Uma vida em torno da Previdência

Foco de incêndio na floresta em São Gabriel da Cachoeira. Foto Chico Batata/DPA

Maioria dos indígenas do Alto Rio Negro depende de benefícios governamentais, como o Bolsa Família

Por Luis Edmundo Araújo | ODS 10ODS 15 • Publicada em 8 de outubro de 2019 - 11:25 • Atualizada em 9 de outubro de 2019 - 12:30

Foco de incêndio na floresta em São Gabriel da Cachoeira. Foto Chico Batata/DPA
Foco de incêndio na floresta em São Gabriel da Cachoeira. Foto Chico Batata/DPA
Foco de incêndio na floresta em São Gabriel da Cachoeira. Foto Chico Batata/DPA

(Irari Ponta, AM) – A cidade de São Gabriel da Cachoeira tem um vasto território floresta amazônica adentro, que engloba oito terras indígenas (Alto Rio Negro, Médio Rio Negro I e II, Cué Cué Marabitanas, Balaio, Amiúm, Rio Xié e Yanomami, onde está o Pico da Neblina, ponto culminante do Brasil com seus 2.995,3 metros de altitude). A cada dez habitantes do município, nove são indígenas, o que equivale, de acordo com o Censo de 2010 do IBGE, a 74% de 41.885 pessoas, incluindo os 26 mil das comunidades, ou aldeias das terras demarcadas e homologadas. São Gabriel da Cachoeira tem o Rio Negro correndo ao lado, barulhento, mas não difere muito, nem em tamanho, de muitas outras cidades do interior do país em seu centro urbano, onde ficam aparentes as agruras da população da floresta, que sustentam o discurso de quem quer explorar a região.

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Vencidas as duas horas e meia de voo desde Manaus, a pobreza se mostra logo na saída do Aeroporto Regional de São Gabriel da Cachoeira (Uaupés), na beira da estrada, na forma de um barracão sem paredes, cujo telhado foi aumentado por lonas estendidas de todos os lados até as fileiras de pedaços de madeira enterrados, que sustentam varais improvisados, lotados. Três sujeitos estão sentados na frente, juntos, como se conversassem, tendo de um lado dois meninos brincando sem camisa, só de short, e do outro o garotinho ainda menor, nu, com a barriguinha proeminente, arredondada. Dentro do barracão, na manhã chuvosa, parecem se comprimir, em redes ou no chão, mais pessoas, todas elas indígenas.

Maioria dos indígenas do Alto Rio Negro vive de benefícios sociais. Foto Luis Edmundo Araújo
Maioria dos indígenas do Alto Rio Negro vive de benefícios sociais. Foto Luis Edmundo Araújo

“Todos são yanomamis ali”, afirma José Ribamar Caldas Lima Filho, chefe do Setor de Planejamento da Coordenaria Regional (CR) Rio Negro da Funai, coordenador substituto e ex-prefeito, o segundo a ser eleito na cidade, em 1988. “Eles vêm por um dia de barco até chegar na estrada, e aí começa a pior fase deles, da estrada pra cá”. Não há rodovia ligando os 852 quilômetros de Manaus a São Gabriel da Cachoeira. Além do avião, as opções são três dias de viagem de barco ou a lancha chamada de expresso, com motor mais potente, que reduz para 24 horas o tempo previsto da viagem entre a capital do Amazonas e a cidade colonizada pelos jesuítas, depois pelos salesianos, que lá chegaram em 1914.

O primeiro boom de crescimento foi no início dos anos 70, com o Programa de Integração Nacional instituído pelo Decreto-Lei 1.106, de 16 de junho de 1970, no governo do general Emílio Garrastazu Médici. “Duas estradas iam passar aqui, uma (BR 307) ia ligar Cucuí, que é na fronteira (tríplice, entre Brasil, Colômbia e Venezuela), ao Acre, passando em São Gabriel. A outra (BR 210) vinha de Macapá, Caracaraí (em Roraima), passava também aqui e ia em direção a Mitú, na Colômbia”, conta Ribamar. São Gabriel da Cachoeira foi o canteiro de obras principal do projeto. A cidade pequena, só com a missão e o internato dos salesianos, passou a receber várias instituições, entre elas as Forças Armadas, que mantêm até hoje presença maciça no município com 150 quilômetros de fronteira com a Colômbia e com a Venezuela. “Chegaram pra fazer esse trabalho, aí foi gente que veio do interior pra cá, pra trabalhar, e a cidade cresceu um pouco”.

As estradas, no entanto, jamais foram concluídas. “Daqui até Cucuí, conseguiu, 205 quilômetros, mas, praticamente, fica uns seis meses parada, lama, chuva. A que vinha de Caracaraí pra cá ficou só duzentos e pouco quilômetros lá, e daqui também só 80 quilômetros, ficaram 600 quilômetros aí que não se ligaram”, explicava José Ribamar, no segundo andar da sede da CR Rio Negro da Funai, enquanto corria o atendimento de rotina no primeiro andar, lotado além do normal naquela manhã de quinta-feira, 23 de maio.

O motivo de tanto movimento, acima da média de 80 atendimentos diários, era o barco do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ancorado um pouco antes da Praia Grande, a principal de São Gabriel da Cachoeira, da qual, com a cheia do Negro em curso, e subindo, não dava pra ver mais nada nem da areia nem dos primeiros, ou últimos, degraus da escada do calçadão. “Apesar de ter uma agência do INSS na cidade, aqui nunca teve um perito”, conta Ribamar, antes de enumerar casos de “mordida de cobra, quebrou o braço, caiu na cachoeira, bateu a cabeça”, comuns, segundo ele, na região. “Como veio agora a doutora no barco, a demanda está sendo muito grande”.

Apesar de ter uma agência do INSS na cidade, aqui nunca teve um perito. Como veio agora a doutora no barco, a demanda está sendo muito grande

Além da perícia para o auxílio-doença, pedidos de registro indígena e declarações de vida, residência ou atividade rural, documentos necessários para a obtenção de algum benefício do governo federal ou estadual, estão entre os serviços mais comuns da CR Rio Negro da Funai. A declaração de residência, por exemplo, era o objetivo do agricultor Samuel Massa Lemos, do povo Tuyuka, do tronco linguístico tukano, que tinha viajado três dias de barco com um grupo de amigos e parentes da comunidade de Pari-Cachoeira, no Médio Itiquié, e reclamava da demora no atendimento, sem atinar com a presença do barco na praia da cidade. “Antigamente não era tão lento pra tirar declaração”.

A espera pelo conserto da ponte no barracão dos yanomami próximo ao aeroporto de São Gabriel. Foto Luis Edmundo Araújo
A espera pelo conserto da ponte no barracão dos yanomami próximo ao aeroporto de São Gabriel. Foto Luis Edmundo Araújo

Pouco versado no português, Samuel deixou para outros em seu grupo a participação maior na entrevista improvisada na entrada da Funai. “Ele tá cortando os benefícios e nossos filhos não vão poder ter bolsa de estudo”, disse, referindo-se a Bolsonaro, Alberto Vaz Pimentel, tukano, 49, professor multidisciplinar do ensino fundamental. “Não estou gostando nada dessa previdência. Não vou chegar aos 75 anos para me aposentar. Com sessenta, a maioria aqui já está no céu”.

Quando não está dando aulas para alunos da 3ª à 5ª séries, Alberto é agricultor, trabalha nas roças perto de sua comunidade. Na Funai, ele também queria a declaração de residência, almejando o Cartão Verde, benefício do governo estadual que paga dois salários mínimos a quem for considerado guardião da floresta, para incentivar a preservação da Amazônia. “Só parente esperto que consegue isso”, dizia o indígena do povo Tukano.

Os benefícios governamentais são importante fonte de renda também em Irari Ponta, comunidade na região do Baixo Rio Içana, afluente do Negro, a três horas de barco de São Gabriel da Cachoeira, com o mais rápido dos motores. O cacique da aldeia, Ovídio Júlio Cordeiro Pereira, 59 anos, vive da caça, da pesca, da plantação e do auxílio-doença de R$ 400 mensais desde que perdeu o dedo mínimo da mão esquerda, pescando. A mulher dele, Leonilda, 55, recebe R$ 950 de aposentadoria. Ela só fala baniwa e se manifestou durante a conversa com o marido uma vez, ao passar em frente à porta aberta da casa dizendo a frase da qual só deu para entender o nome do atual presidente. “Ela tá perguntando se o Bolsonaro vai acabar com a aposentadoria dela”, traduziu Ovídio, que, mais que cacique, é chamado de capitão. A filha, mãe de cinco dos dez netos do casal, mora na casa ao lado, e o outro filho, pai dos outros cinco, é professor na comunidade da Guia.

No mesmo grupo na Funai de São Gabriel da Cachoeira, Neli Pimentel Fontes, também do povo Tukano, reforçava o discurso em prol da Previdência, da aposentadoria e dos benefícios sociais. “Trabalhamos mais que os brancos, e o branco fala que somos preguiçosos, mas não faz esforço como nós, porque fazemos tudo manualmente”. Nascida em Pari-Cachoeira, Neli está morando em São Gabriel porque é servidora municipal, uma das raras oportunidades de emprego na região. “A não ser quem é servidor ou militar, os demais aqui vivem de auxílio mesmo, 90% dos indígenas vivem de benefícios como o bolsa-família”, calcula José Ribamar.

Outro cálculo explica o barracão dos yanomami e o resto da população itinerante da cidade. “O cara gasta três dias pra vir da comunidade dele até aqui, pra receber trezentos, quatrocentos reais, que não dá nem pra pagar a gasolina da volta. Aí fica na cidade, esperando ajuda, vai na Prefeitura, vai na Funai, vai no Exército…”, explica o coordenador em exercício da Funai no Rio Negro. No caso dos yanomami do barracão próximo ao aeroporto, a espera era também pelo conserto de uma ponte da estrada. “Eles agora estão aguardando porque a ponte quebrou, não tem como eles voltarem, aí pede alimentação, pede tudo mais”.

Tanta carência encorpa o discurso de quem considera as demarcações de terras indígenas obstáculos a melhorias para a região, já que as homologações, por enquanto, dificultam, em nome da preservação, investimentos como a abertura de estradas vicinais, prioridade do mandato do vereador Basílio Rodrigues (PSL). “Não quero saber se tá demarcada ou não, contanto que pelo menos solucione o nosso sofrimento, já foi óbito em várias comunidades lá nas cachoeiras, isso é impossível”, afirma o vereador. Na Funai, o professor agricultor Alberto, Tukano, concordava com o vereador. “Abrir estradas, isso sim, sou a favor, para o povo usar, ajudar no sustento das nossas famílias, fazer roça”.

Segundo Basílio Rodrigues, falta investimento para produzir no município e os benefícios sociais, nesse caso, atrapalham. “A pessoa começa a pensar no Bolsa Família, não tem mais o pensamento de produzir, apesar que eles são agricultores. Eles já tendo o Bolsa Família, então pronto, já contam com isso, e chega aqui, bloqueado, cancelado, ele começa a passar várias necessidades, de alimentação, gasolina para o retorno, não tem dinheiro pra voltar”, disse o vereador, em seu gabinete na Câmara Municipal, horas antes da sessão plenária de toda noite de quinta-feira.

Samuel, Alberto e uma parente da comunidade de Pari-Cachoeira, com o neto, na sede da Funai do Rio Negro. Luis Edmundo Araújo
Samuel, Alberto e uma parente da comunidade de Pari-Cachoeira, com o neto, na sede da Funai do Rio Negro. Luis Edmundo Araújo

Na sessão ordinária da Câmara de 23 de maio, o tema principal foi o pedido de instauração de CPI para investigar o fornecimento de merenda escolar nas comunidades, feito pelo vereador Lindelbar Garrido (PRB). “Já passaram quatro ou cinco prefeitos, sempre chega atrasada, faltando 15 dias para entrar nas férias, primeiro semestre, aparece merenda escolar. Subi semana passada para minha região (Alto Içana, a três dias de barco de São Gabriel), ainda não chegou até a última escola”, contou Basílio, em seu gabinete. Convidado a prestar depoimento na Câmara, o secretário municipal de Educação, Rosivaldo Brazão Lopes, conseguiu não responder diretamente a qualquer pergunta feita a ele. “Cada departamento da secretaria se responsabiliza pela parte dele, e eu direciono a palavra a quem seriam responsáveis pelo setor”, disse o secretário, na primeira resposta e da mesma forma, com poucas diferenças, nos questionamentos seguintes, o que provocou reprimendas públicas de dois vereadores. “Um secretário precisa acompanhar, não só delegar aos outros”, disse Otacila Lemos (DEM). “O senhor demonstra despreparo total na pasta”, emendou Feliciano Borges (PSL), também conhecido como Sargento Borjão. No fim da sessão, que contou com a presença de 12 dos 13 vereadores do município, a CPI foi aprovada por unanimidade.

Basílio acredita que os inúmeros obstáculos a investimentos em terras demarcadas têm reduzido o apoio às demarcações entre os próprios moradores das terras indígenas homologadas. “Vejo a minoria defendendo as demarcações, a maioria já tá tipo fora, quem defende são principalmente ambientalistas”, especula o vereador, para em seguida admitir não saber “como é que fica, assim, certo mesmo, porque a gente não tem como acompanhar quase todo dia as comunidades, é longe pra viajar”.

Se o cacique é chamado de capitão, mais do que pajé, as comunidades do Alto Rio Negro têm pastor, e o posto em Irari Ponta, há 21 anos, é de Hermes Pereira, Baré, que dá seus cultos aos sábados, domingos e às quartas-feiras, na igreja branca, de porta, detalhes e janelas azuis como o nome no alto, Congregação Batista Bíblica Aliança, na entrada virada não para o campo de futebol, como quase todas as outras casas, mas para o Rio Içana. Hermes é favorável à demarcação e concentra suas reclamações contra o prefeito atual, Clóvis Moreira Saldanha (PT), que “não ajuda”. A mulher do pastor, Flávia Santos da Costa, também Baré, já tinha reclamado minutos antes. “A Prefeitura só ajuda comunidade grande, como Boavista”, disse ela, que nasceu na comunidade da Guia e, apesar das dificuldades, não pensa em sair de Irari Ponta. “É difícil roçar essa terra, mas gosto daqui”.

Por ser pequena, Irari Ponta conserva o hábito das refeições coletivas. Principalmente no café da manhã, mas também no almoço ou jantar, todos se encontram para comer, beber e conversar no centro comunitário, ou quase todos, porque não há imposição, nem ordem de alguém para isso, nem nada parecido. Hermes e Flávia tinham a companhia passageira do filho, Jorge da Costa Pereira, 29, que tem uma casa e uma filha de três anos em São Gabriel da Cachoeira, onde tenta tirar a carteira de habilitação, depois de dar baixa do Exército, onde serviu de 2012 a 2018. Enquanto era servido o jantar no centro comunitário, pai, mãe e filho jantavam na cozinha espaçosa da casa da família, com a mesa de oito lugares, a rede pendurada no canto e as estantes de madeira carregadas de potes ou latas de antigas embalagens, encostadas à parede até o fogão de quatro bocas ligado ao botijão de gás.

A casa tem mais duas cozinhas, na verdade barracões, um sem paredes, só com o teto de palha e o forno circular com o buraco para a lenha e a bandeja igualmente redonda em cima, grande, metálica, onde é assado o beiju, também conhecido como tapioca, e é feita a farinha da mandioca brava. A outra cozinha tem outro tipo de fogo artesanal, menor, usado só quando não há gás. Perguntada sobre onde prefere cozinhar, Flávia responde de pronto, sem pensar: “no fogão a gás”, e reclama: “o gás é difícil, toda hora tá faltando”.

Luis Edmundo Araújo

Jornalista, começou como repórter do jornal O Fluminense, de Niterói, e redator da revista Incrível, da Editora Bloch. Trocou tudo pra ser repórter de Cidade do Jornal do Brasil, até sair pra ser repórter da revista Istoé Gente. De 2005 a 2016, foi editor do Jornal do Commercio, editor de Empresas, Economia, Mundo, Rio, SP, Brasília, Minas, Opinião, Direito & Justiça e, principalmente, País. Colaborou com o blog O Cafezinho em 2016 e 2017, e em 2018 participou da aventura da volta do Jornal do Brasil impresso, como editor-assistente de Política. Agora, batalha por uma causa dada como perdida: o jornalismo literário

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