Erika Berenguer: Amazônia está tão seca que ‘qualquer uso do fogo consegue escapar e sair queimando tudo’

Em entrevista, cientista climática brasileira, especialista em fogo, destaca redução do desmatamento mas defende que governo dê maior ênfase à prevenção do que ao combate aos incêndios

Por Vinícius Nunes Alves | ODS 15 • Publicada em 28 de novembro de 2024 - 09:57 • Atualizada em 28 de novembro de 2024 - 11:43

A cientista climática e bióloga Erika Berenguer na Amazônia: “Cada El Niño traz mais seca para a Amazônia e um aumento da área afetada por incêndios florestais. Isso vai continuar se acentuando por conta das mudanças climáticas” (Foto: Arquivo Pessoal)

A seca extrema e os incêndios em ecosisstemas florestais, sobretudo na Amazônia, estão fazendo parte dos noticiários há quase dois anos. A cultura do fogo ainda é muito difundida, mas como o clima vem mudando, situações que não aconteciam no passado, agora estão surpreendendo a todos. Na Amazônia, mesmo quando o uso do fogo não é ilegal, existe um risco enorme de sair do controle. “A paisagem está tão seca que qualquer tipo de fogo sendo utilizado – seja fogo para renovação de pastagem, seja fogo do roçado, seja fogo do desmatamento – consegue escapar da área designada e sair queimando tudo ao redor”, alerta a bióloga e cientista climática Erika de Berenguer Cesar, uma das maiores referências do mundo no estudo do fogo.

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Combater os incêndios só depois que já começaram não é suficiente, como estabelecido no Plano de Ação para a Prevenção e Controle dos Desmatamentos na Amazônia Legal (PPCDAm). “O poder público está focado muito no pós fogo e no combate, mas não na prevenção. A crítica ao PPCDAm é que falta a indicação de ações que poderiam estar sendo incorporadas no âmbito da prevenção aos incêndios florestais e isso deve ser feito de uma forma inteligente porque a Amazônia é muito grande”, afirma Erika Berenguer. A maior atenção para a prevenção também é fundamental considerando os fatores climáticos já previstos. “Cada El Niño traz mais seca para a Amazônia e um aumento da área afetada por incêndios florestais. Isso vai continuar se acentuando por conta das mudanças climáticas”, destaca a cientista climática.

Quando a gente olha a Bacia Amazônica como um todo, a temperatura média dela já aumentou em um grau e meio. Aqui na região onde eu estou nesse momento, no Baixo Tapajós, durante a estação seca, chove já 34% a menos do que chovia na década de 70. Em outras partes da Amazônia, a estação seca já se prolonga por mais de uma semana do que historicamente se prolongava. Uma Bacia Amazônica mais quente e mais seca por conta das mudanças climáticas já está também mais inflamável.

Erika Berenguer
Cientista climática e bióloga

Uma das ações preventivas contra incêndios descontrolados é o combate ao desmatamento ilegal. “De 2022 para 2024, o desmatamento na Amazônia caiu em 60% e isso é essencial, porém, ele ainda se dá principalmente em áreas que não têm uma designação, são as chamadas terras devolutas que precisam ser designadas. Se a taxa de desmatamento continuasse alta como estava, a situação crítica dos incêndios florestais que estamos vendo seria muito pior”, comenta Berenguer.

Carioca, formada em Biologia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Erika Berenguer tem doutorado em Ecologia pela Lancaster University e, atualmente, é pós-doutoranda pela Universidade de Oxford e pesquisadora visitante na Lancaster, atuando em diversas linhas de pesquisa, incluindo degradação e incêndio em florestas. Em entrevista exclusiva ao #Colabora, a cientista climática falou – por vídeo chamada, da região do Baixo Tapajós, onde está pesquisando – sobre causas, prevenções e medidas relacionadas aos incêndios de grandes proporções na Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, que, ela ressalta, já foi mais úmida.

Erika Berenguer em pesquisa de campo na Floresta Nacional do Tapajós: Amazônia mais inflamável com seca e calor mais intensos (Foto: Marizilda Cruppe / Rede Amazônia Sustentável)
Erika Berenguer em pesquisa de campo na Floresta Nacional do Tapajós: Amazônia mais inflamável com seca e calor mais intensos (Foto: Marizilda Cruppe / Rede Amazônia Sustentável)

#Colabora – O quadro de seca e queimada na Amazônia está crítico desde 2023. Com base nos dados científicos que coletou, quais seriam as medidas emergenciais para amenizar os impactos do incêndio florestal de larga escala e para prevenir a sua continuidade?

Erika Berenguer – A primeira coisa que é fundamental entender é que a gente precisa de mudanças sistêmicas na forma que a gente encara os incêndios na Amazônia. Isso porque, há 40 anos atrás, incêndios florestais na Amazônia eram quase inexistentes. O primeiro mega incêndio na Amazônia foi em 1998, em Roraima, e foi justamente por conta de um El Niño. Em 1998: não faz tanto tempo. Mas, com as mudanças climáticas, cada El Niño traz mais seca para a Amazônia e um aumento da área afetada por incêndios florestais. Isso vai continuar se acentuando por conta das mudanças climáticas; por isso nós precisamos mudar completamente a forma que esses incêndios são encarados. Parar de focar exclusivamente no combate e dar maior atenção para a prevenção. É claro que o combate é essencial, porém, a gente precisa muito de prevenção para evitar um ano como 2015, 2023 e agora 2024.

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#Colabora – Qual a diferença do que ocorreu em 1998 do que está ocorrendo agora na Amazônia?

Erika Berenguer – Segundo os dados da Agência Americana Atmosférica e Oceanográfica, o El Niño mais forte que a gente já teve, que é chamado King Kong dos El Niño, foi justamente o de 1998. Os de 2015 e 2023 não foram tão fortes. Porém, esse El Niño recente está ocorrendo em cima de uma Amazônia que já está com o seu clima modificado. Por exemplo: quando a gente olha a Bacia Amazônica como um todo, a temperatura média dela já aumentou em um grau e meio. Aqui na região onde eu estou nesse momento, no Baixo Tapajós, durante a estação seca, chove já 34% a menos do que chovia na década de 70. Em outras partes da Amazônia, a estação seca já se prolonga por mais de uma semana do que historicamente se prolongava. Uma Bacia Amazônica mais quente e mais seca por conta das mudanças climáticas já está também mais inflamável. Então, quando chega um El Niño, que torna tudo isso ainda mais quente e mais seco do que já estava, é criado um cenário que deixa a floresta extremamente vulnerável aos incêndios florestais.

#Colabora – Na legislação ambiental nacional, o Código Florestal Brasileiro, a Amazônia é o único bioma que tem 20% de proteção legal nas propriedades. Desconsiderando o desmatamento ilegal, essa porcentagem oficial, unida às Unidades de Conservação, é suficiente para manter as funções ecológicas da Amazônia a longo prazo?

Se a taxa de desmatamento continuasse alta como estava, a situação crítica dos incêndios florestais que estamos vendo seria muito pior, mais desesperador

Erika Berenguer
Bióloga e cientista climática

Erika Berenguer – Uma coisa é a legislação no papel, outra coisa é a realidade do que está sendo cumprido. E existe uma dissonância entre os dois: e é aí que mora o problema. Segundo os dados do MapBiomas, cerca de 96% do desmatamento na Amazônia é ilegal e isso tem que acabar. Lembrando que quanto mais desmatamento, mais emissões de gases de efeito estufa. A floresta armazena grandes quantidades de carbono; a partir do momento que ela é derrubada e queimada para preparar o solo para plantio, todo aquele carbono que durante centenas de anos foi armazenado nas árvores, vira gás carbônico (CO2) e vai para a atmosfera acelerando as mudanças climáticas. Então, a questão principal não é uma falta de legislação, e sim uma falta de aderência a essa legislação.

#Colabora – Mesmo com a redução do desmatamento na Amazônia com a nova gestão federal, ainda falta efetividade na fiscalização?

Erika Berenguer – Houve uma mudança muito grande nos últimos dois anos. De 2022 para 2024, o desmatamento na Amazônia caiu em 60%. Isso é essencial. Porém, ele continua. Precisamos de medidas para parar esse desmatamento ilegal, que se dá principalmente em áreas que não têm uma designação, as chamadas terras devolutas que precisam ser designadas, seja para virar Unidade de Conservação, terra indígena ou mesmo áreas de propriedades privadas. Mas essas áreas precisam de designação para pararem de serem griladas e desmatadas ilegalmente. Essa é uma das medidas que seriam, talvez, mais emergenciais para levar a mais uma queda do desmatamento, além desses 60% que já foram atingidos nesses dois anos da gestão Lula 3.

Floresta Amazônica, úmida, em chamas, preocupação para Erika Berenguer: ‘A Amazônia não queima por combustão espontânea. Ela queima quando o fogo é iniciado por seres humanos’ (Foto: Marizilda Cruppe / Rede Amazônia Sustentável)

#Colabora – Segundo os dados de monitoramento, o desmatamento caiu em todos os biomas, exceto no Cerrado, mas as queimadas aumentaram. Isso é difícil para muitas pessoas entenderem, não? Ainda mais com pessoas públicas explorando politicamente os incêndios…

Erika Berenguer – Historicamente, o que a Ciência mostra é que quando você tem um aumento no desmatamento, você tem um aumento no número de focos de calor.  E por que isso acontece? Porque, no processo de desmatamento, entra o trator de esteira que derruba a floresta; e a floresta que antes estava em pé, agora está deitada e morta, mas ainda não desapareceu. Para fazer ela desaparecer, se esperam semanas ou meses até a estação seca, como agora, para colocar fogo em todo esse material vegetal deitado. Daí, toda essa vegetação literalmente vira fumaça para abrir área de plantio. Então geralmente quanto mais desmatamento, mais fogo. Porém, estudos mostram que, em anos de seca extrema, essa relação desacopla. Você pode ter menos desmatamento, mas ainda assim você vai ter mais fogo: em anos de seca extrema, o desmatamento pode cair e o fogo vai aumentar. Está tudo tão seco que qualquer tipo de fogo sendo utilizado – seja fogo para renovação de pastagem, seja fogo do roçado, seja fogo do desmatamento – consegue escapar da área designada e sair queimando tudo ao redor.

O poder público está focado muito no pós fogo e no combate, mas não na prevenção. Tem bastante coisa sendo feita, mas é depois que o leite está derramado; o que a gente precisa é que o leite nem derrame.

Erika Berenguer
Cientista climática e bióloga

Se a taxa de desmatamento continuasse alta como estava, a situação crítica dos incêndios florestais que estamos vendo seria muito pior, mais desesperador. Por quê? Porque a Amazônia não queima por raios: para ter um raio, precisa estar no início da estação chuvosa quando já está úmido demais e o fogo não espalha. A Amazônia não queima por combustão espontânea. Ela queima quando o fogo é iniciado por seres humanos. Ninguém deixa uma área desmatada, que tem um custo, ficar no chão durante anos ou meses. Essa queda do desmatamento faz com que a situação que está muito ruim não fique ainda pior do que a gente possa imaginar. Claro, não está bom, mas poderia ser muito pior sem a queda do desmatamento.

#Colabora – Segundo você e outros especialistas em fogo, o novo Plano de Ação para a Prevenção e Controle dos Desmatamentos na Amazônia Legal (PPCDAm) não oferece indicadores de medidas de curto prazo para enfrentar o fogo. Basicamente, como você explicaria e recomendaria, então, o funcionamento desses indicadores?

Erika Berenguer – A gente tem que mudar completamente a forma que a gente encara os incêndios florestais na Amazônia. O que o PPCDAm faz é olhar o fogo somente associado ao desmatamento: se você tem uma alta do desmatamento, você vai ter uma alta no número de focos de calor. Porém, o que todos os modelos climáticos mostram, é que secas extremas vão se tornar, e já estão se tornando, cada vez mais frequentes e mais intensas na Amazônia. Então, a gente não pode encarar o fogo como a gente encarava no início dos anos 2000. A gente tem que encarar de uma forma diferente, de acordo com o clima que já mudou. E por isso que a gente precisa de ações específicas para o fogo. A crítica ao PPCDAm é que falta a indicação de ações que poderiam estar sendo incorporadas no âmbito da prevenção aos incêndios florestais. E isso deve ser feito de uma forma inteligente porque a Amazônia é muito grande, é 60% do território nacional. Não tem como colocar um brigadista por árvore para evitar que a Amazônia pegue fogo: nem com os 210 milhões de brasileiros a gente consegue fazer isso. Agora, a gente consegue mapear com dados já existentes do INPE quais são os municípios na Amazônia que estão sofrendo mais com incêndios florestais. Concentrar as ações de prevenção do governo federal nesses municípios é um exemplo do que pode ser feito para agir de maneira inteligente, para a gente diminuir severamente o número de incêndios florestais. Precisamos entender que não existe uma solução única para os incêndios na Amazônia já que é uma área tão heterogênea: tem áreas de cidade, áreas de fronteira agrícola, áreas remotas.

A cientista climática Erika Berenguer em trabalho de campo no Tapajós: ‘Proibir o fogo irrestritamente não leva em consideração as pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade e que menos contribuíram com as mudanças climáticas’ (Foto: Arquivo Pessoal)

#Colabora – E a dinâmica do fogo também é heterogênea, não?

Erika Berenguer – Precisamos entender quais são as causas dos incêndios nessas diferentes realidades amazônicas. Existe um grande número desses atores da agricultura familiar que fazem uso do fogo para o roçado e que dependem desse fogo. Sem esse fogo do roçado, não existe alimentação. Essas pessoas vão entrar numa situação de insegurança alimentar. Nesses casos, pode-se pensar numa bolsa de defesa florestal nos mesmos moldes da bolsa de defesa para pescadores, que durante o período de reprodução dos peixes, recebem uma bolsa para não pescarem deixando os peixes se reproduzir e repor os estoques pesqueiros. Proibir o fogo irrestritamente não leva em consideração as pessoas mais vulneráveis da nossa sociedade e que menos contribuíram com as mudanças climáticas – por exemplo, os agricultores familiares, os ribeirinhos, os povos indígenas e os quilombolas que dependem da sua roça de macaxeira para sobreviver. Uma proibição do fogo os colocaria numa situação de fome. É importante pensar em alternativas ao uso de fogo em todas as situações possíveis. A gente precisa de alternativas ao uso do fogo na pastagem para evitar o número de fontes de ignição, principalmente em ano de seca extrema. O fogo é tão difundido na área rural que é utilizado para tudo; e é isso que tem que mudar. Estudos da Embrapa mostram que uma alternativa ao uso do fogo na pastagem é a utilização de arbustos que são altamente nutritivos para o gado. Então, esses arbustos fazem uma suplementação alimentar para o gado. Enfim, existem alternativas que não passam somente por cientistas naturais, como eu que sou bióloga, mas que passam por agrônomos, engenheiros florestais, cientistas sociais.

#Colabora – Em sua palestra no TEDxAmazônia, você comentou que a floresta amazônica é a prova de fogo, ou era, porque ela não deveria queimar por ser úmida demais. Autoridades do governo federal estão associando as secas severas e os incêndios desastrosos na Amazônia com o intenso El Niño atual que deve ficar até 2025. O quanto já temos de evidências na área climática sobre essa intensificação do El Niño?

Erika Berenguer – O El Niño sempre deixa a Amazônia mais seca e, portanto, mais vulnerável a incêndios. No entanto, o que a gente precisa é de um estudo de atribuição. O que é isso? Existe um ramo da ciência climática que vai, por exemplo, analisar o quanto, em porcentagem, as enchentes no Rio Grande do Sul foram causadas pelas mudanças climáticas e pelo El Niño. A gente precisa de algo semelhante para entender o quanto esses incêndios na Amazônia foram acentuados pelo El Niño e pelas mudanças climáticas. Baseado em evidências passadas, a gente já sabe que em ano de El Niño a Amazônia fica mais seca e com mais fogo. Mas o que a gente precisa é saber o quanto isso foi tornado mais intenso por conta dessa combinação fatal do El Niño e das mudanças climáticas. Já existem grupos analisando isso para saber a proporção.

#Colabora – No mesmo TedxAmazônia que você abordou a ameaça generalizada e crescente às florestas tropicais no Antropoceno, foi destacada como sua maior preocupação a alteração irreversível da dinâmica florestal causada pelos incêndios na Amazônia. Como você explicaria basicamente esse risco e o que é necessário fazer para manter a saúde da maior floresta tropical do mundo?

A maioria das pessoas acha que sabe lidar com o fogo, que sabe qual é o melhor horário para colocar, que sabe fazer um aceiro, etc. Mas a questão é que agora o clima mudou; então, o comportamento do fogo utilizado para manejo agrícola também vai mudar. As pessoas estão sendo surpreendidas com situações que nunca aconteceram na história. Então, toda essa experiência com uso do fogo, seja na pastagem, seja no roçado, está tendo que se adaptar a uma nova realidade climática.

Erika Berenguer
Cientista climática e bióloga

Erika Berenguer – Quanto maior o desmatamento, mais intensas e rápidas são as mudanças climáticas. Isso, obviamente, pode gerar consequências gravíssimas para a região. As projeções que temos indicam que quanto mais intensas as mudanças climáticas, mais seca fica a região. Com isso, uma série de espécies não conseguirá lidar com esses cenários mais secos em pouco tempo, lembrando que a evolução das espécies presentes na Amazônia é um produto de milhões de anos. A gente não consegue em 10 anos que as espécies – sejam da flora ou da fauna – se adaptem a um clima mais seco e mais quente. Então, em primeiro lugar, diminuir o desmatamento é essencial para diminuir os impactos das mudanças climáticas. Em segundo lugar, precisamos diminuir as emissões globais. Não é só o Brasil, é o mundo que precisa reduzir as suas emissões para que a gente não tenha tantos efeitos das mudanças climáticas na Amazônia. E, finalmente, o que eu venho falando, aumentar a prevenção dos incêndios florestais e mudar completamente a forma que o governo encara o problema dos incêndios florestais na Amazônia. O poder público está focado muito no pós fogo e no combate, mas não na prevenção. É claro que poderia estar muito pior, porque poderia não ter combate nenhum, existe neste momento uma série de brigadistas contratados em regime emergencial para lidar com essa seca agora. Tem bastante coisa sendo feita, mas é depois que o leite está derramado, o que a gente precisa é que o leite nem derrame. Sem essas medidas, corremos o risco de acontecer essa alteração irreversível que é a extinção muito rápida de várias espécies.  A preocupação é que – com cada vez menos áreas de florestas, e com as áreas florestais existentes cada vez mais degradadas e queimadas – a gente tenha uma menor reciclagem da água, uma menor geração de chuvas. Os famosos rios voadores na Amazônia vão se tornar cada vez mais como riachinhos e a gente tem menos chuva na região, o que pode causar uma grande mortalidade de árvores. Isso não vai acontecer de um dia para o outro. Mas, se nós já sabemos que vai acontecer, temos que evitar.

#Colabora – Estudo recente publicado na revista científica Scientific Reports sugere a partir que tanto o calor quanto a seca que atingiram a maior floresta tropical úmida do mundo desde 2023 já refletem o panorama das mudanças climáticas. Você considera que estamos próximo de um consenso da comunidade científica sobre essa associação entre as mudanças climáticas antropogênicas e a situação crítica da Amazônia? Os incêndios na floresta amazônica estão minando a sua capacidade de atuar na regulação climática, aumentando significativamente as emissões de CO2 na atmosfera?

Erika Berenguer – Sim, os incêndios geram grandes emissões de CO2 para a atmosfera. Aqui na região do Baixo Tapajós, em 2015, ocorreu um intenso El Niño e gente teve uma área de cerca de um milhão de hectares de florestas em pé que queimaram durante aquela seca extrema. Se somássemos todas as emissões de CO2 para a atmosfera por conta desses incêndios, essa região do Baixo Tapajós, em 2015, seria a 13ª maior poluidora do mundo, estando à frente de países como a Inglaterra e a Itália. E o Baixo Tapajós, naquele ano, não foi a exceção, mas sim a regra. Houve várias regiões da Amazônia que, em 2015, queimaram tão intensamente quanto o Baixo Tapajós. Então, a diminuição dos incêndios florestais é essencial para a gente frear as mudanças climáticas. Na comunidade científica já está mais do que estabelecido, através de todos os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que as mudanças climáticas têm gerado na maior parte da bacia amazônica uma seca mais acentuada seguida de incêndios florestais. Desde os anos 80, existem estudos mostrando a relação entre o aumento das mudanças climáticas e a aceleração da seca no bioma.

#Colabora – No artigo científico “Sensibilidade das florestas tropicais da América do Sul a uma anomalia climática extrema” (tradução livre) publicado no periódico Nature Climate Change em 2023, você e colaboradores concluíram que as florestas sul-americanas são vulneráveis a aumentos de temperatura e que as florestas mais secas são mais vulneráveis às mudanças climáticas, apresentando maior perda de carbono e maior mortalidade da biomassa. As queimadas na Amazônia e na Mata Atlântica estão se tornando o principal fator de perda de biomassa?

Erika Berenguer – Não, o principal fator para perda de biomassa e emissões ainda é o desmatamento. Isso porque o desmatamento é binário – ou você tem a floresta, ou você não tem a floresta. E, no momento que toda essa área foi desmatada, todo o carbono que estava ali armazenado vai virar CO2.  É preciso ter a área completamente limpa para ser convertida por pastos ou por monoculturas. Então o desmatamento é o que causa a maior quantidade de emissões. Inclusive, quando a gente olha o inventário brasileiro de emissões ligadas ao efeito estufa, cerca de 70% das emissões do Brasil são por conta do desmatamento e das mudanças do uso do solo. Faz parte da nossa Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) o compromisso climático estabelecido no Acordo de Paris que é a diminuição do desmatamento, justamente por essa ser a principal causa de emissões do nosso país. É claro que as emissões de CO2 que vêm do fogo são importantes, mas as do desmatamento são maiores em números absolutos, mesmo hoje  com a diminuição do desmatamento no Brasil. Quando o fogo entra na floresta, estima-se que árvores com mais de 30 centímetros de diâmetro têm mais resistência – cerca de 50% das árvores morrem. Mas, em termos de emissões, vai ser mais ou menos como se um terço do carbono armazenado fosse perdido. Agora, se essa mesma área for desmatada, a gente não perde um terço, a gente perde 100% do carbono ali armazenado. Em resumo, quando a floresta é desmatada, ela deixa de existir e tudo vai para a atmosfera. Agora, quando a floresta é queimada, ela continua existindo como uma floresta degradada e continua absorvendo gás carbônico pela fotossíntese.

Quanto ao artigo científico, realmente vimos o inverso da nossa expectativa: esperava-se que as regiões mais secas já estivessem adaptadas a um clima mais seco. Então, ficando cada vez mais quente e seco, aquelas regiões já estariam um pouco mais adaptadas à seca e conseguiriam lidar melhor com aquela situação do que lugares que são muito úmidos. No entanto, essas plantas, que estão sim adaptadas a áreas mais secas, já estão operando no seu limite. Elas já estão lidando com o máximo de seca que conseguem; qualquer pouquinho a mais de seca, elas então colapsam. Isso foi uma coisa que a gente realmente não esperava quando estava pensando as hipóteses para esse estudo.

Área queimada na Floresta Amazônica registrada por Erika Berenguer: ‘Toda essa experiência com uso do fogo, seja na pastagem, seja no roçado, está tendo que se adaptar a uma nova realidade climática’ (Foto: Arquivo Pessoal)

#Colabora – No Brasil existe uma cultura do fogo entre muitos proprietários de terra, que mesmo na estação seca de inverno, limpam suas áreas usando queimadas, principalmente para pastagens. Você considera um crime o uso do fogo em áreas rurais próximas a florestas que deve ser banido em qualquer circunstância?

Erika Berenguer – Eu acho que banir o fogo depende do caso, principalmente quando a gente está falando em agricultura de subsistência. Agora, em 2024, os diversos estados da Amazônia – como, por exemplo, o Pará onde eu estou – proibiram o uso do fogo a menos que seja por populações tradicionais para uso na agricultura de subsistência. Ainda assim, a população continua utilizando o fogo. Eu acho essencial entender que o uso do fogo é extremamente difundido: a maioria das pessoas acha que sabe lidar com o fogo, que sabe qual é o melhor horário para colocar, que sabe fazer um aceiro, etc. Mas a questão é que agora o clima mudou; então, o comportamento do fogo utilizado para manejo agrícola também vai mudar. As pessoas estão sendo surpreendidas com situações que nunca aconteceram na história. Então, toda essa experiência com uso do fogo, seja na pastagem, seja no roçado, está tendo que se adaptar a uma nova realidade climática.

As queimadas prescritas vão depender do bioma que você está no Brasil, elas não fazem sentido quando a gente está discutindo florestas ombrófilas densas, como é o caso da maior parte da Amazônia e da Mata Atlântica. Para áreas de savanas que têm um regime de fogo de tempos em tempos, as queimadas são sim essenciais. Por isso, as queimadas prescritas podem ajudar a não ter incêndios de grandes proporções; porque você evita esse acúmulo de combustível em ecossistemas em que o fogo faz parte dele, como, por exemplo, no Cerrado. A manutenção da queimada também ajuda a manter a vegetação de savana. Existem vários estudos nas savanas africanas que mostram que quando o fogo é suprimido, ocorre uma invasão da floresta substituindo as espécies de flora e fauna da savana que existiam ali há muito tempo. Então queimadas prescritas no Cerrado, feitas com a presença de brigadistas, podem deixar o fogo natural, que ocorre na estação chuvosa, bem mais brando.

#Colabora – Em lugares que não têm unidades de conservação federais, sem equipes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), as queimadas podem ser feitas de forma errada e gerar incêndios descontrolados.  Como tratar essas diferenças?

Erika Berenguer – Isso é uma questão essencial para ser olhada no uso do fogo da paisagem. Prevenir ou conter o fogo indevido não é uma atribuição exclusiva do governo federal, é na verdade um problema que envolve todas as esferas do poder público, federal sim, mas também o estadual e o municipal. Um plano nacional de prevenção e combate a incêndios não deveria ser apenas do Ministério do Ambiente, mas também do Ministério da Agricultura, que é o setor onde o fogo é amplamente utilizado, do Ministério da Saúde, já que a fumaça gera uma série de problemas de saúde pública e que impactam o Sistema Único de Saúde (SUS), aumentando os atendimentos e custos. Então para uma gestão mais efetiva do fogo, a gente precisa de uma parceria intersetorial e interministerial, mas também das diferentes esferas do poder público.

Vinícius Nunes Alves

Vinícius Nunes Alves é biólogo pela Unesp-IBB, mestre em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais pela UFU-Inbio e especialista em Jornalismo Científico pela Unicamp-Labjor.

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