ODS 1
Indígenas afetados pela seca no Amazonas começam a enfrentar a fome
Sem acesso a cestas básicas, famílias têm que andar quilômetros para conseguir peixe nos cursos hídricos onde ainda resta água
Desde que a seca chegou ao seu ponto crítico, no mês de agosto, membros das Terras Indígenas Kwatá/Laranjal e Caitutu, no Amazonas, afirmam nunca terem recebido uma cesta básica sequer por parte dos órgãos do governo. Os rios Madeira e Purus que banham os dois territórios secaram. Isso tornou praticamente impossível a pesca e o deslocamento até às roças onde eles cultivam raízes, frutas e verduras. O pouco peixe e a mandioca que conseguem só dá para comer duas vezes ao dia.
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Débora Munduruku, 39 anos, da aldeia Kwatá/Laranjal, lembra que vivia com fartura. Caçava cotia, mutum e porco do mato e pescava uma variedade de peixes como jaraqui e traíra. Na roça, que ficava a alguns quilômetros da aldeia, plantava mandioca, cará, batata doce. Além de frutas como banana, caju, manga, cupuaçu e laranja. “Por causa da seca, o acesso ficou ruim, não tem água para chegar de canoa até as roças, que ficam distante”, explica.
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Veja o que já enviamosNa TI Kwatá/Laranjal, há 13 aldeias onde moram cerca de 2.472 famílias. O pouco peixe que eles conseguem para se alimentar vem de trechos dos rios, a quilômetros de distância, onde ainda há um pouco de água. “Quando a gente divide para todos, só dá para comer duas vezes por dia. Se a gente toma café e almoça, não janta”, relata Débora.
Além da fome, a falta de acesso à água potável é outro problema que ronda o território. Segundo Débora, a seca reduziu os níveis dos poços artesianos, tornando precárias a vazão e a qualidade da água. A comunidade precisou montar um planejamento de horários para acionar a bomba, eliminando o risco da bomba quebrar ao realizar um esforço excessivo para puxar a pouca água dos poços.
“A gente liga a bomba das 7h às 11h, em seguida, das 15h às 18h. Com a vazão baixa, a bomba trabalha muito e puxa pouca água. A água está péssima! Já estamos tendo muitos casos de diarreia entre crianças e idosos”, explica Débora.
O secretário da Associação dos Povos e Organizações Indígenas (Apiam), Eliomar Sarmento, da etnia Tukano, afirma que “as cestas doadas pelo governo do Estado, por meio da Defesa Civil, só atenderam à região do Alto Solimões. As demais regiões não receberam”, explica.
No dia 17 de setembro, uma nota divulgada pela Defesa Civil do Amazona afirmava que haviam sido doadas “7 mil cestas básicas”, o equivalente a 150 toneladas de alimentos, aos municípios do Alto Solimões, que segundo trecho da fala do próprio governador publicada na matéria “é a mais prejudicada”. A nota afirma que o órgão faria monitoramento da situação climática nos próximos 20 dias.
Sarmento explica que “um levantamento feito pela Apiam aponta que há 74 mil famílias indígenas afetadas nas regiões dos rios Solimões, Purus e Madeira. Seriam necessárias 264 mil cestas básicas para atender todos com duas unidades [duas cestas] por mês.” Esse número é quase 38 vezes maior do que a quantidade doada pelo Governo. “Nós vamos acionar o Ministério Público Federal do Amazonas para reivindicar que todas as famílias recebam cestas”, informa Eliomar Sarmento.
A reportagem do #Colabora entrou em contato por e-mail com a Defesa Civil do Estado do Amazonas, que nos direcionou para a Fundação Estadual dos Povos Indígenas do Amazonas (Fepiam), órgão responsável por realizar ações sociais nas aldeias indígenas. Tentamos contato por telefone e por mensagem de whatsapp com o responsável pelo setor, mas até o fechamento desta reportagem, não tivemos retorno.
Ronia Lima, 41 anos, é uma indígena da etnia Apurinã. Ela vive com o marido e três filhos na aldeia Acapurana, uma das 32 que compõem a TI Caititu, na região no médio Purus. Ela conta que por lá, além da seca impedir o cultivo e o extrativismo de alimentos, os incêndios também afetaram a cabeceira dos igarapés: “Quando a gente caminha pela aldeia, vê os peixes agonizando entre os sedimentos do fundo do rio. É uma tristeza”, lamenta
A indígena explica que ao caminhar bastante, ainda é possível encontrar algumas lagoas com poucos peixes vivos. O alimento é pescado e dividido entre as 2.027 famílias, mas só é suficiente para duas refeições. “Hoje, a gente está usando o dinheiro do bolsa família para comprar alguns alimentos, mas o dinheiro não dá, a gente só ganha R$ 600”, queixa-se Ronia.
Seca intensifica consumo de ultraprocessados
Quando chegam, as cestas básicas solucionam o problema da barriga que ronca com fome, mas cria outro: intensifica o consumo de ultraprocessados. Esses produtos são compostos por calorias, aditivos químicos e pouco ou nenhum nutriente. Ou seja, eles dão saciedade, engordam, mas não nutrem. Além disso, diversos estudos já provaram que uma dieta majoritariamente composta por ultraprocessados está associada a doenças como câncer, diabetes, hipertensão e até depressão.
As cestas básicas que têm chegado às aldeias do Amazonas possuem muitos alimentos processados e ultraprocessados, até porque eles podem ser mantidos prontos para consumo, mesmo sem serem acondicionados em geladeira. “Vem conserva e sardinha em lata, bolacha do tipo cream cracker, arroz, feijão, farinha, leite em pó, macarrão”, detalha Sarmento.
Professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e integrante da coordenação da Rede Penssan, Mayline da Mata afirma que “o grande problema dessas estratégias emergencistas é que elas matam a fome, mas não garantem a manutenção da cultura alimentar, não nutrem. É preciso rever a Política Nacional de Segurança Alimentar, considerando esses eventos climáticos como o novo normal na Amazônia”, avalia.
Mayline é autora de um estudo inédito ao qual o #Colabora teve acesso, que mostra que, no Amazonas, se falta comida, também falta água. A pesquisa aponta que a região Norte do Brasil é a mais afetada pela insegurança alimentar associada à insegurança hídrica.
Segundo o estudo realizado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), quase cinco de cada dez municípios do Amazonas estão em insegurança hídrica e quase sete de cada dez sofrem com algum nível de insegurança alimentar. Quatro de cada dez estão em situação de insegurança alimentar grave, condição na qual a pessoa dorme sem saber o que vai comer no dia seguinte.
Esses dados surpreendem em dois sentidos. Primeiro porque contraria os que imaginavam que a região do Semiárido fosse a mais afetada pela insegurança alimentar associada à insegurança hídrica. Além disso, eles parecem improváveis por envolverem uma região banhada por rios caudalosos. “Há um paradoxo, pois essa região tem muitos rios, mas pouco acesso à água potável, seja nas áreas urbanas, ou nas áreas rurais”, explica Mayline.
A pesquisa foi realizada em 983 domicílios urbanos do município de Itapiranga, no Amazonas, e 160 rurais da região do Médio Amazonas, envolvendo a Reserva do rio Atumã. “É preciso repensar o sistema de abastecimento local, inclusive contando com o apoio do Programa Cisternas e a distribuição de filtros de água. Deve-se melhorar o acesso das pessoas à renda, que, muitas vezes, na falta de acesso à água e comida, usam o Bolsa Família para adquirir esses recurso básicos”, recomenda a pesquisadora.
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Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.