Calor extremo compromete a saúde de crianças no Sudeste

Calor extremo compromete a saúde de crianças no Sudeste

Para melhorar a saúde de Perolla, de quatro anos, Gilmara saiu do barraco de madeira em Paraisópolis para outra casa emprestada por amigos no bairro. Foto Ina Henrique Dias (Instagram: @inahds_)

Desigualdade e falta de infraestrutura básica pioram a qualidade de vida de meninas e meninos em São Paulo e no Rio

Por Camila Saccomori | ODS 13 • Publicada em 22 de outubro de 2024 - 00:08 • Atualizada em 28 de outubro de 2024 - 10:00

Dentro do amplo arco que envolve o tema mudanças climáticas, existe um que, muitas vezes, é subestimado em sua gravidade: o calor. Aliás, o assunto até foi pauta aqui no Colabora: o calor extremo é uma questão de saúde pública em todo o mundo e, no Brasil, principalmente em regiões como o Sudeste. Recente levantamento do Unicef mostra que 33 milhões de crianças no país enfrentam o dobro de dias extremamente quentes a cada ano, em comparação a seus avós. Dias quentes são os que excedem 35°C. Sabendo que a temperatura ideal para o corpo fica entre 18ºC e 26°C, qualquer número acima disso já trará desconforto.

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A exposição a ondas de calor pode resultar em estresse térmico, com consequências que podem ser fatais. O calor mata 489 mil pessoas todos os anos globalmente, como prova estudo do Australian Research Council publicado na revista Lancet, que cruzou dados de 43 países durante quase duas décadas. Mulheres grávidas, bebês, crianças e adolescentes são os mais vulneráveis aos seus efeitos, sofrendo impactos mais intensos e duradouros. Afinal, existem limites para a tolerância dos corpos às condições climáticas, como aponta estudo recente sobre calor extremo feito pelo Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade de Harvard. Altas temperaturas estão associadas a uma função cognitiva mais lenta e à redução da capacidade de concentração.

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Além de prejudicar o desenvolvimento infantil, aumenta o risco de várias doenças (infecciosas ou não), ainda mais se combinados a outros fatores de risco, como a desigualdade de acesso a serviços básicos. Este é outro fator crucial: a injustiça climática ou racismo ambiental, expressão criada há 40 anos pelo climatologista Robert Bullard. Comunidades com menos recursos são as mais afetadas. A falta gritante de infraestrutura e condições habitacionais precárias aumentam a vulnerabilidade dessas populações aos impactos do calor.

Só no Brasil, 50 mil pessoas morreram de forma prematura nas áreas urbanas devido às altas temperaturas entre 2000 e 2018, mostra estudo em colaboração da UFRJ com Fiocruz, UnB e Universidade de Lisboa. Na infância em Itaquaquecetuba, periferia de São Paulo, Djacinto Monteiro dos Santos, um dos pesquisadores, ouvia as letras de denúncia dos Racionais MC’s e já intuía aquilo que mais tarde seria provado pela ciência. Seu texto que circulou nas redes no início de outubro faz um diagnóstico enfático de como as “quebradas” estão mais vulneráveis aos eventos extremos. É exatamente o caso das duas mães das histórias a seguir, que não se conhecem e compartilham dos mesmos desafios. Gilmara e Milena buscam proteger a saúde e o bem-estar das filhas, Perolla e Tereza, agravadas pelas mudanças climáticas e pela pobreza das comunidades onde vivem.

“Não espere o futuro mudar sua vida/Porque o futuro será a consequência do presente”, cantam Afro-X e Racionais (“A vida é desafio”, 2002). O ano de 2023 foi o ano mais quente registrado na história do planeta. São Paulo e Rio de Janeiro já estão batendo recordes de temperatura este ano. Em março, a sensação térmica na capital fluminense chegou a 62,3 ºC, notícia do Sistema Alerta Rio, vinculado à prefeitura. E a culpa não é do El Niño.

Calor intenso e problemas respiratórios em São Paulo

“Não tem o que fazer, mãe: é o clima”. Nas visitas ao posto de saúde levando uma das três filhas (ou mais de uma ao mesmo tempo), Gilmara Oliveira Santos, 39 anos, já ouviu essa frase incontáveis vezes. O diagnóstico é a famosa “tosse do tempo”, aquela que nunca passa. Medicações à base de loratadina (anti-histamínico), gotas ou comprimidos, fazem parte do kit básico para se ter em casa. A casa em questão fica em Paraisópolis, favela com 100 mil habitantes, a segunda mais populosa de São Paulo. Para situar quem é de fora, basta lembrar de uma imagem icônica sempre usada em reportagens sobre desigualdades sociais: as cenas aéreas mostram a divisão do rico bairro do Morumbi e da periferia. De um lado do muro, um condomínio com quadras de tênis e 13 apartamentos de luxo com uma piscina por varanda. Do outro lado, Paraisópolis e suas construções grudadas umas nas outras.

Este é apenas um dos motivos que torna a vida na favela mais quente. A temperatura em Paraisópolis chega a ser 10°C mais alta do que na vizinha Morumbi, como atesta a plataforma UrbVerde, da USP (Universidade de São Paulo). A desigualdade climática é multifatorial: alta densidade populacional, falta de árvores e o tipo de construção de bairros de periferia. Telhados de alvenaria e telhas de amianto, por exemplo, retêm mais calor. As filhas de Gilmara sentem isso na pele.

As duas meninas maiores, Laryssa, 14 anos, e Tábata, 7 anos, já pegaram dengue. A doença se prolifera em temperaturas mais altas, da mesma forma que a malária, pois aumentam a atividade dos mosquitos transmissores. Todas moravam em um “barraco de madeira”, nas palavras de Gilmara, tendo como vizinho um córrego a céu aberto (onde há despejo de esgoto sem tratamento). Além disso, faltava água com frequência, bem como energia elétrica.

Perolla, a caçula, foi quem mais sofreu até agora. Um mês depois de comemorar 4 anos de idade em maio, começou a ter febres altas. Diversas idas ao posto de saúde não resolviam os sintomas. Por insistência da mãe, “pois coração de mãe não se engana”, como contou Gilmara, acabou levada ao hospital para exames, de onde só saiu um mês depois. A menina ficou as primeiras duas semanas na UTI. A evolução da pneumonia levou a uma cirurgia torácica. Perolla se recuperou, a mãe se culpou (“nasce um filho, nasce a culpa”, diz o ditado), mas o médico esclareceu que a pneumonia infantil tem várias causas: vírus, bactérias, fungos, microrganismos etc. Mesmo sem saber a origem, era melhor mudar de casa.

Migrante do Nordeste, como 80% dos moradores de Paraisópolis, a paraense Gilmara mora desde os 14 anos em Paraisópolis. Ali coordena o projeto social Favela Gaming, que oferece a jovens de baixa renda oportunidades profissionais dentro do universo gamer. Comunicativa, tem muitos amigos e um destes contatos a levou a ter uma casa emprestada, na esperança de oferecer uma melhor qualidade de vida para Perolla. A atual morada é uma “casa de bloco” (concreto), destaca a mãe. Longe de córregos, porém mais quente do que a anterior. Aqui, o ventilador e o purificador ficam ligados o tempo todo depois que Perolla volta da creche. A água desaparece das torneiras todas as noites, então é preciso se organizar rápido para todas as meninas conseguirem tomar banho e ainda fazer lavagem nasal e inalação, dois hábitos que entraram para a rotina de tantos moradores de SP.

Para levar a filha Tereza, de 1 ano e meio, até a creche, o casal Milena e Mathaus enfrentam o calor e os desafios dos espaços urbanos hostis no trajeto. Foto Suellen Paim de Melo (Instagram @susuclica)
Para levar a filha Tereza, de 1 ano e meio, até a creche, o casal Milena e Mathaus enfrentam o calor e os desafios dos espaços urbanos hostis no trajeto. Foto Suellen Paim de Melo (Instagram @susuclica)

Falta de infraestrutura e as ilhas de calor

 Conjunto de favelas mais populoso do Rio de Janeiro, o Complexo da Maré é um bairro na Zona Norte, às margens da Baía de Guanabara. As três principais artérias de circulação da cidade passam por lá: Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela. Tereza nasceu ali há 1 ano e meio, filha do casal de artistas Milena Vital, 26 anos, e Mathaus Domingos, 29. A localização onde moram é, ao mesmo tempo, a melhor e a pior parte de se viver na Maré: “O que mais gosto é a mobilidade, o fácil acesso a várias partes do Rio. É também o que menos gosto porque se torna uma área de sacrifício, um local com muitas violações de direitos”, resume Milena, citando as abordagens policiais violentas e a ausência de políticas públicas e infraestrutura básica na região. Na Maré, 80% das queixas sobre saneamento básico realizadas por moradores se referem a esgoto e lixo, de acordo com o relatório “Cocôzap: Sistematizando dados e formulando políticas”, publicado em agosto deste ano pelo DataLabe em parceria com a Fundação Heinrich Böll.

No trajeto de 30 minutos a pé, somando ida e volta, de casa até a creche de Tereza, a família enfrenta um cenário hostil. “É tensão o tempo todo até chegar lá”, narra Milena. Muita poluição, zero natureza, calor insuportável. A pequena Tereza já está dando seus primeiros passos e quer muito caminhar pelas ruas, mas, por segurança, precisa ficar no colo do pai ou da mãe. Nas ruas da Maré onde não há calçadas, os pedestres disputam espaço com os carros. E nas grandes avenidas, o escapamento dos veículos despeja fumaça bem na altura dos pulmões da bebê.

Para não ficar se estressando dentro de casa, os vizinhos levam cadeira de praia e ficam lá conversando

Milena Vital
Artista

Aliás, enquanto conversava com a reportagem sobre os detalhes do caminho, Milena e Tereza tossiam com frequência. Fazia 37 graus naquele dia. “Todo mundo fica com a garganta ruim. Percebi alguns dias a Tereza com a respiração cansada, mais ofegante. Não tem saúde e imunidade que aguentem tudo isso que passamos”. Pelo menos na creche tem ar-condicionado, ao contrário de mais de uma centena de outras escolas públicas cariocas sem ventilação apropriada.

O umidificador de ar fica sempre ligado quando Tereza está em casa, exceto nos dias em que falta energia elétrica. Com frequência falta água também, especialmente no verão, quando a família já passou uma semana sem água. “É uma roleta russa, não tem como prever quando vai faltar, depende também da parte do território em que se mora”. Milena se mudou da casa anterior porque não tinha janelas. Hoje, a atual residência tem cobertura de telhas metálicas, que esquentam demais o interior da casa, especialmente no quarto: “É um forno”.

A saída é ir para a rua. Se for durante o dia, a alternativa é o Parque Ecológico da Maré, conhecido pelos moradores como Mata. Quando Milena era criança, havia vários brinquedos: escorregador, balanço, gangorra. Hoje, Tereza não tem nenhum para usar, está sem conservação. O local de 44 mil metros quadrados também carece de reflorestamento e iluminação pública. Lembrando que o direito ao lazer também é um direito de crianças e adolescentes, mas nas comunidades é ainda mais raro.

Se falta luz à noite, Milena e Mathaus já sabem que será mais difícil dormir por causa do calor sem ventilador. Em algumas partes da Maré, é tradição ir para a rua passar o tempo. “Para não ficar se estressando dentro de casa, os vizinhos levam cadeira de praia e ficam lá conversando”. Tereza é calorenta, fica inquieta quando está muito quente. Mas as crianças acabam dormindo vencidas pelo cansaço. Desde que a filha nasceu, o casal já cogitou até se mudar no futuro, talvez para fora de grandes centros urbanos, talvez uma vida rural. “A urbanização adoece muito a gente”, conclui Milena.

*A série especial ‘As crianças e a crise climática’ foi uma das vencedoras da Bolsa #Colabora de Reportagem – 8 anos

Camila Saccomori

Jornalista gaúcha formada pela Unisinos, mestre em Comunicação pela PUCRS. Atuou por 20 anos no Grupo RBS, onde foi repórter e editora nos veículos Zero Hora, clicRBS, Diário Gaúcho e outros. É freelancer desde 2018, com matérias publicadas em jornais, revistas e sites (Terra, Crescer, Porvir etc). Fellow do Dart Center/Columbia University, especialista em Primeira Infância, e bolsista de reportagem das fundações National Press e Heinrich Boell. É instrutora da rede Instituto Fala, ministrando oficinas da Google News Initiative.

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