Descaso com o meio ambiente leva sofrimento e dor ao povo da Caatinga

Estudos revelam que a Caatinga já perdeu 40% de superfície de água natural nos últimos 35 anos. Fotos Alen Peixinho e Liliana Peixinho

Região já perdeu 40% de superfície de água natural nos últimos 35 anos, enquanto agricultura cresceu 1.456% e pastagem aumentou 48%

Por Liliana Peixinho | ODS 15 • Publicada em 4 de julho de 2022 - 09:03 • Atualizada em 30 de novembro de 2023 - 15:22

Estudos revelam que a Caatinga já perdeu 40% de superfície de água natural nos últimos 35 anos. Fotos Alen Peixinho e Liliana Peixinho

A vida do agricultor Aurino de Oliveira, 83 anos, foi sempre de luta incansável. Sol, chuva, poeira, lama, pedra, buraqueira, a pé, em burro, bicicleta, o dia todo, todos os dias. Ele nasceu na fazenda Gravatá-Itapeipú, município de Jacobina, na Bahia. Como homem da Caatinga, Aurino vive um contínuo recomeço: são animais que morrem, plantações que não vingam por falta d’água, é gente que entra na roça para roubar, é problema sério de saúde para cuidar. E nada de esmorecer. A história de Aurino é mais uma das muitas contadas pelos sobreviventes da Caatinga, um bioma exclusivamente brasileiro, exuberante, rico em biodiversidade e muito, muito maltratado.

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Estudos revelam que a Caatinga já perdeu 40% de superfície de água natural nos últimos 35 anos. O aumento do desmatamento acompanha o crescimento da atividade econômica na região. A agricultura cresceu 1.456%. A área de pastagem aumentou 48%. A política de proteção não chega nunca e, hoje, de todo o bioma, que ocupa 11% do território nacional, apenas 2% estão em unidades de proteção integral. Quase metade (46%) da vegetação original da Caatinga já foi desmatada. O povo sofre e reclama. São mais de 28 milhões de pessoas (14,5% da população brasileira) e a maior parte em comunidades rurais pobres, tentando sobreviver, com a fome alastrada Brasil, Caatinga adentro.

As perdas da biodiversidade na Caatinga são históricas e persistentes. Especialistas, ativistas, povos tradicionais chamam atenção para a exploração desmedida dos recursos naturais com queimadas, acesso irregular da água, vastas áreas só para monocultura, desmatamento, uso de agrotóxicos. Fatores que, associados, promovem ciclos de pobreza, vulnerabilidade dos agricultores familiares e pequenos produtores, em cadeia desarmoniosa com o ambiente, de ponta a ponta.

Com o desmonte das estruturas públicas de fiscalização e proteção, aumentaram o desmatamento e a expansão de áreas agrícolas para monoculturas. As políticas de convivência com o semiárido, e parcerias com comunidades tradicionais, consideradas fundamentais na proteção, não são eficientes e tem mais discurso e projetos no papel, que ações de fato.

Biodiversidade

A Caatinga tem uma vegetação composta por plantas xerófitas, adaptadas ao clima para armazenarem grande volume de água e possuírem poucas folhas (para diminuir a área de evaporação) e raízes longas para alcançar água em um nível mais profundo do solo. Xique-xique, mandacaru e outras espécies de cactos são exemplos comuns da paisagem, além de grandes árvores como o umbuzeiro. A fauna também é diversificada: ararinha-azul, macaco-prego, onça-parda e jacaré-de-papo-amarelo são exemplos de vertebrados que encontramos na Caatinga. São 40 espécies de lagartos e 45 de serpentes catalogadas.

Mãe Isaura, 16 anos depois das manifestações pela revitalização do Velho Chico, sonha em voltar para reformar a Capela São Sebastião e refazer sua casa na Bela Vista. Fotos Alen Peixinho e Liliana Peixinho
Mãe Isaura, 16 anos depois das manifestações pela revitalização do Velho Chico, sonha em voltar para reformar a Capela São Sebastião e refazer sua casa na Bela Vista. Fotos Alen Peixinho e Liliana Peixinho

Revitalização do Velho Chico

É no meio dessa fauna e flora riquíssimas que vive Isaura Pereira da Silva, carinhosamente conhecida como “Mãe Isaura”, quilombola com muito orgulho, de 83 anos. Ela nasceu em Cabrobó, Pernambuco, tem 14 filhos,14 netos e seis bisnetos. Isaura foi uma das personagens principais da histórica manifestação pela revitalização do rio São Francisco, na Fazenda Bela Vista, durante a greve de fome do Bispo Dom Luís Cappio, em outubro de 2005.

Mãe Isaura abrigou, entre a sua casa e a capela São Sebastião, milhares de manifestantes vindos de toda parte do Brasil. Comitivas de ribeirinhos, agricultores, pescadores, professores, alunos, famílias numerosas e religiosos, viajaram longas distâncias em caminhões pau-de-arara rumo a Cabrobó. Foram 18 dias de manifestações, debates e negociações. No 18° dia da greve de fome do bispo, um helicóptero pousou no descampado da Fazenda Bela Vista, com um representante do governo a bordo, na missão de tentar evitar a morte do bispo. Uma história que envolveu até o Papa Bento XVI.

Seu Aurino de Oliveira, 83 anos de recomeços diários, sem esmorecer. Fotos Alen Peixinho e Liliana Peixinho
Seu Aurino de Oliveira, 83 anos de recomeços diários, sem esmorecer. Fotos Alen Peixinho e Liliana Peixinho

Mãe Isaura sabia, como ribeirinha, as histórias de vidas de 50, 60 anos atrás. Com essa experiência lutou bravamente, tentou alertar sobre os cuidados com o ambiente, com a água, com as margens dos rios, com os alimentos, a terra e os animais. Não adiantou. Não ouviram. Não entenderam. O projeto de transposição das águas do São Francisco, nesses 16 anos após aquela manifestação histórica de outubro de 2005, funciona muito bem como uma máquina poderosa de uso de recursos com diversas justificativas ditas “sustentáveis”. Mãe Isaura teve que derrubar sua casa, a mesma que abrigou a família do bispo, jornalistas e ativistas, e foi morar em Cabrobó. Hoje, ele conta:

“A vida é muito diferente. Nos tempos lá atrás, a gente vivia na fartura. Fomos criados com os alimentos na beira do rio. Tinha as enchentes, a gente plantava arroz, mandioca, milho. A comida dava para passar de ano a ano. Cana, rapadura. Por esse mês de junho, por exemplo, começavam as moagens de cana. Era muita fartura, minha filha. Tinha batata doce, milho, feijão, andu, manga, limão, laranja, pinha, mamão, pimentão, tomate, cabaça. Depois da barragem de Sobradinho acabou-se toda a fartura. Eles dizem que botaram essa “molhação” para acabar com a fome. Ela trouxe foi fome. A pessoa planta meio mundo de roça e quando termina não tem com o que ficar, nem um quilo de legume para comer. Na roça, se plantasse um quilo de feijão, tirava um saco. Hoje se plantar um saco é difícil tirar o mesmo saco. Não consegue. Não dá para pagar as contas. Está muito diferente. Peixe, a gente vivia de peixe. Era tanto peixe aqui na margem do rio. A gente ia atravessando com a canoa, se a viagem fosse longa quando chegava lá do outro lado a canoa já estava cheia de peixe, eles pulando d’água caia dentro da canoa. Estou com 83 anos. Tudo isso a gente tinha. E hoje minha filha, de jeito nenhum”.

Seu Pedro, 86 anos, agricultor, Adustina: "Hoje, os venenos chegam em qualquer veio d'água que restou e a gente adoece e as plantas também". Fotos Alen Peixinho e Liliana Peixinho
Seu Pedro, 86 anos, agricultor, Adustina: “Hoje, os venenos chegam em qualquer veio d’água que restou e a gente adoece e as plantas também”. Fotos Alen Peixinho e Liliana Peixinho

Veneno nas plantações

Pedro Vicente Elias é agricultor familiar de Formigueiro, zona rural de Adustina, na Bahia. São 86 anos de luta contra doenças evitáveis, prejuízos com plantações e perrengues por conta das mudanças na forma de cultivar. Seu Pedro lamenta muito o veneno jogado nas plantações, que se espalha e prejudica a saúde. Apesar de aposentado, ele continua ativo, mesmo com os problemas de saúde. Questionado sobre como era a vida há 50 anos, o agricultor, lúcido e paciente, diz:

“Naquele tempo, lá nos anos 60/70, a vida era muito melhor. A família toda tomava café com cuscuz, leite, batata doce, aipim e depois ia para roça. Era um bocado de trabalhador junto, alegre e disposto na lida. Com o sol do meio-dia a gente voltava para casa, almoçava em fartura, conversava, descansava e voltava para o trabalho na roça. Aí as máquinas e o veneno foram chegando e acabou com tudo. Hoje, o que a gente come, com esses venenos aí, fica logo doente, com dor de barriga, dor de cabeça, enjoado, indisposto, problemas na pele”.

Nestes tempos de fome em massa, que atinge fortemente o povo pobre da área rural, seu Pedro se emociona e explica:  “Nós plantávamos de tudo, misturado, na mesma roça. Era feijão ao lado do milho, da mandioca, do algodão e muito pé de fruta em todo canto. O veneno chega longe, pelo vento, pela terra, contamina até os veios d’água e acaba com tudo. A gente pegava água era direto dos tanques e bebia ali mesmo, de cuia, na beirada da aguada. Hoje, os venenos chegam em qualquer veio d’água que restou e a gente adoece e as plantas também”.

Parar enferruja

Assim como o Universo, seu Aurino Oliveira é símbolo de movimento. Parar enferruja, ele repete sempre. Antes do sol nascer, todos os dias, ele pega a estrada de barro, anda de sua casa, no povoado da Passagem Velha, município de Senhor do Bonfim, na Bahia, até a sua roça, a alguns quilômetros, para sua primeira atividade: tirar o leite das poucas e mirradas vaquinhas. Duas horas depois, reserva alguns litros do leite para atender suas pequenas encomendas de requeijão e manteiga.

Ligado às tradições culturais seu Aurino recebeu familiares e amigos, vindos em comitivas de cidades diversas, para comemorar os seus 83 anos, nesse mês de junho. Em meio a muitos abraços, cantoria e orações, uma trova da Caatinga celebrava o exemplo de vida dado por Seu Aurino e pelo povo da região:

Trova do Canarim

“Somos 11 irmãos. Seis mulheres e cinco homens. Todos barriga cheia, nenhum passou fome.

Pai contratou um professor.

Todos estudaram. Nenhum foi Doutor.

Pai era agricultor. Com o nome de fazendeiro.

Não era homem rico,

mas nunca faltou dinheiro.

Dos tempos de criança vou contar. Com 8 anos de idade comecei trabalhar, aos pouquim.

Amansei um carneiro, por nome de Canarim.

Como eu era pequeno, era de dá recado.

Pegava o Canarim, nele saia montado.

Na casa de duas irmãs, eu ia dar o recado

Na casa da tia Francisca, que ficava do outro lado.

Um dia na casa de Lôra, Canarim saiu disparado

Desceu a ladeira, e eu estava montado. Foi parar no pé da cerca

as ovelhas do outro lado

Pai fez uma cangalha e dois cassuá.

Mãe fazia a feira

e da Fazenda Gravatá,

com Canarim, em Itapeipú, eu ia buscar.

Um dia Canarim comeu mandioca e morreu.

Na morte de Canarim, todo mundo sentiu um pouquim,

Eu que era o dono como apaixonei, muito chorei.”

Liliana Peixinho

Jornalista, ativista socioambiental. Especialização em Jornalismo Científico, Meio Ambiente e Cultura. Responsabilidade Social Empresarial Sustentável. MBA em Turismo e Hotelaria Sustentável.
Fundadora/Coordenadora: Movimento AMA -Amigos do Meio Ambiente, Mídia Orgânica, Reaja- Rede Ativista de Jornalismo e Ambiente, RAMA, Cuidar do Cuidador.

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