ODS 1
O bioma esquecido: devastação do Pampa ameaça comunidades rurais
Avanço do agronegócio da soja e proposta de construção de mineradoras são desafios para a preservação do campo nativo
Avanço do agronegócio da soja e proposta de construção de mineradoras são desafios para a preservação do campo nativo
Antes mesmo dos primeiros raios de sol, a água já está esquentando no fogão à lenha dos pecuaristas familiares que vivem no pampa gaúcho, na região chamada de Campanha, sudoeste do Rio Grande do Sul. Depois da primeira cuia de chimarrão do dia, é hora de encilhar o cavalo e partir para o campo, dar conta do rebanho de gado ou ovelha, que garante o sustento de milhares de famílias em todo o estado. No caminho até o pasto, em algumas regiões do Pampa é possível colher butiá, fruta típica apreciada no estado inteiro, ou então folhas de gravatá do banhado para o artesanato.
No entanto, a lida campeira e o modo de vida tradicional dos pequenos pecuaristas, agricultores familiares, quilombolas e demais comunidades rurais da região estão ameaçados – a devastação do bioma segue a galope, alavancada pelo avanço da monocultura de soja na região. Segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgado em junho de 2019, 43,7% da vegetação nativa já haviam sido suprimidos até 2016.
A situação se agravou nos últimos anos, obrigando muitos agricultores familiares a abandonarem sua atividade por pressão econômica. Para completar, no outono de 2020, eles começaram a sentir os primeiros efeitos da estiagem histórica que se impõe sobre o estado desde outubro de 2019. Com a falta de chuva, o pasto nativo cresceu pouco, gerando incertezas sobre a situação financeira dos milhares de pecuaristas familiares, que estão em processo inicial de reconhecimento como comunidade tradicional do país. A atividade depende diretamente do pasto natural, que alimenta o gado criado livre nos campos do extremo-sul do Brasil e no Uruguai há séculos, um modo de vida preservado por essas comunidades.
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Veja o que já enviamosContemplar o horizonte no Pampa é uma experiência única. Na imensidão plana formada por gramíneas e arbustos, às vezes é preciso percorrer grandes distâncias para visitar a propriedade vizinha. É erro recorrente no senso comum, contudo, acreditar que esses campos são “um imenso vazio”. Com planícies, serras e coxilhas, o Pampa é formado por uma biodiversidade com cerca de 3 mil espécies de plantas, 500 espécies de aves e também animais terrestres, incluindo espécies endêmicas, como o Tuco-tuco (Ctenomys flamarioni), o beija-flor-de-barba-azul (Heliomaster furcifer) e o sapinho-de-barriga-vermelha (Melanophryniscus atroluteus). “Importante reconhecer que o Pampa, embora dominado pela vegetação herbácea, está longe de ser homogêneo e uniforme. Ao contrário, existem diversas formações campestres, cada uma com sua fisionomia e diversidade típicas”, explica Gerhard Overbeck, professor no Departamento de Botânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. No bioma, também está o Aquífero Guarani, uma das maiores reservas subterrâneas de água do mundo.
Reconhecido oficialmente pelo governo federal como bioma em 2004, no Brasil o Pampa está exclusivamente no Rio Grande do Sul, ocupando originalmente 178 km², o que corresponde a 63% da área do estado e a 2% do país. Em terras uruguaias e argentinas, encontra-se a origem do nome do bioma, que remonta ao idioma Quéucua, significando “área extensa, sem limites”.
O modo de vida dos povos do campo está à frente da preservação dessa biodiversidade. A ação do gado, quando criado de forma extensiva, é benéfica às principais espécies de gramíneas e leguminosas. “Estudos demonstram que, sob exclusão do gado, a vegetação se transforma. Poucos arbustos ou gramíneas se tornam dominantes, excluindo grande parte da riqueza vegetal. A exclusão de gado também acarreta perda de habitat para outras espécies que dependem desta vegetação tipicamente campestre, por exemplo, aves ou insetos”, avalia o professor da UFRGS, alertando para a crescente devastação do campo.
Chefe do Centro Regional Sul de Pesquisas Espaciais do Inpe, Tatiana Kuplich relata que desde 1998 existem dados obtidos por monitoramento via satélite sob a conversão do Pampa em monocultura de soja. “Mas em 2015 o governo lançou o projeto Biomas, pensando na conservação de todos os biomas brasileiros. O Pampa é um dos únicos em que a ação humana, por meio do pastoreio, mantém o campo. E pode-se dizer que nos últimos anos o quadro está se modificando”, atesta a pesquisadora, ressaltando a questão cultural do protagonismo do gaúcho e de sua lida campeira para a conservação da vegetação nativa. Outro dado preocupante é relativo às queimadas na região: o Inpe registrou aumento de 343% no número de ocorrências no primeiro semestre de 2020, em relação ao mesmo período no ano anterior.
É também no bioma que estão em andamento pelo menos dois projetos de mineração que devem modificar o modo de vida das populações rurais e urbanas da região. Na região de Três Estradas, a 400 quilômetros de Porto Alegre, projeto de exploração de fosfato vem sendo questionado por inconsistências nos estudos de impacto ambiental realizados pela empresa Águia Fertilizantes, entre eles a possibilidade de construção de duas barragens de rejeitos em áreas habitadas por pecuaristas familiares, além das consequências para os rios e riachos locais.
Os repórteres estiveram na região de Três Estradas antes da pandemia e conversaram com a população rural, ambientalistas e moradores das cidades de Dom Pedrito e Lavras do Sul, nos quais a plantação de soja alcança cada vez mais terrenos. Agropecuaristas familiares da região se dizem economicamente pressionados a abrirem mão de seu modo de vida e migrarem para o cultivo do grão, sobretudo desde 2019, quando o estado passou a enfrentar a pior estiagem dos últimos anos. Nas entrevistas, alguns nomes foram alterados para preservar a identidade das fontes.
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Rafael Gloria e Thaís Seganfredo
Editores do site Nonada – Jornalismo Travessia e diretores da agência Riobaldo Conteúdo Cultural. Rafael Gloria é formado em Jornalismo pela UFRGS, com especialização em jornalismo digital pela Puc-RS e mestrado em Comunicação pela UFRGS. Já escreveu para veículos como Jornal Metro, Correio do Povo e Jornal do Comércio. Thaís Seganfredo e graduada em Jornalismo pela UFRGS e já colaborou para veículos como o Jornal do Comércio/RS e a revista Mais Sebrae RS, além de ter experiência com assessoria de comunicação nas áreas jurídica e sindical.
Muitas pessoas olham o nosso Bioma Pampa e pensam que ele foi “desmatado”, associando essa ação à falta de árvores nas áreas de campo nativo. Falam que é preciso replantar florestas. Há uma inegável e terrível devastação, mas há muita confusão. Há muito equívoco. É preciso conservar nosso bioma sem descaracterizá-lo! Campo nativo com várias espécies de gramíneas, mata ciliar com as espécies de árvores nativas… Enfim, sei que desmatar significa acabar com a vegetação nativa, mas muita gente confunde e quer resolver nosso problema de degradação arborizando áreas de vegetação nativa, que muitas vezes, não são compostas de árvores! Uma matéria que clareasse esses conceitos seria muito bem vinda!