Dia Mundial do Meio Ambiente: direitos da natureza avançam no Brasil em meio a desafios

Câmara debate proposta para incluir reconhecimento na Constituição; saberes de povos originários apontam caminhos para mudar relação com o meio ambiente

Por Micael Olegário | ODS 14ODS 15 • Publicada em 5 de junho de 2024 - 09:34 • Atualizada em 11 de junho de 2024 - 09:52

Indígena observa Rio Negro quase seco durante estiagem histórica na Amazônia: debate sobre direitos da natureza para garantir meio ambiente equilibrado para humanos e não humanos, incluindo animais, rios, plantas e montanhas (Foto: Alex Pazuello / Governo do Amazonas – 21/10/2023)

“Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral”. Assim começa a saudação aos rios feita por Ailton Krenak na obra “Futuro Ancestral”. O filósofo e escritor, mais novo membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), defende uma outra forma de perceber a natureza, como um conjunto de entidades vivas. Segundo essa cosmovisão, os humanos compõem uma parte de um todo chamado Mãe Terra ou Pacha Mama. 

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Nesta terça-feira (04/06), uma audiência no plenário da Câmara dos Deputados discutiu a possibilidade de criação de um projeto para incluir os direitos da natureza na Constituição Federal, a exemplo do que já fazem países como Bolívia e Equador e alguns municípios brasileiros. “A natureza é o principal símbolo da nossa existência. Não vai existir planeta se não houver possibilidade de ter a terra, as águas e as montanhas como sujeitos de direitos”, afirmou a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG).

Autora do requerimento que levou a realização da audiência, Célia citou o desastre climático no Rio Grande do Sul como uma oportunidade para rever os projetos antiambientais que avançam no Congresso Nacional. “A natureza passa por um momento em que vomita todas as violências sofridas por ela, e as decisões do Congresso acentuam o estado de degradação ambiental” acrescentou a líder indígena.

A Amazônia, mas também a Caatinga, o Cerrado, o Pantanal e o Pampa, todos eles são sujeitos de direitos e as inter-relações entre eles e os diversos seres, não só humanos, têm que asseguradas

Vanessa Husson
Diretora-geral da ONG Mapas e doutora em Direitos da Natureza

Diretora-geral da ONG Mapas, Vanessa Husson apresentou um panorama sobre os locais que já aprovaram leis para reconhecer os direitos da Mãe Terra e/ou de rios no país e no mundo. Ao todo, existem mais de 300 casos em 40 países com leis ligadas ao paradigma. No Brasil, os pioneiros a considerarem a natureza como titular de direitos foram os municípios pernambucanos de Bonito, em 2017, e Paudalho, em 2018. 

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Florianópolis foi a primeira capital, as outras cidades que reconhecem os direitos da biodiversidade são: Serro (MG), Guajará-Mirim (RO), Alagoa Nova (PE), Porteirinha (MG) e Serranópolis (MG). Dois cursos de água também já tiveram seus direitos reconhecidos: o Rio Laje, em Rondônia (também chamado de Rio Komin Memem), e o Rio Mosquito, em Minas Gerais. Propostas semelhantes tramitam nas assembleias estaduais do Pará, Paraíba, Santa Catarina, Bahia e Minas Gerais.

A deputada Célia Xakriabá em audiência pública na Câmara: PEC para garantir direitos da natureza (Foto: Renato Simões / Câmara dos Deputados)
A deputada Célia Xakriabá em audiência pública na Câmara: PEC para garantir direitos da natureza (Foto: Renato Simões / Câmara dos Deputados)

O que diz a PEC da Natureza?

Um dos pontos que a chamada PEC da Natureza busca alterar é o artigo 225 da Constituição Federal, que diz: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. Vanessa Husson explica que, embora o texto reconheça o papel do poder público de preservar o meio ambiente, a visão é de uma natureza à disposição para ser usada e explorada. 

Precisamos plantar mentes e árvores e dar esperança para a futura geração. Para que, no amanhã, uma criança consiga ver um peixe no rio sem estar contaminado

Samuel Arara
Ativista indígena e estudante de Engenharia Florestal

A nova redação defenderia o meio ambiente equilibrado para humanos e não humanos, incluindo animais, rios, plantas e montanhas. A proposta também busca ressaltar a necessidade de igualdade na preservação de todos os biomas brasileiros. “A Amazônia, mas também a Caatinga, o Cerrado, o Pantanal e o Pampa, todos eles são sujeitos de direitos e as inter-relações entre eles e os diversos seres, não só humanos, têm que asseguradas”, destacou Vanessa, doutora em Direitos da Natureza pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Mais do que somente uma forma de enxergar os rios, árvores, plantas e animais, lideranças indígenas, ambientalistas e pesquisadores destacam a necessidade das mudanças na legislação como caminhos para fortalecer a preservação ambiental, reduzir a exploração e a visão da natureza como objeto, além de frear o colapso climático em curso no planeta. Na prática, esse reconhecimento permite que se escolham representantes para reivindicar a defesa destes direitos. 

Samuel Arara em manifestação pelos direitos dos indígenas: mobilização para defender a natureza e garantir que leis saiam do papel (Foto: Arquivo Pessoal)
Samuel Arara em manifestação pelos direitos dos indígenas: mobilização para defender a natureza e garantir que leis saiam do papel (Foto: Arquivo Pessoal)

Os desafios de defender o meio ambiente no Brasil

Como ressaltou Célia Xakriabá durante a audiência na Câmara, o Brasil tem andado (e em muitos aspectos corrido) na contramão da preservação meio ambiente, como mostram as ações de parlamentares no Congresso Nacional, com a proposição das leis do Pacote da Destruição, mas também pelas ações do governo federal, com a incessante busca por explorar petróleo na Foz do Amazonas. Tudo isso sem citar as diversas ações antiambientais de políticos conservadores e de extrema-direita nos estados e municípios.

“Será que vamos matar todos os rios? Vamos fazer com que todos esses seres maravilhosos, resilientes e capazes de esculpir pedras se convertam em risco para a vida e desapareçam?”, questiona Ailton Krenak em seu livro. Para o ativista e comunicador indígena Samuel Arara, 23 anos, estamos apenas de passagem pelo planeta, por isso, cada ser tem a responsabilidade de preservar o futuro para as próximas gerações.

Queremos criar uma outra civilização que não seja uma civilização do consumo e do capitalismo pós-industrial. Precisamos ter uma sociedade baseada na sustentabilidade. E essa perspectiva não consumista decolonial é a que avança na perspectiva dos direitos da natureza

Manoel Severino Moraes de Almeida
Professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)

“Precisamos plantar mentes e árvores e dar esperança para a futura geração. Para que, no amanhã, uma criança consiga ver um peixe no rio sem estar contaminado”, afirma Samuel, do povo Shawãdawa-arara, da Terra Indígena Arara do Igarapé Humaitá, localizada no município de Porto Valdez, no Acre. O desejo de cuidar do seu território, herança de seus ancestrais, fez o jovem ingressar no curso de engenharia florestal na Universidade Federal do Acre (UFAC).

Samuel relata que escolheu o curso com objetivo de entender melhor como funcionam as leis ambientais no Brasil. Segundo ele, o conhecimento científico é uma forma de se preparar melhor para enfrentar as dificuldades relacionadas à demarcação das terras e a luta pela manutenção das florestas em pé. “Estamos nesses espaços também para usar o nosso conhecimento ancestral e, ao mesmo tempo, fazer com que a lei não fique só no papel”, acrescenta o ativista indígena, que também integra a rede de comunicação indígena Tetepawa.

O que significa reconhecer os direitos da natureza?

Os direitos da natureza são um paradigma que tem como base a cosmovisão dos povos originários, a exemplo das reflexões e ensinamentos de Ailton Krenak. Um dos primeiros pontos para o entendimento do debate em torno dessa proposta tem a ver com reconhecer a influência do processo de colonização na sociedade contemporânea. Conforme descreve o professor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Manoel Severino Moraes de Almeida, o período colonial deixou marcas na atualidade, entre elas a visão da natureza como um conjunto de recursos a serem explorados e a construção de cidades na margem de rios. 

O avanço dos eventos extremos climáticos tem como implicação direta um aumento das desigualdades sociais. Os deslocados climáticos são as pessoas que morreram, que sofreram e continuam a sofrer pelo negacionismo da ciência e da natureza como entidade relevante

Frederico Salmi
Sociólogo e pesquisador da UFRGS

Diante deste contexto, o especialista e co-autor de livros como “Direitos da Natureza: Marcos para a construção de uma teoria geral”, aponta a necessidade de incluir uma perspectiva decolonial no direito e na legislação brasileira. “Queremos criar uma outra civilização que não seja uma civilização do consumo e do capitalismo pós-industrial. Precisamos ter uma sociedade baseada na sustentabilidade. E essa perspectiva não consumista decolonial é a que avança na perspectiva dos direitos da natureza”, explica Manoel Severino, que também é coordenador da Cátedra Unesco/Unicap Dom Helder Câmara para os Direitos Humanos.

Um outro elemento importante ao se considerar essa discussão está em buscar novos olhares para além das necessidades humanas imediatas, ou seja, abandonar a ideia de cidades provisórias e construir infraestruturas considerando a questão ambiental e climática. Sociólogo e pesquisador do Grupo Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (Temas/UFRGS), Frederico Salmi lista algumas das questões que surgem a partir do momento em que a natureza passa a ser entendida como uma entidade viva e titular de direitos.

“Passa a não ser apenas humanos pensando a partir de uma perspectiva humana, da necessidade de mais cidades e infraestruuras de concreto, por exemplo. Se eu desloco o olhar para a natureza e aí entram os seus direitos, posso pensar: será que a natureza precisa de matas ciliares? De mais área úmida? Onde é que estão os rios? Como é que os rios fluem de maneira natural, dentro de uma topografia milenar?”, complementa Frederico Salmi.

Porto Alegre submersa pelas chuvas: assegurar direitos da natureza para mitigar desastres climáticos (Foto: Rafa Neddermeyer / Agência Brasil - 18/05/2024)
Porto Alegre submersa pelas chuvas: assegurar direitos da natureza para mitigar desastres climáticos (Foto: Rafa Neddermeyer / Agência Brasil – 18/05/2024)

Mitigar desastres e adiar o fim do mundo

Um exemplo prático de como esse paradigma poderia gerar efeitos na realidade está na definição do Guaíba, curso de água que inundou a região metropolitana de Porto Alegre, como rio ou lago, isso porque a legislação permite construções mais próximas das margens de lagos em relação aos rios. “Quando se inclui a natureza como ator principal, tem-se um outro tipo de governança e, consequentemente, um outro tipo de pauta política”, aponta o pesquisador da UFRGS. Na visão de Frederico Salmi, a catástrofe climática e política que atingiu o Rio Grande do Sul é um exemplo dos resultados do esquecimento e invisibilidade da natureza na construção de cidades e na elaboração de políticas públicas.

Em resumo, o reconhecimento dos direitos da natureza gera alterações no modo de ocupar territórios e pensar ações de médio e longo prazo que ajudem a mitigar os efeitos das mudanças climáticas. “O avanço dos eventos extremos climáticos tem como implicação direta um aumento das desigualdades sociais. Os deslocados climáticos são as pessoas que morreram, que sofreram e continuam a sofrer pelo negacionismo da ciência e da natureza como entidade relevante”, destaca o sociólogo gaúcho.

Frederico Salmi pontua também que a reconstrução das cidades afetadas pelas enchentes no estado é uma oportunidade para uma mudança de paradigma em prol do equilíbrio com o meio ambiente. “Será que vamos chamar comunidades quilombolas para pautar política climática? Será que vamos chamar os povos originários do Rio Grande do Sul? Será que vamos chamar a população periférica?”, questiona.

As demonstrações antigas e recentes de parlamentares e gestores brasileiros indicam um cenário desafiador. Questionado sobre esse contexto, Manoel Severino cita os ensinamentos de Ailton Krenak e destaca a importância da educação como um caminho para fazer com que as pessoas compreendam a biodiversidade como algo constituinte em suas vidas. “Nós temos um intelectual indígena na Academia Brasileira de Letras, então eu acho que a sociedade está dando passos na perspectiva decolonial, agora são passos ainda pequenos diante do desafio e da urgência climática que nós estamos vivendo”, ressalta.

Ainda de acordo com o pesquisador da Unicap, junto a isso é igualmente necessário enfrentar outros problemas característicos do Brasil. “Nós precisamos tratar disso a partir de uma perspectiva sistêmica e internacional, porque nós somos ainda uma sociedade bastante dividida, marcada pelo racismo estrutural, que é outra consequência do processo colonial”. Só deste modo, defende Manoel Severino, será possível aprimorar a compreensão, primeiro dos direitos humanos e, consequentemente, sobre direitos da natureza no país.

Pantanal em chamas com 880 focos de queimadas em 2024: agronegócio barrou iniciativa de município pantaneiro pelos direitos da natureza (Foto: Silas Ismael / WWF Brasil)
Pantanal em chamas com 880 focos de queimadas em 2024: agronegócio barrou iniciativa de município pantaneiro pelos direitos da natureza (Foto: Silas Ismael / WWF Brasil)

Agronegócio barra iniciativa de cidade pantaneira

Em julho de 2023, a cidade de Cáceres, no Mato Grosso, chegou a se tornar a primeira no Pantanal a ter legislação do tipo. O PLO nº 3/2023 foi aprovado com assinatura de 10 dos 15 vereadores do município, além da participação de membros da comunidade e movimentos sociais, como o Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad). Porém, a medida foi revogada apenas duas sessões após sua implementação.

Com cerca de 89 mil habitantes, Cáceres faz fronteira com a Bolívia e é atravessada pelo rio Paraguai, a economia local é baseada principalmente na agropecuária. Segundo revelou o servidor público e vereador Cézare Pastorello (PT), autor da proposta, a derrubada da medida partiu da insatisfação de membros do Sindicato Rural de Cáceres, alegando a suposta inconstitucionalidade da emenda feita na lei orgânica do município.

Diante da pressão do agronegócio, muitos vereadores mudaram de posição e a lei foi oficialmente revogada em 14 de agosto de 2023. Conforme disse Cézare, a intenção de fazer valer o projeto continua, seja pelas vias jurídicas e, também pelo trabalho em conjunto com movimentos sociais e ambientais. “Os pecuaristas reclamam da seca, mas foram eles que deram a entender que se respeitássemos os direitos da natureza, eles iriam se prejudicar. Mas não seriam prejudicados”, acrescenta o vereador

Os exemplos de vizinhos latino-americanos

Tanto a proposta que busca incluir o paradigma da biodiversidade como entidade viva na Constituição brasileira, como as legislações aprovadas por municípios têm como inspiração os exemplos de países vizinhos da América Latina. Nações com forte tradição e participação política dos povos originários, o Equador, pioneiro em 2008, e a Bolívia, desde 2010, foram os primeiros a reconhecer os direitos da natureza.

Em outros países como Colômbia, Argentina, Índia, Nova Zelândia, França e Canadá, legislações semelhantes também protegem rios, florestas e animais. De acordo com Frederico Salmi, o avanço desse paradigma colabora para o reconhecimento de nações plurais no caso da América Latina. “O Brasil, nessa concepção de direitos da natureza, poderia ser encarado como um país plurinacional, uma vez que cada terra indígena tem toda uma lógica de relação com a natureza diferente”, afirma o pesquisador.

O sociólogo também salienta a importância do país ratificar o Acordo de Escazú. Com nome oficial de Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe, o Acordo de Escazú foi o primeiro tratado regional a prever a necessidade de instrumentos legais de proteção da natureza. Apesar do Brasil ter assinado o documento elaborado em 2018 na Costa Rica, o país ainda não ratificou a validade do acordo no âmbito nacional. 

No final do livro “Futuro Ancestral”, Ailton Krenak destaca a necessidade de fazer com que nossos corações batam no ritmo da terra. “Trata-se de sentir a vida nos outros seres, numa árvore, numa montanha, num pássaro”, explica o filósofo indígena. Essa perspectiva já faz parte do contexto dos povos indígenas, resta o desafio de ampliar e ouvir essas vozes. “Não é só uma floresta ou uma árvore de pé. É toda uma história, tem uma identidade nossa também. A floresta faz parte de nós”, afirma Samuel Arara.

 

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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