Lesão, mutilação e morte nos vinhedos

Uso do herbicida ameaça diversidade agrícola gaúcha; mas proprietário de lavouras de uva e soja prova que é possível produzir grãos com sucesso sem o herbicida

Por Liana Melo | ODS 15 • Publicada em 28 de maio de 2019 - 08:00 • Atualizada em 29 de maio de 2019 - 15:36

(Fotos: Mirian Fichtner) – A Guatambu Estância do Vinho, em Dom Pedrito, no Rio Grande do Sul, conquistou o título de a primeira vinícola da América Latina alimentada 100% por energia renovável. Seu diretor e proprietário, o médico veterinário Valter José Pötter, investiu R$ 1,3 milhão no empreendimento. O dinheiro foi praticamente ralo abaixo. O valor desembolsado no negócio representou a soma do prejuízo acumulado nos últimos três anos, desde que os primeiros sintomas da deriva do herbicida 2,4-D foram detectados nos seus vinhedos. “Estamos sofrendo um problema sério de deriva, de lesão, de mutilação e de morte dos parreirais”, lastima.

Estamos sofrendo um problema sério de deriva, de lesão, de mutilação e de morte de parreiras

Dono de seis propriedades, que, juntas, somam 11 mil hectares na região, ele escolheu o nome de uma árvore para batizar sua estância – Guatambu é uma madeira de lei, que, literalmente, é pau para toda obra. Ele vem conciliando três frentes de negócios: vitivinicultura, pecuária e sojicultura. Os vinhedos e a vinícola ocupam 36% da área, mas juntos respondem pelo maior retorno financeiro do grupo, empatando com os recursos gerados pelo gado, que, no entanto, se espalha por 50% da propriedade da família. A lavoura de soja ocupa 19% dos 11 mil hectares e contribui com 17% do grupo. Sem usar uma única gota de 2,4-D na lavoura de soja, Pötter vem registrando uma produtividade superior à média do município: 48 sacas por hectare contra 27  sacas por hectares, em Dom Pedrito. À frente de um negócio muito bem sucedidos, seu objetivo de vida, atualmente, é salvar a Guatambu do veneno que anda à espreita.

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Ao entrar na briga contra o uso do 2,4-D na lavoura de soja, Valter Pötter, de Dom Pedrito, virou um militante contra o herbicida. Foto de Mirian Fichtner

O risco de perder todo o parreiral, onde trabalha com oito variedades de uva, transformou Pötter num militante. Em nome do seu vinhedo de Chardonnay e Sauvignon Blanc, e das uvas tintas Tempranillo, Merlot, Tannat, Cabernet Sauvignon e Pinot Noir, o empresário declarou guerra ao 2,4-D. Ele entrou nessa briga de forma diplomática, usando a retórica para convencer vizinhos sojicultores a adotar um outro tipo de manejo. Três anos depois assumiu o radicalismo e virou, visceralmente, contrário ao uso do herbicida na lavoura de soja no Rio Grande do Sul. É do alto da sua longa experiência como produtor de soja, iniciada nos anos 1950, que Pötter decreta: “O 2,4-D precisa ser suspenso imediatamente”.

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A deriva do herbicida provocou escassez de matéria-prima, obrigando a Guatambu a fazer parcerias com pequenos produtores locais para dar conta da demanda do mercado. À procura pelos seus vinhos vem aumentando a uma média de 15% ao ano.

A situação é tão grave que estimamos que os nossos vinhedos podem ser completamente perdidos, caso sejam novamente atingidos pelo 2,4-D

“A situação é tão grave que estimamos que os nossos vinhedos podem ser completamente erradicados, caso continuem sendo contaminados pelo 2,4-D”, admite Pötter, preocupado com o fato de setembro estar chegando – mês em que os sojicultores iniciam o uso do herbicida na lavoura. A narrativa oficial contra a deriva zero é baseada na justificativa de que é impossível cultivar soja sem o agrotóxico. O empresário desmonta esse argumento. Sua lavoura é a prova cabal de que manejo de inverno é sim uma solução. Após a colheita da soja, no lugar de deixar a terra nua, ele, assim como alguns sojicultores gaúchos, plantam azevem, um tipo de gramínea que protege o solo e dificulta a proliferação da buva, a inimiga número um dos produtores de soja. Sem luz para proliferar, a erva daninha não se cria na cobertura vegetal. Outras opções são o plantio de aveia, cevada, centeio e trigo. Se, ainda assim, surgir uma pequena população de buva, outros produtos disponíveis no mercado dão conta de enfrentar a erva-daninha, sem prejudicar a plantação do vizinho.

Sem usar uma única gota de 2,4-D na lavoura de soja, o empresário rural Valter Pötter concilia diferentes culturas nas suas propriedade . Foto de Divulgação

Antes de assumir a luta contra o 2,4-D,  Pötter não era, exatamente, um militante radical: “Achava que era possível a convivência pacífica entre as duas culturas”. Mudou de ideia quando percebeu que a via diplomática não resolveria o problema e, muito menos, reverteria seu prejuízo, assim como de todo o setor.  As conversas com a vizinhança não deram em nada. “Tenho horror a brigar com vizinho”, admite, lembrando, que chegou a ouvir absurdos: “Não seria melhor irmos às compras no Uruguai”. Os vinhos do país fronteiriço ao Rio Grande do Sul são vendidos, sem imposto, no freeshop do município de Rivera, separado apenas por uma rua de Santana do Livramento, que fica a pouco mais de 90 quilômetros de Dom Pedrito.

Do pacote de oito medidas apresentada pelo governo estadual para tentar uma solução negociada entre a vitivinicultura e a sojicultura, Pötter desmontou uma a uma. São elas: treinamento específico, sistema de alerta da deriva, cadastro do aplicadores do 2,4-D, regulamentação para aplicação terrestre, cadastro e localização dos cultivos comerciais sensíveis, revisão das zonas sensíveis, criação de fundo de indenização e execução de técnico propositor a campo.

Vinhos da marca Guatambu. Foto de Divulgação

O diálogo se mostrou absolutamente inócuo. Pötter chegou a encaminhar cartas para os vizinhos produtores de soja, mas nada adiantou. A deriva do herbicida 2,4-D continuou e se repetiu no ano seguinte. Ele chegou, inclusive, a promover reuniões em sua casa, sugerindo oferecer treinamento para aplicação. Só dois produtores de soja de Dom Pedrito compareceram. A ideia de criar um sistema de alerta é, na prática, uma ficção. O próprio secretário estadual da Agricultura, Covatti Filho, já admitiu, recentemente, que uma das limitações para o uso mais amplo da tecnologia no campo é, justamente, a falta de conectividade no meio rural. Apenas 14% das lavouras brasileiras estão conectadas. Logo, sistema de alerta não teria como funcionar.

Outra medida apresentada foi a criação de um fundo de indenização. “De onde sairá o dinheiro para indenizar os produtores?”, questiona Pötter, preocupado com o fato que, se nada for feito, o Rio Grande do Sul perderá sua diversificação econômica, o que, na prática, é sinônimo de desenvolvimento e emprego. Apesar de participar com cifras milionárias na balança comercial brasileira, a lavoura de soja é um negócio altamente  concentrador de renda. Enquanto a sojicultura dá emprego a duas pessoas numa área de mil hectares; a cultura de maça, nessa mesma área, gera 550 postos de trabalho, entre diretos e indiretos.

Não podemos permitir que o estado fique refém de uma monocultura

Procurado por investidores estrangeiros, Pötter não esconde o problema que vem afetando a região. O efeito da deriva do 2,4-D está fazendo Dom Pedrito ganhar novos negócios. “Estamos andando de marcha-ré”, avalia. Ele já foi procurado por produtores italianos e espanhóis interessados em apostar na produção de kiwi, fruta é que praticamente importada na sua totalidade para ser vendida no país, e em oliveiras. Quando ouvem falar no 2,4-D, batem em retirada. “Nenhum país do mundo atingiu um alto desenvolvimento econômico sendo dependente de uma monocultura”. No caso da soja, fatores disruptivos como uma gripe suína na China ou uma overdose do produto no mercado internacional têm o poder de derrubar o preço da soja no mercado internacional como o 2,4-D nas parreiras dos vitivinicultores. “Não podemos permitir que o estado fique refém de uma monocultura”, sustenta.

Victória Mércio, da estância Paraízo, em Bagé, à frente de um negócio comandado pela família há mais de cem anos. Foto de Divulgação

Não bastasse estar no mesmo paralelo de grandes produtores mundiais, como Nova Zelândia, África do Sul, Uruguai, Argentina e Chile, a região da Campanha gaúcha, onde estão Dom Pedrito e Bagé, é responsável pelos vinhos finos no Brasil. “Estamos falando de uma indústria que, na verdade, produz em rede”, explica Victória Mércio, décima geração, junto com o irmão Thomaz, à frente da Estância Paraízo, erguida em 1790, em Bagé. Até os anos 2000, a propriedade era dedicada à pecuária e à agricultura, tendo iniciado a implantação de seus vinhedos nesta época. Não deter a contaminação dos vinhedos pelo 2,4-D no Rio Grande do Sul é perder um negócio que começa no campo e chega à mesa do consumidor. E gira elos de diferentes cadeiras produtivas. “Estamos falando de uma indústria que vai agregando valor na cadeia produtiva e gera emprego em todos os elos da cadeia do negócio”, conclui Valéria.

 

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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