ODS 1
Assassinato de líder escancara clima de guerra contra quilombolas no Maranhão
Executado com oito tiros em abril, Edvaldo foi a sexta vítima fatal, desde 2020, da guerra enfrentada pelos quilombos do estado
Conflitos sócio ambientais tomam forma agora mesmo no Maranhão. Conflitos que ocorrem há décadas e têm causado uma série de violações aos direitos humanos. Assassinatos, ameaças de morte, invasões, grilagem, desmatamento e até mesmo a criminalização de povos quilombolas, indígenas e advogados relacionados às causas de defesa dos territórios ameaçados: este é um trecho resumido do relatório da Fetaema (Federação dos Trabalhadores Rurais e Agricultores Familiares do Estado do Maranhão) entregue às autoridades, que atribui ainda o clima de violência ao avanço do agronegócio predatório que até mesmo privatiza os corpos d’água proibindo o acesso das populações locais aos recursos naturais.
No dia 29 de abril deste ano, foi assassinado Edvaldo Pereira Rocha, uma das principais lideranças quilombolas do Estado do Maranhão. Edvaldo levou oito tiros no Bar Nezito, no km 26 da MA 127. Tinha oito filhos e morava com a esposa, a cunhada, o sogro. Exigia a expulsão de invasores do Quilombo do Jacarezinho, que entram em alta velocidade, com suas caminhonetes e tratores, para retirar coco babaçu e deixam um rastro de destruição na mata.
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O assassino de Edvaldo foi preso no começo de de junho. A polícia chegou a Karlison da Silva Santos graças a imagens de câmera de segurança, mas ainda investiga quem foi o mandante do assassinato do líder quilombola já que o crime é caracterizado como conflito por terras.
No mesmo dia da prisão de Karlison, uma mulher que não podemos identificar, moradora do Quilombo do jacarezinho, fez um pedido de ajuda via WhatsApp para lideranças e ONGs apoiadores da causa quilombola. “Boa tarde, eu gostaria de pedir ajuda pra que façam alguma coisa. Sou moradora há 29 anos do Jacarezinho e acabei de chegar do local onde estão desmatando. Ajudem porque essas pessoas não estão brincando. Elas tão desmaiando o local de onde os moradores tiram seu sustento. Eles tão derrubando as palmeiras de onde o povo extrai o coco babaçu. Eu estive no local e é muito perigoso. Eu fui com alguns membros da associação. Nós não temos mais paz, não dormimos sossegados e isso já passou de todos os limites e eu nem peço mais ajuda. Eu peço socorro porque não há mais nada que a gente possa fazer. Só a justiça”.
As terras quilombolas são áreas públicas do Estado do Maranhão e, por isso, precisam da titulação, processo sob responsabilidade do Iterma (Instituto de Terras do Maranhão), que tem a obrigação legal de reconhecer e legalizar terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. As terras são alvo da cobiça de grileiros e, nos últimos anos, o clima de violência só vem aumentando.
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Veja o que já enviamosAntes de Edvaldo, outras cinco lideranças quilombolas foram assassinadas desde 2020 : Celino Fernandes, 57 anos, do Quilombo Cedro em 5 de Janeiro de 2020 – o processo está parado desde agosto de 2021; Wanderson de Jesus Rodrigues Fernandes, 26 anos, filho de Celino, do Quilombo Cedro, assassinado no mesmo dia do pai; Antônio Gonçalo Diniz 70 anos, do Quilombo Flexeiras, em 2 de julho de 2021 – o inquérito policial não foi concluído e nenhum autor do assassinato sequer foi identificado; João de Jesus Moreira Rodrigues, 51 anos, do Quilombo Santo Antônio, em 29 de outubro de 2021 – o inquérito policial não foi concluído e nenhum autor da morte identificado; José Francisco Lopes Rodrigues, 55 anos do Quilombo Cedro, em 3 de janeiro de 2022 – o Inquérito também não foi concluído e nenhum autor identificado. Só no Município de Arari, onde fica o Quilombo do Jacarezinho e o Cedro, pelo menos 10 pessoas, estão ameaçadas de morte: todos quilombolas.
A viúva de Edvaldo, Maria Rocha, ainda abalada, conta o momento em que recebeu a ligação da notícia do assassinato do marido. “Eu tava aqui em casa; era meio dia, minha irmã tinha acabado de conversar com ele por telefone. Ligaram logo depois avisando que tinham matado ele. Eu tava vindo de buscar os meninos da escola. Fiquei normal e consegui me controlar. Mandaram uma foto e não era dele. Rezei pra não ser verdade. Depois mandaram outra foto, mas não queriam me mostra. Eu disse que tinha que ver. Tinha que identificar. Era ele mesmo”, relata.
Integrante da coordenação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Maranhão, Márcia Palhano denuncia a situação de descaso e medo que o povo quilombola vêm passando passado. “Estamos muito agradecidos por ter acontecido essa prisão (do assassino de Edvaldo) e esperamos que a gente possa chegar aos mandantes. Isso representa muito nesse cenário de conflito no campo aqui no Maranhão onde a impunidade tem sido a certeza para aqueles que mandam matar. São devoradores do meio ambiente que avançam sobre o modo de vida das comunidades”, afirma.
Para Marcia Palhano, o Maranhão vive uma realidade de guerra no campo. “Nestes últimos cinco anos foram 25 camponeses que tombaram no campo e esses que tombaram resistiam a esse modelo de desenvolvimento depredador. São 11 lideranças incluídas no processo de proteção só ali, na região do Jacarezinho. Então essa prisão dá uma esperança na gente de que o estado comece a atuar de forma mais efetiva”, acrescenta .
De acordo com o relatório da Fetaema, a criminalização do povo quilombola também é constante, com prisões sem apresentação de mandados nem identificação das autoridades responsáveis. A entidade denuncia ações criminosas como a que aconteceu no Quilombo da Barra da Teresa no dia 17 de março de 2016, quando um grupo de policiais fardados, escoltando tratores para a derrubada de casas dos moradores da comunidade, invadiu o quilombo fazendo prisões sem mandado para executar uma ordem de despejo sem autorização de qualquer órgão do estado.
Espancamentos e detenções foram feitas, mas a comunidade resistiu fazendo com que os invasores recuassem. “Eles vieram aqui, muito policial, duas viaturas e um bocado de motos. Pegaram meu filho e vieram derrubando o arame do cercado da gente. A policial mulher me pegou pelo braço e me deu tapão na minha cara. Algemaram meu filho, algemaram meu neto, fazendo chacota. Voltaram depois pra fazer bagunça quando só tava as mulheres. Quase todo dia vem jagunço aqui com as armas grandes pra empatar nossa roça”, conta dona Antônia, de quase 70 anos, que foi espancada e chutada no chão.
O agricultor João Luis, de 47 anos, foi detido sem saber o porquê. Viu uma mulher jogada ao chão e pisada no pescoço por um policial e adolescentes que tiveram seus celulares quebrados e confiscados. “Tava na roça quando vi meio mundo de polícia chegando. Me derrubaram ali no campo e vieram aqui pra dentro de casa, deram na minha mãe, deram na minha tia, na minha irmã. Jogaram spray de pimenta na gente. Pegaram nossos facões de capinar pra dizer que era arma branca e iam levando a gente pra Caxias, mas soltaram no meio do caminho”, denuncia. O resultado da ação indevida foi a exoneração de todos os envolvidos. Mas a perseguição ao quilombo continua mesmo com o direito à terra garantido por lei.
Com a guerra pela terra longe de acabar, líderes quilombolas, ONGs e defensores dos direitos humanos no Maranhão e fora do estado começam uma nova etapa na articulação da luta pelo direito de plantar e pela vida. “Edvaldo Rocha é um mártir da caminhada. Sua causa era coletiva em defesa da vida por justiça, pelos direitos da terra e de seu povo. Eles pensavam que tirando a vida de Edvaldo calariam nossas vozes e manteriam o povo escravo do cativeiro do agronegócio. Se enganaram. Edvaldo Rocha é semente”, afirma Antônia Calixto, Toinha como prefere ser chamada, também integrante da equipe de agentes da CPT no Maranhão.
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João Paulo Guimarães, paraense de 43 anos, é foto documentarista e
foto jornalista freelancer para as agências AFP e Pública e para os sites Jornalistas Livres, Metrópoles e Projeto Colabora.