, o governo pediu abertura de processo com base na Lei de Segurança Nacional, criada na ditadura militar, contra o jornalista Ricardo Noblat e o cartunista Aroeira, por conta de charge criticando o presidente, e contra o colunista da Folha Hélio Schartzmann, que publicou artigo com o título “Porque torço que Bolsonaro morra”.

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Nas Filipinas, os ataques a Maria Ressa e o Rappler, críticos de Duterte desde a campanha, começaram assim que o presidente se instalou no poder. Uma das primeiras coisas a circular na internet foi a ideia de que o jornalismo deveria ser equiparado à criminalidade, com campanhas de mídia social com mensagens como “Maria Ressa não é jornalista, é criminosa”. Ela, inicialmente, achou aquilo ridículo. Mas logo começou a perceber que as pessoas começaram a esquecer sua vida profissional de 35 anos, com duas décadas como correspondente da CNN no Sudeste Asiático, e não contestar as falsas acusações feitas nas redes sociais.  “Quando uma mentira é repetida tantas vezes, as pessoas começam a duvidar da verdade”, lembrou a  jornalista.

A jornalista Maria Ressa em debate no Festival de Filme de Sundance, em janeiro, quando foi apresentado documentário sobre as Filipinas: "Ditadura disfarçada de democracia" (Foto: Ernesto Distefano/AFP)
A jornalista Maria Ressa em debate no Festival de Filme de Sundance, em janeiro, quando foi apresentado documentário sobre as Filipinas: “Ditadura disfarçada de democracia” (Foto: Ernesto Distefano/AFP)

Esse processo de ataques e mensagens de ódio evoluiu nos anos seguintes, quando o próprio presidente e integrantes do governo passaram a repetir as mentiras. Em 2018, houve uma instrumentalização da lei como arma: foram abertos 11 processos e uma investigação contra o Rappler. Em 2019, Ressa teve contra ela oito mandados de prisão e chegou a ser efetivamente presa duas vezes – nas outras, pagou fiança. Além da condenação de junho, há outros seis processos ainda em andamento contra a jornalista e seu site. “Todas essas ações reforçam o ponto de vista do governo: jornalista é igual a criminoso, explicou Maria Ressa.

Cerco aos veículos de comunicação

O governo Duterte se notabilizou pelas centenas de mortes causadas por sua guerra contra as drogas. O Rappler vem sendo uma das principais vozes, criticando o atropelo dos direitos humanos no combate ao crime. Duterte – que chegou a se comparar a Hitler dizendo que gostaria de matar três milhões de viciados como o ditador alemão fez com os judeus – tornou o site e seus jornalistas alvo de ataques digitais. Maria Ressa explicou que três coisas vêm afetando, hoje, a equipe do Rappler. Primeiro, a campanha de disseminação do medo feita pelo governo e as ameaças de morte a jornalistas e cidadãos durante a pandemia – como exemplo, ela lembrou que um filipino foi assassinado por militares por não usar máscara facial. O segundo é o fechamento pelo Congresso, dominado por Duterte, do maior canal de notícias do país (ABS-CBN, com dezenas de emissoras de TV e rádio – o presidente não gostava do jornalismo crítico da emissora e usou seu poder para impedir a renovação da concessão. E, finalmente, destacou a jornalista, a lei antiterror baixada pelo governo que terá grandes implicações na liberdade de imprensa. “Com essa lei, um pequeno grupo de ministros pode enquadrar alguém – um crítico, um jornalista – como um terrorista. E, com isso, podemos ser presos sem mandado e mantidos no cárcere por até 24 dias”, afirmou Ressa sobre a lei antiterror.

Se os cidadãos não podem ter acesso aos fatos, se não conseguem identificar a verdade, como vão tomar decisões para votar? Se as pessoas foram manipuladas, como podemos realmente ter democracia?

A jornalista destacou ainda que o papel de empresas americanas de mídia social – como o Facebook – não deve ser ignorado nesse processo. “É ali, nas redes sociais, que o incitamento ao ódio e a criação de redes de desinformação começa”, criticou Maria Ressa. “É assim que você cria realidades alternativas, é assim que você faz uma mentira parecer realidade, é assim que a democracia vai morrendo por  mil cortes”, acrescentou a editora do Rappler, citando o título do documentário – Mil Cortes – sobre o governo Duterte. Ressa mostrou dados sobre como jornalistas e organizações de notícias foram atacados nas Filipinas.

Ela disse que cobrir a campanha de Duterte foi um momento difícil para os jornalistas, mas os ataques pioraram quando a guerra às drogas começou – e as críticas da imprensa à violação dos direitos humanos também.  Os ataques também evoluíram de ameaças de morte e assédio sexual a redes complexas de desinformação, com um esforço ativo para desumanizar os jornalistas por meio de memes. Ressa mostrou alguns exemplos das mensagens de ódio que recebeu nas quais seu eczema é usado para atacá-la, chamando-a de “rosto escroto” e outras nas quais ela se transforma em animal. “Este é o movimento em direção à desumanização. Vimos coisas assim, por exemplo, quando a Alemanha nazista estava se concentrando nos judeus. Agora, esse é o foco dos jornalistas nas Filipinas ”, disse Maria Ressa. “Preste atenção na desumanização, porque quando você é desumanizado, alguém pode fazer qualquer coisa com você: você não é uma pessoa”.

Para a jornalista, os ataques têm dois objetivos básicos: fazer com que os jornalistas duvidem de si mesmos e do trabalho que fazem, atacando-os em nível pessoal, e eliminar o que dizem para que apenas uma narrativa – a oficial – possa prevalecer.  A principal crítica de Maria Ressa às plataformas de mídia social é que essas mentiras, discursos de ódio e outras formas de desinformação estão sendo disseminadas sem nenhum tipo de controle. “O produto que produzimos – jornalismo – por mais maravilhoso que seja, não se espalha tão rápido quanto a mentira obscena”, destacou, lembrando que as plataformas têm responsabilidade neste processo.

Ressa destacou ainda que essas redes de desinformação ameaçam a própria democracia. “Se os cidadãos não podem ter acesso aos fatos, se não conseguem identificar a verdade, como vão tomar decisões para votar? Se as pessoas foram manipuladas, como podemos realmente ter democracia?”, questionou a editora do Rappler, explicando ainda as razões que levaram muitos jornalistas filipinos a assinarem uma carta de protesto, ao lado de políticos, contra a lei antiterror de Duterte. “Quando é uma batalha pelos fatos, as batalhas pela verdade, os jornalistas devem ser ativistas”, defendeu.

Maria Ressa acredita que os jornalistas não podem recuar. “Basicamente, temos nas Filipinas uma ditadura disfarçada de democracia. E o que você vai fazer? Ou você desiste ou você resiste, mantendo aquele limite. Mas qual é o custo de fazer isso?”, pondera a editora do Rappler, muito aplaudida, enquanto a sua frase ficava ecoando nos ouvidos de muitos jornalistas de todo o mundo. “Isso está chegando em breve a uma democracia perto de você; se ainda não chegou”.

*Reportagem atualizada em 08/10/2021 para acrescentar o Prêmio Nobel recebido por Maria Ressa

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Texto produzido pelos jornalistas da redação do #Colabora.

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