O breu noturno estampa o céu multiestrelado, cuja beleza é vista a olho nu por quem já teve a sorte de vivenciar um descanso ao luar pantaneiro. Recentemente, os astros desapareceram sob a claridade do fogo, que assumiu uma proporção diferente das fogueiras acesas nas rodas de viola ao som de Almir Sater, Paulo Simões e Geraldo Roca, homens que descrevem em letras o majestoso Pantanal sul-mato-grossense. O céu, que antes era apenas mistério e encantamento, nas últimas semanas ganhou uma coloração alaranjada assustadora diante das queimadas. Em meio ao calor das chamas, os primeiros a entrarem em ação para tentar conter a rapidez do arrasamento são os brigadistas voluntários, muitos deles indígenas, população que habita o maior bioma alagado do mundo bem antes dos fazendeiros chegarem.
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Perto da Terra Indígena (TI) Cachoeirinha, em Miranda, o chefe da brigada comunitária indígena Mãe Terra, Caleomar Fonseca Victor, gravou com o celular um vídeo compartilhado com o #Colabora das labaredas consumindo depressa a vegetação. “Espero que a pessoa que colocou esse fogo descontrolado tenha o mínimo de consciência na cabeça. Com esse tempo seco, é um risco grande atear fogo no Pantanal, além de ser um crime. Não sei se fizeram de propósito, aqui é uma área de [capim] braquiária, o fogo alastra facilmente. Vamos fazer o possível para tentar apagar, mas não será simples”, narrou indignado. Depois do breve registro, ele e mais 15 brigadistas enfrentaram uma jornada de 24 horas, com as devidas pausas, apagando os incêndios. Caleomar acredita que, com o passar dos anos, as ocorrências das queimadas estão cada vez mais críticas. Esse fato inclusive o fez querer atuar diretamente não apenas no combate ao fogo, mas conjuntamente na preservação da biodiversidade.
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Veja o que já enviamos“Nossa floresta, nascentes e córregos estavam desaparecendo; esses são pontos em que a comunidade busca alimentos. De lá para cá, conseguimos recuperar o que estava sendo destruído pelo fogo; a atuação na brigada me ajudou a cuidar ainda mais da natureza. Levamos a educação ambiental para dentro das escolas, conversamos com os jovens e sentimos a diferença positiva mesmo com todo enfrentamento diário”, avalia o chefe da brigada ao acrescentar que a maioria das famílias na aldeia ocupa-se profissionalmente com extrativismo e artesanatos. Os ensinamentos absorvidos na brigada voluntária são igualmente compartilhados com os produtores rurais da região, principalmente quando se trata de realizar limpezas adequadas na pastagem.
Há quatro anos, Caleomar e seu time fazem esse importante trabalho voluntário de iniciar as atividades, impedindo que o fogo se alastre até a chegada do Corpo de Bombeiros e da equipe do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
De acordo com os dados atualizados do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ), em todo o Pantanal, mais de 700 mil hectares já foram afetados por incêndios neste ano. A área devastada se aproxima do que foi registrado durante todo o ano de 2023, na faixa de 900 mil hectares.
O Pantanal de Mato Grosso do Sul abrange 9 milhões de hectares, uma área territorial quase do tamanho de Portugal, o que corresponde a 65% da extensão total da região pantaneira, que se estende também pelo Mato Grosso, Paraguai e Bolívia. Dividido em sete sub-regiões – Abobral, Aquidauana, Miranda, Nabileque, Porto Murtinho, Nhecolândia e Paiaguás -, atualmente, o bioma enfrenta a pior estiagem dos últimos 70 anos.
O Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS) apresentou um relatório acerca dos incêndios de grande proporção que tiveram início no Pantanal no período entre 10/05 e 31/06 de 2024. Nele foi revelado que 20 pontos geraram 14 grandes incêndios em uma área queimada de 292,86 mil hectares, os quais acabaram atingindo 177 propriedades rurais, 1 Terra Indígena e 3 Unidades de Conservação, além de incêndios de 39,28 hectares em território boliviano. Vale ressaltar que os números tendem a crescer, pois alguns destes incêndios ainda não foram contidos.
Este ano, segundo o BDQueimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 95% das ignições (início do fogo) ocorreram em especial nas margens de rios, beiras de estradas e em algumas fazendas. A minoria surgiu em parques estaduais de preservação e terras indígenas. Ou seja, não é um evento natural causado por relâmpagos ou combustão espontânea; esse tipo de fogo representa aproximadamente 5% dos incêndios florestais no Pantanal. Em junho, imagens de satélite registraram incêndios na fronteira do Brasil (Corumbá) com a Bolívia (Porto Quijarro e Porto Suarez), em Forte Coimbra (rio abaixo de Corumbá) e na fronteira com o Paraguai.
No contexto de emergência, a equipe de tecnologia do MPMS identificou até agora 11 fazendas localizadas no Pantanal de Corumbá – 70% do Pantanal sul-mato-grossense está em áreas privativas -, onde queimadas não autorizadas podem ter originado incêndios severos, devastando o bioma no início do período de seca. A área queimada em todas as 11 propriedades investigadas abarca em torno de 40 mil campos de futebol.
Na mesma TI Cachoeirinha, outra brigada voluntária se formou em 2022, a Kinikinau. Nela, uma família inteira — avó, pais, filhos e um amigo (sete pessoas) — está unida no combate ao fogo; e para ser brigadista, é necessário ter idade mínima de 18 anos. Em 2020, o pasto da aldeia Mãe Terra foi atingido pelas chamas e, diante do impacto causado, Alencar Leoncio Rodrigues sentiu que era hora de fazer um esforço e liderar o grupo de parentes que, em 2023, conseguiu evitar vários incêndios. Caso ocorra algum acidente com os brigadistas, o posto de saúde dentro da aldeia dá conta de fazer os primeiros socorros.
Por falar em medicina, Alencar destaca os remédios naturais utilizados pelos indígenas através de várias plantas e árvores centenárias encontradas no Pantanal. Com a ocorrência de incêndios nas matas, a comunidade teme pela perda dessa importante diversidade de flora curativa, fundamental para preservar os conhecimentos tradicionais e para o bem-estar das populações locais. “Minha confiança é que se formem mais equipes de brigadistas voluntários, assim evitaremos grandes incêndios. A falta de transporte para nos levar até o fogo prejudica o trabalho; quando é nas redondezas, conseguimos ir a pé; caso contrário, torcemos para conseguir carona com os companheiros que possuem carro ou moto”, afirma Alencar.
A ONG Ecoa atua na prevenção e combate aos incêndios desde 2000 com a campanha Queimada Mata. O trabalho de formação das brigadas comunitárias voluntárias teve início em 2006, com as comunidades da Barra do São Lourenço e Porto Amolar, como apoio ao Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, que naquele ano iniciava a contratação de brigadistas para atuar na unidade. Hoje, o Pantanal possui mais de 50 brigadas, sendo 23 delas coordenadas por André Luiz Siqueira, diretor da Ecoa, e envolvendo moradores de assentamentos rurais, aldeias indígenas distribuídas entre as cidades de Miranda e Nioaque, e comunidades ribeirinhas. O Centro de Apoio Socioambiental (CASA), o Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS), o Ministério Público do Trabalho (MPT/MS), a SOS Pantanal e o WWF Brasil apoiaram a formação — conduzida pelo Prevfogo/Ibama — e os equipamentos das brigadas voluntárias no Pantanal, que operam principalmente no Mato Grosso do Sul.
São cinco as brigadas voluntárias indígenas formadas pela Ecoa: duas na TI Cachoeirinha, nas aldeias Mãe Terra (etnia terena) e São Miguel (etnia kinikinau); duas na TI Nioaque, nas aldeias Brajão (etnia terena) e Água Branca (etnia terena); e uma na TI Lalima (etnia terena), atualmente desmobilizada.
“Os indígenas são os combatentes mais efetivos, tanto os kadiwéu quanto os terenas, são extremamente fortes, organizados e conhecem o terreno como a palma da mão. Existe o interesse de ampliar, porém esbarramos na limitação orçamentária do próprio governo para a contratação de brigadistas indígenas. Quanto mais, melhor”, pontua André. Ele observa que muito tem sido feito pelo governo federal e estadual, contudo falta um trabalho profundo de comunicação e, sobretudo, começar mais cedo o trabalho de prevenção do fogo.
Siqueira argumenta que a região do bioma sofre muita influência dos fenômenos climáticos El Niño e La Niña, e que carece da criação de um centro de operações climáticas do Pantanal, onde deveriam estar conectadas todas as agências de previsão climática – registros de volume da água, calha do rio, temperaturas etc – para a produção de modelos preditivos. Isso auxiliaria no melhor entendimento de todos os profissionais interagindo dentro de uma única estrutura que possibilite divulgar estudos assertivos com antecedência e de fácil compreensão por parte da população mais afetada, como a do campo.
“Não podemos achar que o Pantanal é resiliente e que depois das queimadas, no outro ano, ocorrerá a recuperação. Temos impactos significativos na fauna e flora, na migração de espécies, nos polinizadores, na saúde humana e na perda de renda em diversas categorias de trabalho que dependem dos recursos naturais. Obviamente, os incêndios e a seca atrapalham bastante”, pondera o diretor.
Domadores de chamas e paisagem apocalíptica
A chefe de esquadrão na brigada Kadiwéu 3, Luciana Correa da Silva, vive na TI Kadiwéu, aldeia Tomazia, na cidade de Porto Murtinho. São seis aldeias e duas brigadas mantidas pelo Prevfogo; diferente das voluntárias, essa turma é contratada por 6 meses para exercer a tarefa. Luciana não é a única mulher na brigada, aliás, os rostos femininos são comuns em ambos os times. Ela, que está em missão junto com o marido, diz que este ano o panorama está perigoso, pior do que os anos anteriores, devido às mudanças climáticas.
O trabalho do esquadrão se concentra na área do cerrado e uma pequena parte do Pantanal, e o que mais a preocupa é o desmatamento na floresta e vegetação nativa. “O meu desejo é que um dia possamos chegar ao nível de fogo zero no nosso território. Eu gosto muito do que faço, não tem sentimento que explique, é como se o fogo corresse nas veias no lugar do sangue. E quem está dentro da brigada não quer sair, e quem está fora quer somar conosco”, explica. Luciana comenta que não é tranquilo combater um incêndio florestal e que eles são orientados a trabalhar sempre do lado oposto da fumaça para evitar desgaste físico.
Baseado em Corumbá, no Parque Marina Gatass, o Prevfogo MS totaliza 145 brigadistas contratados, sendo 45 corumbaenses e 100 indígenas, divididos em 6 brigadas, das quais 5 são dos povos originários. Dessas, 3 são da etnia terena, nas aldeias Limão Verde e Taunay Ipegue, em Aquidauana, e Cachoeirinha, em Miranda; e 2 são da etnia kadiwéu, nas aldeias Tomazia e Alves de Barros, em Porto Murtinho.
“A relevância da brigada indígena se dá por duas características marcantes. Primeiro, eles possuem conhecimento territorial completo; mesmo com a extensão de 540 mil hectares nas terras indígenas, todos os brigadistas têm competência. Eles nasceram e vivem ali. Segundo, a sabedoria tradicional de manejar o fogo e saber controlá-lo para a confecção de roças, que faz parte da ancestralidade e cultura indígena brasileira”, aponta Márcio Yule, coordenador do Prevfogo em MS.
Num cenário de destruição semelhante ao de 2020, quando cerca de 17 milhões de vertebrados morreram, diversos animais mortos – como jacarés, javalis, cobras e macacos – estão surgindo conforme o fogo diminui. A artesã Leonida Aires de Souza, residente na comunidade tradicional da Barra do São Lourenço, na Serra do Amolar, próxima à divisa com o Mato Grosso, a cinco horas de barco de Corumbá – lar de indígenas guató e ribeirinhos – relata que o fogo não chegou àquelas bandas. No entanto, o efeito da fuligem e da fumaça no ar causa dores de cabeça, incômodo nos olhos e sangramento nasal em crianças, adultos e idosos nativos. Dona Leonida também lamenta o enfraquecimento dos rios que, consequentemente, esgota o volume de águas das baías, dificultando a colheita das iscas para a pesca e a retirada dos aguapés, matéria-prima do artesanato pantaneiro com as fibras da planta.
Na capital pantaneira, Corumbá, os moradores enfrentaram dias de condições insalubres, inalando fumaça e limpando as casas várias vezes ao dia para remover as cinzas que caíam como neve, enquanto o sol estava obscurecido pela densa fumaça. Até o momento, não há expectativa de chuva. “Populares ribeirinhos tiveram que deixar suas residências, a escola Jatobazinho, próxima à lagoa Baía Vermelha e que atende crianças pantaneiras, precisou encerrar temporariamente suas atividades. Inúmeras pessoas buscaram atendimento nos postos de saúde devido às complicações causadas pela condição do ar vaporoso e contaminado”, desabafa João Gabriel Santos Nascimento, estudante que vive em Corumbá há 35 anos e nunca presenciou algo semelhante, especialmente nesta época atípica do ano. “O que vemos é uma paisagem apocalíptica”.
Perda de água no Pantanal
Tecendo um paralelo com o que se deu em 2020, o biólogo e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), José Sabino, relembra que quase 30% da área total do Pantanal queimou em uma escala sem precedentes. A diferença é que o fogo se intensificou em agosto e setembro, historicamente o período mais seco. Em 2024, o fogo potencializou antes, no primeiro semestre, e bateu recordes quando comparado ao mesmo período de 2020.
Há uma estiagem severa em curso e, para piorar, na região da Bacia do Alto Paraguai (BAP), onde se localiza o Pantanal, choveu pouco. Em média, as chuvas acumulam entre 1200 a 1300 mm por ano; em 2024, o acumulado foi por volta de 60% desses valores. Como resultado, choveu bem menos e áreas de campos, que normalmente ficam alagadas, sequer receberam água. Somada a essa seca intensa, no final de 2023, tivemos ondas de calor vigoroso no centro e sul do Brasil, o que deixou a vegetação excessivamente seca e propícia para os incêndios.
Com relação à queda de mais de 60% na superfície de água no Pantanal em 2023, Sabino menciona que praticamente toda água que o Pantanal recebe vem das chuvas dos planaltos no entorno, e mesmo os índices pluviométricos são equivalentes aos da caatinga. Alguns estudos indicam que o número de dias com chuvas está diminuindo, visto que as chuvas na BAP estão mais concentradas e intensas. Ao invés de chover 100 mm divididos em 4 ou 5 dias, chove 100 mm em poucas horas, consequentemente a água escorre superficialmente sem ter capacidade de se infiltrar no solo e, portanto, sem recarregar o lençol freático. Em relação ao fogo, o biólogo é categórico, “A situação é desesperadora. Infelizmente, o período mais seco está apenas começando e deveremos ter problemas sérios para a fauna e flora”.
Operação Pantanal
Para verificar os estragos causados pelos incêndios no bioma, as ministras Marina Silva, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), e Simone Tebet, do Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO), sobrevoaram o Pantanal acompanhadas pelo secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), Valder Ribeiro de Moura, e pelo governador de MS, Eduardo Riedel (PSDB).
O boletim divulgado pelo governo de Mato Grosso do Sul destaca que, atualmente, não há incêndios florestais no Pantanal-sul-matogrossense. A repercussão é fruto do esforço contínuo das brigadas voluntárias e das ações coordenadas pelo governo estadual, que envolvem militares e brigadistas atuando por terra, água e ar, além de contar com condições climáticas favoráveis. A preocupação vigente é com a queima lenta dentro das áreas já queimadas, especialmente em troncos de árvores.
Desde o início do ano até 9 de julho, dados do LASA-UFRJ indicam que 594 mil hectares foram queimados no Pantanal sul-mato-grossense, representando 6% dos 9 milhões de hectares da região no estado. Esse número é 159% maior em comparação ao mesmo período de 2020, quando 229,4 mil hectares foram queimados, até então considerada a pior temporada de incêndios.
Todas as regiões do Pantanal continuam sob constante monitoramento, utilizando drones e a Sala de Situação na capital, Campo Grande.