A guerra e a guerra de Frans Krajcberg

Frans Krajcberg, em foto de 2005: atitude inegociável em defesa do meio ambiente, que pautou a maior parte de sua trajetória. Foto de Joel Robine (AFP)

Documentário sobre o artista plástico e ecologista que adotou o Brasil como pátria passeia por sua luta pela natureza com trágica atualidade

Por Aydano André Motta | ODS 13ODS 15 • Publicada em 10 de outubro de 2019 - 17:00 • Atualizada em 11 de outubro de 2019 - 03:58

Frans Krajcberg, em foto de 2005: atitude inegociável em defesa do meio ambiente, que pautou a maior parte de sua trajetória. Foto de Joel Robine (AFP)
Frans Krajcberg, em foto de 2005: atitude inegociável em defesa do meio ambiente, que pautou a maior parte de sua trajetória. Foto de Joel Robine (AFP)
Frans Krajcberg, em foto de 2005: atitude inegociável em defesa do meio ambiente, que pautou a maior parte de sua trajetória. Foto de Joel Robine (AFP)

Ao longo dos 96 anos de sua vida, Frans Krajcberg (1921-2017) jamais se esqueceu dos horrores da guerra. Judeu nascido na Polônia, teve a família assassinada barbaramente pelos nazistas e se engajou às tropas aliadas, forjando personalidade inconformada, questionadora – e formadora de sua obra como artista plástico, escultor, gravurista e fotógrafo.

Lutar, na verdade, seria seu destino.

Chegou ao Brasil em 1948, para a primeira Bienal de São Paulo, e encontrou o cenário da batalha definitiva de sua vida: a defesa inegociável do meio ambiente. Escolheu morar em lugares ermos, no contato mais íntimo possível com a natureza – de uma caverna em Itabirito (MG) à famosa casa na árvore em Nova Viçosa (BA).

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Toda a coerência de um artista corajoso e único sustenta a narrativa de “Frans Krajcberg – Manifesto”, documentário de Regina Jehá que chega aos cinemas nesta quinta-feira (10), exibindo trágica atualidade. Ao longo de 96 minutos, ele revê a própria trajetória, desfiando memórias e reflexões, enquanto prepara obras para expor no salão principal da 32ª Bienal, em São Paulo.

Frans conduziu vida e obra caminhando sempre juntas. O documentário é um manifesto dessa filosofia

“Olha como é lindo, como é exuberante. Eu que plantei tudo isso aqui”, relata, à câmera de Regina, sentado na varanda da casa, diante da vista opulenta da casa em Nova Viçosa. Num outro momento, dirigindo uma caminhonete, ele lamenta a devastação nas franjas da estrada – “plantaram eucalipto, que não gera vida; ali não tem nem mosquito”, ensina – e celebra a única árvore de pé, graças a protesto liderado por ele. Frans avisa que sempre a cumprimenta ao passar. “Boa tarde!”, grita, acenando com a mão para fora da janela.

O documentário atravessa quatro décadas da vida do artista transformado em relação ao pintor influenciado por Léger, Mondrian e Chagall, que chegou aqui. Incomodado com a dimensão pictórica, Frans investiu no relevo e na escultura, reformulando a ideia de representação ou interpretação da natureza. Passou a usar troncos de árvores, raízes aéreas de mangue, num mergulho revolucionário e sem volta.

Naturalizado brasileiro em 1956, viajou pelos rios da Amazônia com os amigos Sepp Baendereck e Pierre Restany, durante 21 dias de 1978, percorrendo a região do Alto Rio Negro – e cristalizou a certeza da luta pelo meio ambiente. A expedição foi inteiramente documentada por fotos e desenhos de Sepp, fotos e filmagens de Krajcberg e pelo diário pessoal de Restany, que escreveu o Manifesto do Rio Negro (ou Manifesto do Naturalismo Integral), assinado pelos três.

“A Amazônia constitui hoje, sobre o nosso planeta, o ‘último reservatório’, refúgio da natureza integral”, defende o texto. “Um contexto tão excepcional como o do Amazonas suscita a ideia de um retorno à natureza original. A natureza original deve ser exaltada como uma higiene da percepção e um oxigênio mental: um naturalismo integral, gigantesco, catalisador e acelerador das nossas faculdades de sentir, pensar e agir.”

Em viagem pelo Alto Rio Negro: impacto diante da exuberância amazônica marcaria o artista para sempre. Foto de divulgação

“Fiz o filme sob esses parâmetros”, explica Regina Jehá, cineasta paulista ligada à causa amazônica. “Frans conduziu vida e obra caminhando sempre juntas. O documentário é um manifesto dessa filosofia”, resume ela, que venceu a resistência do próprio artista para produzir.

“Eles queimam a floresta para dar espaço ao gado” denuncia Frans, numa entrevista em 1986 que poderia ter sido feita hoje. “Não pode. A riqueza disso aqui…”, lamenta, melancólico. Mas ele não desistiu. Denunciou queimadas florestais pelo Brasil todo; bateu na exploração mineral em Minas Gerais; atacou o desmatamento da Amazônia e a destruição da Mata Atlântica, incansavelmente. Lutou até morrer contra a destruição da natureza, bradando pela preservação do planeta e da humanidade.

“Ele era um lobo solitário”, atesta Regina. A produção sobre levou dois anos (entre 2016 e 2018) para ser concluída. Contou com imagens captadas para outro filme, “Poeta dos vestígios” (1998), de Walter Salles, e de entrevistas feitas por João Meirelles para um livro sobre o artista. O escritor, aliás, é autor da ideia do documentário.

E como Frans Krajcberg estaria hoje, diante das barbaridades que dominam o noticiário? “Que bom ele não estar aqui vendo isso”, resigna-se Regina, com um sorriso triste. “Mas ele deve estar feliz com o filme”, acrescentando, lembrando uma das frases definidoras do artista: “Só vai ter sentido se falar da minha luta”.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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