Da tilápia ao Aedes aegypti, os desafios das espécies invasoras no Brasil

O sagui-de-tufo-preto, encontrado em florestas no sul do país, é uma das mais de 500 espécies invasoras registradas no Brasil. Foto Sílvia Ziller

Relatório da Plataforma Brasileira de Biodiversidade mostra que país abriga mais de 500 espécies invasoras que podem causar impactos à saúde e ao ambiente

Por Amelia Gonzalez | ODS 14ODS 15 • Publicada em 29 de maio de 2024 - 09:43 • Atualizada em 7 de junho de 2024 - 22:44

O sagui-de-tufo-preto, encontrado em florestas no sul do país, é uma das mais de 500 espécies invasoras registradas no Brasil. Foto Sílvia Ziller

O Brasil tem, em média, três milhões de cabeças de búfalos, a maioria no Pará. Embora globalmente haja 19 raças desses animais, o país tem apenas quatro: Mediterrânea, Jafarabadi, Carabao e Murrah. O búfalo tem origem indiana e é considerado um bicho tranquilo. Em 2022, a bubalinocultura contribuiu com R$ 39,7 milhões para o Valor Bruto da Produção (VBP) do Paraná.

A tilápia é uma espécie de peixe muito usada na dieta de moradores dos estados do Nordeste. De origem africana, ele representa 60,8% (R$ 3,5 bilhões) do valor da produção de peixes. No Brasil, o maior produtor de tilápia é o município de Nova Aurora, no Paraná. Em 2021, o VBP da produção de peixes em Nova Aurora ficou em R$ 163,5 milhões.

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Apesar de serem potencialmente necessários para a economia de algumas regiões,  búfalos e tilápias estão na lista de Espécies Exóticas Invasoras, uma das cinco maiores causas de perda de biodiversidade em escala global. O dado é do Relatório Temático Sobre Espécies Exóticas Invasoras, Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, lançado recentemente pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES), que agrega 120 especialistas. O estudo expõe, como percebemos, mais um dos enormes desafios da nossa era.

As espécies exóticas invasoras são introduzidas pela ação humana, intencionalmente ou não. Causam impactos nos âmbitos econômico, social e ambiental, além da saúde humana. Há também impactos positivos, mas a questão é que, enquanto os impactos positivos são para pequenos grupos, os impactos negativos atingem, quase sempre, toda a população. Como é o caso das epidemias. Vivemos atualmente uma epidemia de dengue no Brasil, causado pelo mosquito Aedes aegypti, espécie exótica trazido pelos navios negreiros.

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Segundo o Relatório, até o final de 2023 havia registro de mais de 500 Espécies Exóticas Invasoras no Brasil – 208 plantas e algas e 268 animais e um volume não determinado de fungos e microorganismos – um número em contínuo processo de atualização e que não para de crescer. Estima-se que, se o processo não for revertido, haja um aumento de 20 a 30% nesse número até o fim do século. Os peixes, como a tilápia e o tucunaré, têm cerca de 126 desses registros. Outros exemplos são o javali, o mexilhão-dourado, o sagui,  que  vieram de regiões longínquas, como África e Sudeste Asiático.

Das mais de 500 Espécies Exóticas Invasoras no Brasil, 208 são plantas e algas e 268 são animais de diversas espécies, entre eles o caracol-gigante-africano. Foto Rafael D. Zenni
Das mais de 500 Espécies Exóticas Invasoras no Brasil, 208 são plantas e algas e 268 são animais de diversas espécies, entre eles o caracol-gigante-africano. Foto Rafael D. Zenni

Os dados dão conta ainda que, em 35 anos, entre 1984 e 2019, o prejuízo causado por apenas 16 dessas espécies foi de pelo menos US$ 105 bilhões. Não foram feitos cálculos para as outras espécies.

O Relatório foi feito por 73 autores brasileiros, de 40 instituições diferentes, e tem 300 páginas. A bióloga Michele de Sá Dechoum, professora adjunta do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina, foi uma das acadêmicas que apresentou a publicação na entrevista coletiva do dia 1 de março. Segundo ela, foram três anos de trabalho:

“Temos Espécies Exóticas Invasoras (EEI) em todos os biomas, principalmente nos ambientes mais degradados, mas nem os ambientes conservados estão imunes, já que foram detectadas EEI em cerca de 30% das Unidades de Conservação, principalmente na Mata Atlântica. Há dados sobre plantas e animais, mas ainda não temos muito conhecimento sobre fungos e microorganismos”, disse ela.

Das mais de 500 EEI, segundo o Relatório, 239 resultaram em 1004 registros de evidências de impactos negativos e só 33 positivos, pontuais e de curta duração. Entre os impactos negativos, o maior deles é o que causa danos à saúde humana:

“Espécies têm sido introduzidas em novos territórios desde as primeiras ondas de migração e deslocamento humano. Nas Américas, a introdução de Espécies Exóticas de forma intencional ou não intencional tem como marco temporal as Grandes Navegações e invasões europeias, a partir da segunda metade do século XV. Desde então, foram registradas diversas espécies que se ajustaram e se incorporaram a costumes regionais e às comunidades biológicas sem, no entanto, terem seus impactos documentados de forma científica, diferentemente daquelas que se tornaram mais problemáticas, como o mosquito-da-dengue Aedes aegypti”,  diz o Relatório.

Elas podem ser introduzidas, de forma não intencional, por exemplo, por pessoas que fazem trilhas em florestas e levam nas solas dos sapatos alguns micro-organismos. Portos, aeroportos, locais de grande fluxo de pessoas também podem ser reduto de espécies exóticas. Apesar de existir uma regulação para a importação de muitas dessas espécies, o comércio eletrônico muitas vezes consegue burlar, movimentando comercialização ilegal principalmente de plantas e de peixes para o aquarismo.

Regular é necessário

O fato de algumas espécies carismáticas integrarem listagens de Espécies Exóticas Invasoras é um problema. Um bom exemplo? Cães e gatos. Ou ainda primatas e outros mamíferos e aves. Como é óbvio, isto “gera resistência do público em geral na aceitação de que possam ser um problema ambiental”, diz o Relatório.

“Da mesma forma, espécies amplamente utilizadas em sistemas produtivos geram resistência de setores econômicos à adoção de medidas de controle ou responsabilidade por escapes e danos ambientais, econômicos e sociais”.

Implantar microchips em cães e gatos pode ser parte da solução para quem nem quer pensar na possibilidade de ficar sem seu pet. “É uma necessidade frente ao amplo registro de impactos derivados da entrada desses animais em áreas naturais, seja em função de predação de animais nativos ou do potencial de transmissão de doenças”, diz o Relatório.

Situações absurdas, como transformar uma tartaruga tigre d´água em animal de estimação, exige regulamentação urgente. Outra atividade que requer regras é o paisagismo, já que “mais da metade das plantas exóticas invasoras presentes no Brasil foram introduzidas” para este fim.

O mexilhão-dourado ou Limnoperma forturei vem sendo encontrado em áreas de usinas hidrelétricas. Foto Beloni Marterer
O mexilhão-dourado ou Limnoperma forturei vem sendo encontrado em áreas de usinas hidrelétricas. Foto Beloni Marterer

Vale registrar que um grande problema, nesses casos, é a transmissão de zoonoses.

“É facil, para a maioria da população, entender o desmatamento. Mas é dificil quando o prejuízo vem de espécies que têm valor afetivo e economico, o caso de saguis, da tilápia e até mesmo de cães e gatos”, comentaram os especialistas na entrevista.

Mas nem sempre as espécies exóticas chegam de países distantes. O tucunaré, por exemplo, tem como habitat natural a Bacia Amazônica, foi introduzido primeiro no Nordeste, depois no Sudeste e agora tem até no Rio Grande do Sul. A prática de pesca desportiva foi a responsável pela dispersão desse peixe, “um dos predadores de maior risco, porque extingue espécies por predação”.

Embora tenha 20% das espécies de peixes globalmente, a Região Amazônica foi alvo da introdução de 21 espécies exóticas. Mas, se comparadas com outras regiões, ela é menos invadida. A Mata Atlântica é a que sofre maior impacto.

Estudos mostram que as Espécies Exóticas invasoras têm mais capacidade de adquirir nutrientes do que as espécies nativas, o que as deixa em franca vantagem. Seus nutrientes podem vir de esgotos e da lixiviação de fertilizantes nos solos. As mudanças climáticas também podem não interferir na sobrevivência dessas espécies. O aumento da concentração de CO2, por exemplo, pode trazer vantagem para muitas delas.

O que fazer?

A sugestão dos analistas é incorporar o assunto na vida do cidadão comum, já que o conhecimento do problema pode ser  o primeiro passo para a prevenção. Crianças devem saber desde cedo o que são espécies exóticas, o tema precisa ser incorporado no âmbito de políticas municipais, estaduais e federais de conservação da biodiversidade e de incentivo a sistemas produtivos.

“No cenário futuro, que não pode ser distante, é preciso permear o tema a todos os níveis de gestão e de prática para mitigar impactos presentes e futuros de invasões biológicas e prevenir problemas crescentes”, sugerem os pesquisadores.

Michele Dechoum lembrou que as políticas de governança, neste caso, às vezes são equivocadas. Isto acontece, por exemplo, quando o governo incentiva a utilização de tilápias. Ou ainda, quanto há o estímulo para o afundamento de estruturas no mar, como navios, tanques, aviões, para incentivar o turismo náutico.

“Substratos artificiais em ambiente marinho são porta de entrada de Espécies Exóticas Invasoras’, disse ela.

Como se vê, a tarefa para se controlar a invasão dessas espécies exóticas é árdua. Não basta regular, é preciso que as pessoas estejam convencidas do mal que os pesquisadores apontam, sobretudo quando, para elas, as exóticas só tragam coisas boas.

Tempos difíceis.

Amelia Gonzalez

Jornalista, durante nove anos editou o caderno Razão Social, encartado no jornal O Globo, que atualizava temas ligados ao desenvolvimento sustentável. Entre 2013 e 2020 foi colunista do G1, sobre o mesmo tema. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde as questões relacionadas ao meio ambiente, ao social e à governança são tratadas sempre com ajuda de autores especialistas.

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