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As violações dos direitos humanos na Pan-Amazônia
Relatório apresentado em evento paralelo do Sínodo revela abusos e desmandos cometidos por megaprojetos de extração de recursos minerais na região
Vaticano – Uma representação predominantemente feminina de povos indígenas e ribeirinhos de países da Pan-Amazônia ocupou por dois dias o auditório da Rádio Vaticano para dar voz e mostrar as consequências das violações de direitos humanos denunciadas em relatório preparado pela Rede Eclesiástica Panamazonica (REPAM). A apresentação foi organizada pela “Amazônia: Casa Comum”, evento que acontece paralelamente ao Sínodo da Amazônia, no Vaticano.
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Veja o que já enviamosO relatório “Tecendo redes de resistência e luta” monitorou 13 casos de violações de direitos no Brasil, na Colômbia, no Equador, no Peru e na Bolívia. Ao longo de suas 300 páginas, o documento mostra os abusos cometidos nos últimos anos pelas indústrias extrativas e pelas culturas ilícitas, baseadas na exploração intensiva de recursos naturais que causam impactos devastadores ao meio ambiente amazônico e para a saúde e paz social de seus habitantes.
Sonia Olea, especialista da Caritas espanhola, conduziu a mesa de debate nos dois dias. Ela falou brevemente para dar voz às lideranças que ali estavam para expor suas histórias. Segundo Sonia, “os impactos das políticas de colonização, ocupação territorial e extração de recursos na Amazônia fizeram com que populações ancestrais fossem deslocadas, aniquiladas ou sujeitas à servidão.”
Peru: devastação da floresta para plantação de palma
A primeira a falar foi Marcial Huaya, representante do povo Kichwa do rio Nucuray (Loreto). Durante uma hora da tarde de segunda-feira, a peruana apresentou vídeos, documentos e discursou para uma sala lotada: “O artigo primeiro da constituição do Peru fala sobre o direito à terra e ao território. Mas como podemos lutar pelo direito à terra se não sabemos da nossa história?”, indagou. “Você precisa compreender o que é a floresta para poder reivindicá-la. No meu país existe um oleoduto que atravessa uma grande parte de floresta. Essa velha obra não é cuidada, existem vazamentos de petróleo, mas o governo peruano continua dizendo que os indígenas são os culpados pelo desastre ambiental causado pelo óleo. As pessoas sabem que a água está contaminada porque a mão se pinta de preto”, disse ela ao denunciar o problema da poluição dos rios, peixes e plantações causados pelos vazamentos.
O petróleo não é o único inimigo da floresta. “Um outro problema muito grande no Peru são as áreas destinadas à plantação de Palma. Elas se sobrepõem aos territórios indígenas onde existem, inclusive, restos arqueológicos. O artigo 1 do decreto de 2000 diz que a plantação de Palma é um projeto de interesse nacional, então os povos não podem se opor”, disse ela ressaltando que o governo criminaliza quem protesta. A peruana também citou o caso de Nuevo Triunfo, onde o governo criou uma área de proteção ambiental, mas expulsou a população local para proteger a reserva. “As pessoas também precisam ser preservadas na sua terra. A Amazônia abriga muitas vidas e nós não somos pobrecitos, como dizem, somos ricos. Falamos de biodiversidade, mas não mencionamos a riqueza humana das pessoas que vivem ali”.
Caquetá: os camponeses e a guerrilha
Com uma fala muito comovida, a colombiana Angela Gonsales denunciou a luta pelo direito ao território do povo que vive em Caquetá, uma região de seu país que por anos foi dominada pela guerrilha (Forças Armadas de Resistência da Colômbia – Farc): “A luta dos campesinos que vivem em Caquetá começa a partir de uma questão política. Quando se identificam como moradores dessa localidade sofrem descriminação: são taxados de traficantes ou narcoguerrilheiros. As Farc comandavam tudo nessa comunidade, estabeleciam as normas de convivência, decidiam quem morria e os campesinos não podiam fazer absolutamente nada, era segui-los ou morrer. Nem mesmo com o processo de paz, os campesinos de Caquetá ganharam o título de propriedade da terra”, disse.
[g1_quote author_name=”Angela Gonsales” author_description=”Ativista colombiana” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A luta dos campesinos que vivem em Caquetá começa a partir de uma questão política. Quando se identificam como moradores dessa localidade sofrem descriminação: são taxados de traficantes ou narcoguerrilheiros. As Farc comandavam tudo nessa comunidade, estabeleciam as normas de convivência, decidiam quem morria e os campesinos não podiam fazer absolutamente nada, era segui-los ou morrer
[/g1_quote]A colombiana falou sobre a necessidade de os camponeses se sentirem também amazônicos. “Os camponeses precisam entender que são da floresta. É necessário que eles se posicionem em relação à sua terra, para poder lutar por ela”, ressaltou. Para a ativista, o processo de paz na região foi incrivelmente benéfico para as empresas extrativistas. A região foi marcada por conflitos socioambientais decorrentes da presença de grandes corporações como a empresa inglesa Emerald Energy e a americana Shell.
Bolívia: só 30% dos territórios indígenas possuem títulos
As violações de direitos dos povos na Bolívia foi apresentada por Maria Eugênia, uma ativista jesuíta que fez questão de recordar que seu país não é somente andino, mas formado por 36 povos indígenas, camponeses e afro bolivianos. Segundo Maria, “o fato de ter um presidente indígena melhorou a representatividade do povo e abriu caminhos em direção à emancipação. Se por um lado a Constituição de 2009 é bem avançada em termos de direitos humanos, especialmente direitos coletivos, por outro não impede o governo de retirar pessoas de seu território, oferecendo como compensação ao dano um pedaço de terra individual, esquecendo que o indígena é coletivo, comunitário”. Em seu país, somente 30% dos territórios indígenas são intitulados. Ela denunciou a existência de projetos de construção de hidrelétricas para abastecer o Brasil.
Violações de direitos
O relatório é o resultado do trabalho em equipe realizado organizações e comunidades de base, fruto do curso de direitos humanos desenvolvido pela Escola de Promoção, Defesa e Execução dos Direitos Humanos da Repam, para denunciar a violência sistemática em 13 pontos específicos da Amazônia. Segundo o documento, para elaboração da pesquisa foram estudadas as realidades econômica, sociológica, psicológica, relacional e histórica de pessoas e povos. Além disso, foi feito um estudo detalhado dos regulamentos e políticas públicas que os Estados de referência estão realizando e que não colocam aos povos amazônicos no centro de suas prioridades.
De acordo com o Relatório, “projetos modernos de hidrocarbonetos e mineração na Amazônia ocupam espaços, poluem o meio ambiente natural e causam perdas irreparáveis à cultura e à paz social dos povos afetados, e todos os benefícios são transferidos para os mercados financeiros internacionais, sendo que pouco ou nada retorna à região para aliviar as condições de vida das populações”.
As violações documentadas no relatório são:
- Violação do direito humano à consulta prévia e autodeterminação: Povos Indígenas Awajún e Wampís (Equador)
- Violação do direito humano dos povos indígenas em isolamento voluntário à autodeterminação (sem contato): povos indígenas Tagaeri-Taromenani (Equador).
- Violação do direito humano à identidade camponesa, soberania e autonomia alimentar: comunidades camponesas de Vereda Chaparrito (Colômbia).
- Violação do direito humano à manifestação e participação, à não criminalização da defesa dos direitos humanos: comunidades camponesas de Morelia e Valparaíso (Colômbia).
- Violação do direito humano a uma consulta prévia autêntica, de boa fé, livre e informada sobre seu território: povos indígenas Mojeño Trinitario, Yucararé e T´siname (Bolívia).
- Violação do direito humano à identidade indígena: povos indígenas de Mosetén (Bolívia).
- Violação do direito humano à identidade e à visão de mundo de um povo: Povos Indígenas Munduruku (Brasil).
- Violação do direito humano à intangibilidade de territórios indígenas e falta de responsabilidade do Estado: Povos Indígenas Yanomami (Brasil).
- Violação do direito humano à demarcação de territórios indígenas Indígenas Jaminawa Aará (Brasil)
- Violação do direito humano ao habitat: comunidades rurais de Buriticupú, Marañón (Brasil) e comunidades rurais e indígenas de Tundayme na Cordilheira do Cóndor (Equador).
- Violação do direito humano à água: povos indígenas Kukama (Peru).
O ouro na Guiana Francesa
Mesmo não fazendo parte do relatório da Repam, a situação de violação de direitos humanos dos povos da floresta na Guiana Francesa também mereceu destaque. Dentro do contexto dos eventos paralelos ao Sínodo, a realidade dos povos tradicionais guianos foi exposta por seus representantes indígenas e debatida numa mesa intitulada “Amazônia: do local ao Global”.
“O fogo não é o único perigo que ameaça ou destrói a Amazônia. O extrativismo é amplamente responsável e a extração de ouro explica a contaminação do solo, dos rios e das pessoas pelo mercúrio”, disse Aikumale Alemin, representante dos povos Wayana e um dos auditores do Sínodo. Ele ressaltou que para cada quilo de ouro extraído, a mesma quantidade de mercúrio termina na água. Isso sem falar que a cada tonelada de ouro legal são produzidas dez toneladas ilegais.
[g1_quote author_name=”Marcial Huaya” author_description=”Representante do povo Kichwa” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Você precisa compreender o que é a floresta para poder reivindicá-la. No meu país existe um oleoduto que atravessa uma grande parte de floresta. Essa velha obra não é cuidada, existem vazamentos de petróleo, mas o governo peruano continua dizendo que os indígenas são os culpados pelo desastre ambiental causado pelo óleo
[/g1_quote]O mercúrio é proibido no país, “mas ele chega contrabandeado do Brasil e do Suriname”, explica. “O governo francês sabe e não toma medidas efetivas para tentar resolver o problema. Tanto que foi o próprio Emmanuel Macron a dizer que não se podia fazer muito porque vem do estrangeiro (referindo-se ao mercúrio)”, disse Alemin. Os recentes incêndios na Amazônia brasileira serviram para colocar Macron na parede. “Como ele pode denunciar a destruição da floresta brasileira ou boliviana, se entrega 360 mil hectares de floresta para empresas multinacionais de mineração na Guiana Francesa, na Amazônia francesa?”
Para ele, a luta pela terra ainda tem muita estrada a percorrer. Para começar, a França não é signatária da convenção 169 que reconhece verdadeiramente os direitos dos povos indígenas. “Essa terra não é nossa, é do governo francês e das mineradoras, se nós as enfrentarmos, seremos presos!”, disse Alemin. “Se não fosse do governo francês o território, poderíamos defendê-lo para uma ecologia integral.”
Como em outros centros isolados, as grandes obras vêm acompanhadas das violações de direitos à alimentação, à educação e à moradia. São atreladas à prostituição e à escravidão moderna. Rosalin Fonki, representante dos Bushinengé (quilombolas), disse que a intenção é pedir à igreja católica que não proíba a nossa cultura, porque hoje existem comunidades evangélicas que não permitem que a nossa cultura seja replicada”.
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Formada pela Universidade São Judas Tadeu (SP), trabalha há 17 anos como jornalista e vive há 15 na Itália, onde fez mestrado em imigração, na Universidade de Veneza. Escreve para Estadão, Opera Mundi, IstoÉ e alguns veículos italianos como GQ, Linkiesta e Il Giornale di Vicenza. Foi gerente de projetos da associação Il Quarto Ponte, uma ONG que trabalha com imigração.