Sonhos alagados pelas enchentes

Sonhos alagados pelas enchentes

Da esquerda para a direita, as irmãs Eliangelys Elizabeth, Angela Lúcia e Ellianys Esther, repetem o ritual de trançar os cabelos compridos, hábito trazido da Venezuela pela mãe. Foto Anna Ortega | Instagram: @annaortega_c

Chuvas recordes no Sul deixam famílias desabrigadas, crianças sem escola e futuro incerto

Por Camila Saccomori | ODS 13 • Publicada em 22 de outubro de 2024 - 00:04

Ainda são visíveis nas ruas as marcas da maior enchente do Rio Grande do Sul, registrada em maio deste ano, em uma tragédia que atingiu 95% dos municípios gaúchos, afetando milhões de pessoas. As fortes chuvas que se abateram sobre o Estado deixaram quase 200 mortos e 600 mil desabrigados. Famílias perderam suas moradias, seus empregos, sua paz. O barulho de água, que um dia trouxe calma, hoje traz medo: uma pesquisa recente do Hospital de Clínicas de Porto Alegre mostra que 42% dos gaúchos relatam sintomas de estresse pós-traumático desde maio.

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Visitamos alguns dos locais mais atingidos, como o bairro Sarandi, em Porto Alegre, e a cidade de Eldorado do Sul, na região metropolitana, que teve quase 100% de sua área inundada. Passados cinco meses, as memórias são vívidas, narradas com lágrimas nos olhos de quem as conta, como a família González, vinda da Venezuela em busca de um futuro próspero. Após poupar por anos para ter seu cantinho, Eugenia viveu só por 5 meses no local até ter que deixa-lo às pressas. Hoje vive com as três filhas em um abrigo provisório, sem saber quando terá um lar novamente. Também Priscila, à época grávida e agora mãe de 6 crianças, precisou sair em meio ao temporal, voltando após 15 dias para dormir na casa mesmo alagada e sem luz, torcendo por dias melhores.

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Na última semana de setembro, quando saímos a campo para fotografar e entrevistar esses personagens, novos temporais atingiram o RS, desalojando centenas de gaúchos. No auge da crise, Porto Alegre chegou a ter mais de 15 mil pessoas em abrigos públicos. A população mais pobre, negra e com menor escolaridade, foi a que mais sofreu perdas de patrimônio e renda, mostra pesquisa Datafolha. Não é à toa que 3 em cada 10 moradores do RS declararam que pensam em mudar de casa em razão dos eventos climáticos.

Imigrantes perdem tudo

Duas lascas de azulejos cravadas na encosta do arroio serviam para monitorar a altura da água na frente da casa de Eugenia Mercedes Totesaut González, 32 anos, na rua de chão batido no bairro Sarandi, em Porto Alegre. Ela e os vizinhos próximos, a maioria também imigrante da Venezuela, batiam fotos do “nível” informal e compartilhavam no grupo de WhatsApp. Em outras ocasiões a chuva deixou o acesso às casas alagado, problema que durava horas ou dias. Mas a noite de 2 de maio de 2024 bateu todos os recordes. Foi a última vez em que Eugenia e as três filhas dormiram em casa. Desde então, vivem em um abrigo temporário, com outras centenas de desalojados.

O telhado havia cedido com a força do temporal, deixando só um cômodo coberto. A água já tomava conta do chão em um cômodo de 5 metros quadrados. Em cima da cama de casal, as três filhas de Eugenia, seu marido e a irmã recém-chegada da Venezuela com um filho pequeno se encolhiam esperando a chuva passar. Receberam o alerta geral para deixar o bairro. Já não se viam mais aqueles pedaços de azulejo marcando o nível seguro do arroio.

A família chegou a um abrigo improvisado por voluntários, que também começou a alagar. No dia seguinte, foram em um ônibus da prefeitura a outro espaço. Só haviam levado seus documentos e poucas mudas de roupa na mochila, imaginando que voltariam em breve: “A gente não sabia que iria perder tudo. Como alguém iria imaginar isso? Foram anos economizando para comprar uma casa e moramos só cinco meses lá”, conta Eugenia, graduada como engenheira química petroleira na Venezuela, de onde saiu há 8 anos em busca de melhores oportunidades.

Sozinha com as três filhas ainda pequenas, havia morado em Roraima, onde fazia bicos e chegou a passar alguns meses em situação de rua até vir para Porto Alegre. Acolhida pela comunidade imigrante do Sarandi e ao lado do companheiro também venezuelano, comemorava o lar conquistado com renda de faxina, empréstimo e o trabalho de costureira autônoma. Da última peça que costurou só sobrou a foto no celular, um conjunto de moletom bege. A máquina Singer teve perda total, pois a água chegou a 1,5 m de altura dentro de casa.

Como vamos voltar sabendo que tudo pode acontecer novamente?

Eugenia Mercedes
Engenheira

Um mês depois da tragédia, em uma volta de barco, Eugenia e os vizinhos descobriram que as casas haviam sido saqueadas: botijões de gás, motores de geladeira, tudo que ainda tinha restado foi levado. “Parecia que todos os nossos pertences tinham sido colocados em um liquidificador, com barro e limo por cima”.

A mãe poupou as filhas da real dimensão das más notícias. Eliangelys Elizabeth, de 9 anos, Angela Lúcia, 11, e Ellianys Esther, 12, só souberam da situação da casa em agosto. Até então, estavam sem aulas presenciais também. Não tinham mais seus materiais escolares e sentiam falta dos colegas e de estudar, cada uma com sua disciplina favorita. Eliangelys adora Geografia, Angela gosta de Ciências e Ellianys, cuja língua materna é o espanhol, ama Português. A Escola Municipal Presidente João Goulart, submersa por muitas semanas, foi a última a retomar as atividades na capital. Agora todos os dias a van escolar leva e traz as meninas até o abrigo, que é chamado de Centro de Acolhimento.

Mas o acolhimento que a família González mais agradece é o da escola, dos professores e funcionários, disponíveis a dar apoio à comunidade, principalmente o emocional. Incontáveis vezes Eugenia sofreu xenofobia desde que chegou ao Brasil. Tudo o que deseja é que as filhas não sejam discriminadas. E que aproveitem as oportunidades de estudo aqui no país.

O retorno para casa é incerto. A família está sem renda: Eugenia precisaria de uma nova máquina de costura para voltar a trabalhar, enquanto o marido recebe seguro-desemprego e busca vaga na construção civil. Além disso, as paredes de alvenaria estão cedendo porque o terreno está instável. “Como vamos voltar sabendo que tudo pode acontecer novamente?”, questiona-se Eugenia. “Eu me sentia culpada sem saber explicar às minhas filhas porque tudo isso aconteceu, mas tenho fé e sei que um dia tudo isso será passado, vamos voltar a dar risada e ser felizes”.

Gabriel, 1 mês de vida, estava na barriga de Priscila quando a mãe teve que sair de casa às pressas com os outros cinco filhos em meio às enchentes. Foto Anna Ortega (Instagram: @annaortega_c)
Gabriel, 1 mês de vida, estava na barriga de Priscila quando a mãe teve que sair de casa às pressas com os outros cinco filhos em meio às enchentes. Foto Anna Ortega (Instagram: @annaortega_c)

No meio da enchente, uma grávida, com filhos

“Eldorado” tem muitos significados: pode representar um lugar repleto de riquezas, com abundantes recursos naturais ou sonhos de prosperidade. Eldorado do Sul, município emancipado em 1988, ganhou esse nome pelas terras férteis da região, que na década de 30 servia de balneário turístico. Em maio de 2024, após a destruição, Eldorado recebeu outro rótulo: cidade-fantasma. Na pior enchente da história do Rio Grande do Sul, uma das áreas alagadas foi a Vila Costaneira, que já era a mais carente. Naqueles dias em que a chuva não dava trégua, os moradores mantinham a esperança de que tudo iria terminar logo.

Quando a água tomou conta do pátio e começou a entrar pela casa, a dona-de-casa Priscila Moraes de Souza, 34 anos, reuniu os 5 filhos e saiu caminhando até um posto de gasolina na BR-290, um dos poucos lugares mais altos que mantinha-se seco. Muitos outros vizinhos já estavam por lá com a mesma intenção de se protegerem da chuva. Grávida de 6 meses, pensou que voltaria logo em poucas horas para casa. Mas a situação piorou quando as águas vindas do Rio Jacuí desceram para o Lago Guaíba. Rapidamente a Vila Costaneira ficou alagada.

A sede de uma concessionária na zona industrial acabou sendo ocupada pelos eldoradenses que precisavam de um abrigo seco. Mas “abrigo” é uma palavra que não combina com o cenário de caos do lugar. De pouco em pouco, mais desalojados começaram a ocupar o depósito. Não demorou a ter mais de 1 mil pessoas amontoadas lá dentro: “Não tinha água e luz. Não tinha colchão para dormir, não tinha cobertas, não tinha roupa”, resume Priscila. “O que tinha era muita briga e discussão, gente nervosa, crianças chorando o tempo inteiro”.

As meninas Vitória, 12 anos, e Tamires, de 10, tentavam ajudar a acalmar os irmãos mais novos, Lorenzo (7) e Enzo (4). Lorenzo é autista e fica desconfortável quando há muita gente em volta, além do barulho incomodar. Ainda por cima, estava sem suas medicações. Enzo demonstra comportamentos parecidos com os do irmão, mas ainda sem diagnóstico. Na tentativa de ajudar Priscila, o tio dos meninos foi em busca de uma barraca. Todos ficaram em um canto na esperança de paz, que não veio.

Não tinha água e luz. Não tinha colchão para dormir, não tinha cobertas, não tinha roupa

Priscila Moraes
Dona de casa

Depois de 15 dias na barraca, Priscila chegou ao limite da paciência. “Peguei meus filhos e fui para a faixa (BR-290) tentar voltar para casa. Prefiro dormir no colchão molhado a aguentar mais um minuto aqui”. Conseguiram carona nas máquinas retroescavadeiras que faziam voltas pela cidade guiados pela líder comunitária da Vila e voluntários. Ainda demoraria algumas semanas para serem criados abrigos só para mulheres e crianças no RS, justamente para proteger mães e seus filhos menores. Priscila não tomou conhecimento destas iniciativas.

Sua casa estava ainda sem água nas torneiras e sem energia elétrica. Seguia chovendo. Os móveis estavam revirados e encharcados, a água batendo no meio das canelas. Todos dormiam juntos em uma das camas. O filho mais velho, Leonardo, de 15 anos, ia para a fila de distribuição de alimentos na BR. Quando a água finalmente começou a baixar, a luz voltou e outras doações começaram a chegar: uma pia, uma geladeira, um roupeiro e o fogão. O sofá foi encontrado no lixo em uma das ruas da Vila.

Os meses seguintes foram de sufoco financeiro e emocional. As crianças estavam sem escola e cada nova ameaça de temporal deixa todos em pânico. Até hoje, não dormem quando começa a chover. O bebê Gabriel nasceu em 24 de agosto com insuficiência respiratória. Ficou uma semana internado no hospital, com Priscila ao seu lado. Os cinco filhos foram para a casa do tio, que tem outros cinco filhos também.

Até hoje, Priscila não recebeu o auxílio-reconstrução, benefício de R$ 5 mil do governo federal. O pedido foi negado. E mesmo com a chegada do bebê, o Bolsa-Família (única renda) diminuiu em vez de aumentar. Enquanto conversa, a mãe amamenta Gabriel; as outras crianças aproveitam o dia de sol para jogar bola na rua. Nas esquinas, ainda há entulhos esperando para serem recolhidos.

Há também o sonho e a promessa de dias melhores: a Vila Costaneira irá receber o projeto Favela 3D (Digna, Digital e Desenvolvida), da ONG Gerando Falcões, com apoio local do Instituto Ascendendo Mentes. Infraestrutura de saneamento básico, melhorias habitacionais e desenvolvimento social são as prioridades. A previsão de término é para 2026.

Camila Saccomori

Jornalista gaúcha formada pela Unisinos, mestre em Comunicação pela PUCRS. Atuou por 20 anos no Grupo RBS, onde foi repórter e editora nos veículos Zero Hora, clicRBS, Diário Gaúcho e outros. É freelancer desde 2018, com matérias publicadas em jornais, revistas e sites (Terra, Crescer, Porvir etc). Fellow do Dart Center/Columbia University, especialista em Primeira Infância, e bolsista de reportagem das fundações National Press e Heinrich Boell. É instrutora da rede Instituto Fala, ministrando oficinas da Google News Initiative.

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