Depois de 20 anos, antas e cotias voltaram. Há quem diga que onças também, testemunho confirmado pelas pegadas do animal na terra úmida, com alto teor de matéria orgânica. Entre bananeiras, jabuticabas, jaracatiás e pupunhas voam papagaios e outras espécies diversas, como o Tiê-Sangue, ave símbolo da Mata Atlântica. Estamos na comunidade do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) José Lutzenberger, em Antonina, que ocupa parte da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, litoral do Paraná.
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Essa verdadeira “revolução verde” começou em 2004, quando algumas famílias ocuparam a antiga fazenda São Rafael, onde a terra havia sido degradada pela criação de búfalos.
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Veja o que já enviamosTempos depois começou a ser implantado no terreno o sistema agroflorestal, um modelo de produção que combina árvores nativas com cultivos agrícolas e que rendeu à comunidade o prêmio Juliana Santilli de agrobiodiversidade, do Instituto Socioambiental, em 2017.
“É daqui que eu tiro parte da minha alimentação. Futuramente, vou conseguir tirar 100%. Com o sistema agroflorestal, produzimos muitos alimentos com baixo custo de investimento. No início, foi um pouco mais difícil porque exige mais esforço, assim como no período de desenvolvimento e manejo. Mas, com o tempo, o sistema vai diminuindo tanto o tempo de trabalho como o investimento em mudas”, conta o agricultor Jonas Souza, que está no assentamento desde sua implantação.
A floresta renasce
Um estudo técnico realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) a pedido do Ministério Público impressiona. Fotos de duas décadas atrás retratam áreas da Mata Atlântica transformadas em pasto pela criação de búfalos e plantio da braquiária, uma espécie exótica e invasora que serve aos animais, mas dificulta muito o desenvolvimento da vegetação.
Um ponto que chama atenção é que, entre 2004 e 2021, há uma recuperação de 64,481 hectares de floresta, o equivalente a cerca de 60 campos de futebol e a um quarto da área total onde a comunidade vive atualmente.
“Quando se fala de agrobiodiversidade estamos falando de segurança alimentar, recuperação dos biomas, geração de renda e qualidade de vida para as comunidades”, explica a geógrafa Gabriele Borinelli, mestranda da Universidade Federal do Paraná e integrante do Plantear, um coletivo de planejamento territorial e assessoria popular.
Em relação ao Rio Pequeno, que atravessa a área da comunidade, as imagens também mostram uma canalização realizada em 1986 que “altera drasticamente” seu curso em um período de tempo muito curto, suprimindo a mata ciliar e acelerando o processo de erosão das margens, segundo o laudo técnico. Depois da implantação do sistema agroflorestal como estratégia para recuperação das áreas degradadas, Borinelli conta que o rio começa a retomar suas curvas naturais, os chamados “meandros”. Isso “diminuiu a vazão das águas e, por consequência, o volume de sedimentos carregados até o mar”, afirma a geógrafa.
In loco, o que se vê é um rio sombreado por ingás e palmitos-juçara que frutificam e espalham sementes pelas margens, renovando a vida do solo. Então, “mesmo que dê uma enchente forte depois da chuva, o rio se mantém em sua calha”, observa Jonas sobre os benefícios da mata ciliar. Agora, com mais profundidade, o Rio Pequeno atrai novamente peixes que há tempos não se banhavam naquelas águas, como os jacundás e acarás.
O poder da agricultura familiar
Em 2004, quando as primeiras famílias ocuparam as terras da antiga fazenda São Rafael para formar a comunidade José Lutzenberger, em Antonina, no Paraná, as condições do solo não permitiam que fossem produzidos alimentos suficientes para o próprio sustento. Naquela época, o grupo dependia de cestas básicas distribuídas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Foram necessários cinco anos até que as famílias pudessem iniciar suas roças, relembra a produtora agroecológica Sara Wandenberg dos Santos.
Hoje, a história é outra. Os sistemas agroflorestais garantem acesso a uma dieta diversificada e orgânica, com 12 variedades de hortaliças, 12 tipos de legumes e tubérculos e, pelo menos, 16 frutas. Banana, abacate, laranja, jaca, fruta do conde, taperebá e araçá são apenas alguns exemplos do que é possível colher nos canteiros cultivados pelo sistema agroflorestal, em diferentes épocas do ano. Esses produtos também são fonte de renda e trabalho para as vinte e três famílias que vivem no local.
Um sistema coletivo
Sara, que é mãe de três, conta que seus filhos adoravam ir à agrofloresta e consumir produtos como couve e cenoura direto da horta. “Eles mesmos ajudavam a colher, e isso mostrava o quanto eles se conectaram com seu alimento”, recorda. Para a agricultora, essa relação direta com aquilo que se produz também é um sinônimo de saúde e bem-estar para as famílias.
“Morar no campo por decisão e não por necessidade. Isso é muito mais valioso”, comemora Sara.
Ali, as famílias exercem uma convivência coletiva, não apenas entre si, mas com as espécies de plantas e animais que, aos poucos, repovoam o local. “’Aqui, tudo está interligado: as famílias ajudam umas às outras, e também ajudam a terra, principalmente no plantio que precisa de muitas mãos”, completa Sara.
Ao longo de duas décadas, a experiência de Antonina garantiu uma atividade de baixo impacto ambiental, conforme aponta o laudo da UFPR, com uma produção orgânica, sem uso de agroquímicos, que se adequou à legislação da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, recompôs Área de Preservação Permanente (APP) e a mata ciliar do Rio Pequeno.
Do pasto à Mata Atlântico, o solo é o principal fio condutor da narrativa da comunidade José Lutzenberger. É por ele que essa história começa e por meio dele que as famílias garantem segurança alimentar e benefícios socioeconômicos.
A partir dos sistemas agroflorestais, as famílias afirmam que a natureza não pode ser apenas contemplativa, há intervenções necessárias a serem feitas pela atividade humana. Ao mesmo tempo, não pode ser explorada sem limites, então a equação precisa ser equilibrada: retirar alimento e devolver vida ao solo.
O sucesso do modelo de produção que devolveu 64,481 hectares de floresta ao litoral do Paraná é, enfim, o respeito à biodiversidade, valor que se cultiva também por meio do trabalho coletivo. É por isso que as famílias decidiram batizar as terras ocupadas em 2004 da então Fazenda São Rafael de “comunidade”, aquilo que também chamam de “paraíso verde”.