Custo da cesta básica consome mais de um terço do salário mínimo; produção de alimentos sofre com ondas de calor, chuvas e secas (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Sem clima, sem comida: produção de alimentos sofre com extremos climáticos

Sem clima, sem comida: produção de alimentos sofre com extremos climáticos

Por Micael Olegário ODS 12

Crise socioambiental e inflação do preço dos alimentos expõem necessidade de repensar modelo de produção

Publicada em 12 de março de 2025 - 00:11

Comer bem tem ficado cada vez mais caro e difícil no Brasil. Alimentos e bebidas registraram aumento de 7,25% nos últimos 12 meses até janeiro, valor acima da inflação geral de 4,56%, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Carne, café, leite e frutas lideram a lista de alimentos que passaram a doer mais no bolso da população, principalmente dos mais pobres. O assunto que domina a mesa e o cotidiano de grande parte dos brasileiros também está conectado com o clima.

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“Todos os alimentos nos distintos sistemas alimentares brasileiros serão impactados pelas mudanças climáticas. Cada vez mais o clima será um determinante da produção de alimentos”, afirma Suzi Barletto Cavalli, professora do Programa de Pós-graduação em Nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para compreender esse contexto, basta relembrar alguns dos extremos que marcaram o ano de 2024.

De acordo com o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), no ano passado, o Brasil registrou a pior estiagem em 70 anos. Cerca de 30% dos municípios brasileiros foram afetados, durante pelo menos um mês, por condições de seca severa, extrema ou excepcional. O ano também foi marcado por recordes de queimadas, principalmente na Amazônia e Cerrado. Além disso, o Rio Grande do Sul enfrentou chuvas extremas e inundações, no maior desastre socioambiental da história do estado.

“O calor ou a chuva em excesso reduzem a frutificação e, por vezes, causam o amadurecimento acelerado, o que pode levar a perda de safra e ainda gerar desperdício”, explica Franciele Cardoso, pesquisadora na área de insegurança alimentar e mudanças climáticas e doutoranda em Indústria Criativa na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

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As escolhas que nós fazemos para o nosso prato impactam na situação do clima, e vice-versa, o clima impacta também no que tem disponível nos mercados para que possamos escolher

Maíra Mazoto
Professora de Nutrição na UFRRJ

Conforme o relatório Perspectivas Regionais de Segurança Alimentar e Nutrição 2024 – lançado em janeiro pelas Nações Unidas – a região da América Latina e do Caribe é a segunda mais exposta a eventos climáticos extremos (atrás apenas da Ásia), com impactos que reduzem a produtividade agrícola, interrompem as cadeias de fornecimento de alimentos, aumentam os preços e afetam os ambientes alimentares.

Apesar de apontar redução no número de pessoas afetadas pela fome e em situação de insegurança alimentar, o relatório alerta para o aumento da subnutrição em 1,5 ponto percentual nos países afetados por eventos climáticos extremos. Crianças, comunidades rurais e mulheres são os grupos mais atingidos, segundo o documento.

Duas fotos coloridas de voluntários trabalhando para recuperar hortas no assentamento Santa Rita de Cássia II
Trabalho de recuperação das hortas no assentamento Santa Rita de Cássia II levou meses (Foto: Brigada Via Campesina/Divulgação)

Produção em assentamento ficou parada por três meses

No Assentamento Santa Rita de Cássia II, localizado no município de Nova Santa Rita (RS), os efeitos da crise climática começaram a ser sentidos em 2015, ano em que a seca castigou a produção agroecológica das cerca de 100 famílias que vivem no local. 

Depois de anos seguidos de estiagem, intensificados pelo fenômeno La Niña em 2022 e 2023, vieram as enchentes e novas perdas. “Ano passado foi o mais difícil, a área do município ficou em torno de 70% alagada, as perdas foram incalculáveis”, conta José Carlos de Almeida, 44 anos, morador do assentamento desde a sua fundação, em 2005. Filho de camponeses, José foi criado trabalhando com a terra e comendo o alimento que ajudava a plantar.

As chuvas afetaram, principalmente, a produção do arroz agroecológico, de hortaliças e de frutas. Porém, para José, o pior foi ver os efeitos na natureza, nas árvores nativas e na própria comunidade. “Podemos dizer que tivemos perdas na casa dos milhões, mas isso não é o que conta. O que importa é o bem-viver das pessoas que foi atingido e essa biodiversidade que pode demorar anos para se recuperar”, complementa o agricultor.

Nós não vamos ter justiça ambiental e resolver os problemas climáticos se continuarmos destruindo a natureza e concentrando a terra

José Carlos de Almeida
Produtor rural em Nova Santa Rita (RS)

Depois de ficarem dez dias isolados, José, a esposa Graciela Inés Stornini de Almeida, e sua família levaram três meses para voltar a produzir, outras pessoas do assentamento levaram até seis meses. Nesse período, o agricultor conta ter recebido apoio de doações e voluntários, principalmente do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). Ele chegou a tentar, mas não conseguiu receber o Auxílio Reconstrução de R$5,1 mil, criado pelo governo federal.  “São pobres que pagam mais essa conta, porque um período longo sem conseguir produzir e comercializar seus produtos, é crise na certa”, enfatiza.

Ao comentar sobre os impactos das enchentes na segurança alimentar e na produção, Franciele Cardoso destaca as perdas em diferentes setores e dimensões. “A maioria dos agricultores perderam suas casas também, o que afeta em todo o sistema e a vida das famílias que vivem no campo, recorda Franciele, idealizadora e colaboradora de cozinhas solidárias e comunitárias em Porto Alegre.

Segundo dados da Emater RS/Ascar, 9.158 localidades e mais de 200 mil propriedades rurais foram afetadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Na soja, as perdas foram de 2,71 milhões de toneladas e, na safra de arroz, foram 22 mil hectares perdidos. O levantamento também aponta que 3,7 mil criadores de animais tiveram prejuízos, com mais de 1 milhão de aves mortas, além de perdas de bovinos de corte e de leite, suínos, peixes e abelhas.

Duas fotos coloridas de impacto das enchentes em lavouras do Rio Grande do Sul
Enchentes causaram danos em hortas e também lavouras no Rio Grande do Sul (Foto: Divulgação/Emater RS-Ascar)

Cinco alimentos afetados pela “inflação” climática

Em consulta ao levantamento do IPCA de janeiro, o abacate lidera a lista dos alimentos que mais encareceram nos últimos 12 meses, com inflação de 68,77%. Tangerina (68,57%), laranja lima (59,62%), café moído e abobrinha (47,47%) completam a lista dos cinco primeiros – todos alimentos naturais. Chama atenção também o aumento nas carnes (21,17%) e em outros itens essenciais no cotidiano da população, como o óleo de soja (24,55%) e o leite (16,19% – tipo longa vida). A lista abaixo explica a inflação de cinco alimentos e sua relação com o clima:

  • Abacate: secas e geadas afetam a produção da fruta, que consome muita água no seu processo de desenvolvimento e, por isso, causa impacto ambiental maior que outros alimentos. Os custos de produção têm relação com o modelo produtivo adotado, dependente de fertilizantes e químicos. A alta na demanda interna e em países da Europa e América do Norte também são apontados como causas da inflação;
  • Café moído: estiagens e o aumento no número de dias com altas temperaturas têm afetado as safras do grão desde 2020, com impactos nos estados de maior produção, como Minas Gerais e São Paulo;
  • Laranja: as safras têm sido prejudicadas pela doença “greening” que afeta a citricultura e pelas altas temperaturas nas regiões produtoras. Dados do Fundecitrus (Fundo de Defesa da Citricultura) indicam que a produção da safra de 2024/2025 deve ser de 228,52 milhões de caixas de 40,8kg, uma queda de 25,61% em relação às 307,22 milhões do ano anterior;
  • Óleo de soja: A produção da soja em regiões como o Rio Grande do Sul tem sido afetada por seguidas estiagens, como nos anos de 2022 e 2023. Já em 2024, as enchentes no estado causaram a perda de 2,71 milhões de toneladas, segundo dados da Emater RS-Ascar. A crescente demanda da China e a Guerra na Ucrânia são outros elementos que afetam o preço;
  • Leite: secas consecutivas nas regiões centro-sul do Brasil afetaram a produção do leite, reduzindo a disponibilidade de pasto para os animais. O aumento nos custos de produção – da energia elétrica, por exemplo – junto de fatores externos também pressiona o preço do leite e dos laticínios em geral.

Modelos de produção

Professora de Nutrição na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Maíra Mazoto explica que o modelo de produção agrícola adotado no Brasil – com monoculturas, produção extensiva, uso de agrotóxico e desmatamento – é responsável por intensificar as mudanças climáticas e prejudicar a disponibilidade de alimentos. “As escolhas que nós fazemos para o nosso prato impactam na situação do clima, e vice-versa, o clima impacta também no que tem disponível nos mercados para que possamos escolher”, exemplifica.

Como respostas à inflação dos alimentos e aos impactos atuais e futuros das mudanças climáticas na produção agrícola, Suzi Cavalli também defende mudanças nos sistemas alimentares e produtivos. A pesquisadora cita a necessidade de “repensar a forma de uso da terra, dos insumos, como agrotóxicos e sementes transgênicas“.

Para Franciele Cardoso, esse caminho passa por investimentos em sistemas de informação climática para lidar com eventos extremos, infraestrutura para pequenos produtores e práticas agrícolas sustentáveis. Como pontos comuns, as pesquisadoras indicam a importância de valorizar a agroecologia e incentivar o consumo de alimentos produzidos localmente.

Essa visão é compartilhada por José de Almeida. Segundo ele, o modelo agrícola atual fortalece o agronegócio que polui e desmata, o que agrava as mudanças climáticas. “Nós não vamos ter justiça ambiental e resolver os problemas climáticos se continuarmos destruindo a natureza e concentrando a terra. Essa é uma situação que vivemos aqui e que estamos debatendo com a nossa comunidade, como a gente sobrevive?”, afirma o agricultor.

O Plano Safra 2024/2025 alcançou o valor recorde de R$ 400,59 bilhões destinados para financiamentos, principalmente para médios e grandes produtores. Enquanto isso, para a agricultura familiar e produção de alimentos de forma ecológica e equilibrada, o governo federal destinou R$ 76 bilhões. 

Reportagem do ((o))eco mostra ainda que os títulos registrados no Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) como “Finanças Privadas do Agro”, somam R$ 1,036 trilhão em recursos para a agropecuária. Esses valores revelam uma disparidade ainda maior no modelo produtivo escolhido pela sociedade brasileira. 

Na quinta-feira (06/03), o governo federal anunciou uma série de medidas para tentar conter a alta no preço dos alimentos no país. Entre as novidades, o Planalto pretende zerar os impostos de importação de itens considerados essenciais, como café (antes em 9%), azeite (9%), açúcar (14%), milho (7,2%), óleo de girassol (9%), sardinha (32%), biscoitos (16,2%, macarrão (14,4%) e carnes (10,8%. Outras medidas ações incluem estímulo à produção de itens da cesta básica e o fortalecimento dos estoques reguladores da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

O MAPA foi procurado para responder sobre as políticas e ações adotadas diante dos impactos das mudanças climáticas na produção agrícola, mas até a publicação da reportagem ainda não havia retornado.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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