Um vírus chamado homem

Jovens chinesas usando máscaras contra o coronavírus caminham por uma fazenda de colza, usado para a produção do óleo de canola. Foto Noel Celis/AFP

Pandemia do coronavírus mostra os impactos negativos da presença do ser humano no planeta

Por Agostinho Vieira | ODS 12 • Publicada em 22 de março de 2020 - 10:46 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 16:53

Jovens chinesas usando máscaras contra o coronavírus caminham por uma fazenda de colza, usado para a produção do óleo de canola. Foto Noel Celis/AFP

Diferentemente do que disse o deputado Eduardo Bolsonaro, do PSL, ao criar mais um desnecessário incidente diplomático, a culpa pelo surgimento e pela disseminação do coronavírus não é dos chineses. Pelo menos, não é só dos chineses. A Covid-19 se alastrou por todos os continentes graças a mais uma ação destrutiva e invasora contra a natureza, provocada por um personagem muito conhecido e temido em todo o planeta: o homem. Não é a primeira vez que isso acontece e, infelizmente, não será a última. Foi assim com a peste bubônica, com a peste negra, com o Ebola, a gripe suína, a gripe aviária, a Influenza, com o HIV, com o H1N1 e tantos outros.

Existem recursos suficientes no planeta para atender as necessidades de todos, mas não o bastante para satisfazer a ganância de cada um

Na verdade, os efeitos maléficos provocados pelo “vírus homem” são facilmente comprovados quando esse mesmo ser humano é obrigado a se ausentar, sair de cena. Bastou ele ficar de quarentena, entocado em suas cavernas, casas ou apartamentos que o céu começou a ficar mais azul e as águas ficaram mais limpas. E o primeiro exemplo veio da China, onde imagens de satélite feitas pela Nasa mostraram um declínio dramático nos níveis de poluição e de emissões de gases de efeito estufa.

Na Itália, segundo país mais atingido pela pandemia, além da poluição atmosférica ter sido reduzida, as águas que banham a cidade de Veneza começaram a aparecer mais limpas. É importante registrar, no entanto, que as images de golfinhos e cisnes nadando ao redor da cidade não são verdadeiras, são mais uma fakenews, mas a água está efetivamente mais limpa, graças à ausência do “vírus homem”. Mas afinal, existe um padrão de atuação e disseminação desse vírus? Como ele é capaz de provocar tantas doenças e outros transtornos em um planeta tão pequeno como a Terra?

Funciona mais ou menos assim: junta-se uma densidade de seres humanos cada vez maior com uma rica e ainda muito desconhecida biodiversidade de mamíferos, aves silvestres e outros seres vivos. Sim, os vírus também são seres vivos e biodiversos. O doutor Peter Daszk, presidente da EcoHealth Alliance, que se dedica a prever as origens e os impactos das doenças emergentes no mundo, estima a existência de cerca de 1,6 milhão de vírus espalhados pela vida selvagem. Entretanto, apenas três mil desses vírus já foram estudados e catalogados. Um dos problemas é que esse tal de “ser humano”, em sua grande maioria, não vive sem uma proteína animal e se acha no direito de ir buscá-la esteja onde estiver. Assim, está formado o cenário propício para o surgimento de doenças como a Covid-19.

A rua Sainte-Catherine, em Bordeaux, na França, antes e depois da quarentena decretada por conta do coronavírus. Foto Mehdi Fedouach/AFP
A rua Sainte-Catherine, em Bordeaux, na França, antes e depois da quarentena decretada por conta do coronavírus. Foto Mehdi Fedouach/AFP

No episódio “A Próxima Pandemia”, da série “Explicando”, do Netflix, a doutora Allison McGeer, diretora do departamento de patologias do Hospital Mount Sinai, no Canadá, argumenta que existem apenas três certezas na vida: a de que todos vamos morrer; a de que todos vamos pagar impostos, de um jeito ou de outro; e a de todos vamos enfrentar as consequências, diretas ou indiretas, de uma pandemia de gripe. O organismo que causa a Covid-19 já existia há muito tempo no meio ambiente, provavelmente alojado em morcegos nativos de cavernas até então intocadas. Com a crescente urbanização, a industrialização sem limites e a consequente invasão humana, porém, esse vírus quebrou seu ciclo natural e alcançou outros seres, como o próprio homem, cujo organismo ainda não está preparado para combatê-lo. O fato é que o coronavírus não é o primeiro e, infelizmente, não será o último vírus que vamos enfrentar. O derretimento das camadas de gelo no Ártico é outra ameaça clara, pois pode liberar micróbios e vírus congelados há milênios e que são absolutamente desconhecidos.

A situação só vai mudar de verdade, ou só será minimizada, quando a relação do homem com a natureza, com a fauna e com a flora mudarem. Não somos os donos do planeta, os donos da festa, mas apenas habitantes, estamos de passagem. Somos parte grande do problema, mas também podemos ser uma parte da solução.  Em uma de suas frases mais famosas, Mahatma Gandhi dizia que “existem recursos suficientes no planeta para atender as necessidades de todos, mas não o bastante para satisfazer a ganância de cada um”.

Loja em Brighton, na Inglaterra, expõe alguns itens de primeira necessidade em temos de Covid-19. Foto Glyn Kirk/AFP
Loja em Brighton, na Inglaterra, expõe alguns itens de primeira necessidade em temos de Covid-19. Foto Glyn Kirk/AFP

E essa superexploração da natureza vem acontecendo em todas as partes, inclusive no Brasil, com as ameaças constantes de destruição das nossas florestas. De acordo com o estudo “O futuro dos ecossistemas tropicais hiperdiversos”, publicado na revista Nature, o país detém 15% de todas as espécies de animais e plantas do planeta. Elas representam uma enorme riqueza potencial para a produção de remédios, alimentos e cosméticos. Mas também podem ser uma ameaça se não forem pesquisadas adequadamente. Mais uma vez, menos de 3% de toda essa biodiversidade já foi analisada e catalogada. Logo, o próximo coronavírus pode não vir da cidade de Wuhan, na China, mas de algum rincão na Amazônia, no Cerrado ou no meio da Mata Atlântica. Preservar e pesquisar é o nome do jogo. Verbos que não estão no dicionário dos locatários do Planalto.

O fato é que essa pandemia de coronavírus, a quarentena mundial provocada por ela e até os registros de céu azul e águas claras na China e na Itália estão vindo acompanhadas de uma enorme recessão econômica, que trará desemprego e muito sofrimento humano. Então, o que fazer? Voltar a fustigar a natureza, acelerar o crescimento, a urbanização, a industrialização e a riqueza de alguns? Fazer tudo isso novamente e esperar um próximo vírus ou o aquecimento global atacar nossos filhos e netos? Essa é a única saída?  Tudo indica que a natureza resolveu dar uma freada de arrumação. Teremos, no mínimo, três ou quatro meses para pensar no assunto. Quem sabe, ao final desse período, a gente não encontre um jeito de construir uma sociedade que seja economicamente viável, socialmente mais justa e ambientalmente sustentável. Enquanto isso não acontece, o “vírus homem” segue se engalfinhando nos supermercados para encher os carrinhos de papel higiênico.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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3 comentários “Um vírus chamado homem

  1. Hylton Sarcinelli Luz disse:

    Muito boa reflexão; trazendo a tona a questão do planeta abusado, do homem sem freios ou limites para sua ganancia. PARABÉNS! Boa ideia sugerir o tema para este momento de confinamento.

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